Populismo

De comum, nos dois casos, o populismo. A esperança tola de que apelando ao coração, o Povo perdoa. Ora o bom Povo até pode perdoar, mas deixou de acreditar.

Perdão e culpa. Justiça e Educação sucumbiram aos argumentistas dos maus filmes românticos sul-americanos, dos anos cinquenta. Convictos de que vergavam a natureza ao justicialismo e ao banimento da ociosa incompetência, proclamaram metas temporais para reformas do século, reduções drásticas de efectivos, abertura exemplar de mais um ano lectivo. Esqueceram-se de que a “natureza”, isto é, os homens, as mulheres e até os computadores se não conformam às ordens governamentais quando insensatas, teimosas ou baseadas em erros. A rebelião informática pode destruir a “reforma” da Justiça. Rebentou em sobrecarga, explodindo em girândola de fagulhas. Uma fórmula matemática impossível tornou o ministro matemático numa vítima de si próprio. Em ambos os casos, houve de comum o autoritarismo mascarado de voluntarismo político, e o centralismo decisório fardado de suposta eficiência. Não se tratou apenas de um curto-circuito reparável em poucas horas, mas de dois gigantescos estoiros que prejudicam gravemente a coisa pública. Processos paralisados, incerteza jurídica acrescida, meios de depoimento e de prova impossibilitados e, mais que tudo, uma agravada perda de confiança na tão frágil e já fendida estátua da Justiça. Colocações impossibilitadas, arbitrariedades de uma lógica automatizada, trouxeram prejuízo para escolas, alunos, pais e professores e baixaram o moral das tropas.

Em ambos os casos os estrategas comunicacionais do governo recomendaram a mesma receita: lágrimas de compunção e pedidos de desculpa. Umas e outros não resolvem o problema: as lágrimas são vistas como de crocodilo e as desculpas como prova de cinismo. De comum, nos dois casos, o populismo. A esperança tola de que apelando ao coração, o Povo perdoa. Ora o bom Povo até pode perdoar, mas deixou de acreditar. Não são mais pais e patrões, mas simples figurantes de um teatrinho. Quanto mais permanecerem em cena, mais o Povo os olhará de viés. Mais alimento terão os media. A Oposição agradece.

Doença contagiosa de notificação obrigatória. Quanto mais falece a razão, mais virulenta é a doença. Do populismo anti-fiscal de pequenos comerciantes e artesãos de Poujade, que chegou a obter 12% dos votos e 60 deputados nas eleições parlamentares francesas de 1956, ficou apenas o nome, a praga a evitar. Vinte anos depois, chegou Le Pen, a cavalo no descontentamento dos franceses pela invasão dos emigrantes do Sul. Italianos, espanhóis e portugueses haviam sido bem assimilados pela sociedade da abundância que neles aprecia o sabor meridional da comida, a vontade de muito trabalhar para melhorar a vida e a permanente boa disposição de porteira disponível na “gaiola dourada”. Depois chegaram os magrebinos e subsaharianos. Outras etnias, outras práticas, culturas, valores, religiões. A consciência do número e da sua indispensabilidade braçal despertou neles o poder reivindicativo. Da submissão à rebeldia, da obediência à agressividade no vestir, consoante valores de família ou de tribo. Fenómeno complexo e difícil de gerir levou a direita ao habitual autoritarismo e a esquerda oscilante entre o esquerdismo libertário e os tiques da pós-modernidade. O desastre estava à vista e engordou a extrema-direita.

Na grande e poderosa Alemanha a deseducação política de governantes medíocres, formados no autoritarismo pré-existente, conduz o Povo a acreditar que só eles trabalham: os do ocidente e do sul ou são presunçosos, ou preguiçosos, ou incumpridores, ou dissipadores. A falácia ecológica chega a ser infantil. O contágio chegou ao Reino Unido, passando por cima de 800 anos de rebeldia e liberdades. Farage e o Partido da Independência (UKIP) pareciam de início um bando de excêntricos, vivendo de tiradas demagógicas e insultuosas em Estrasburgo. Agora tudo mudou. O UKIP morde a direita, o centro e até a esquerda trabalhista. Nenhum partido está imune.

A doença pega-se: O nosso António J. Seguro que registava um honroso passado de recusa da redução do número de deputados, deu meia-volta e propõe agora anular 50 lugares no Parlamento, criar um pequeno círculo de escolha proporcional e generalizar a representação uninominal, através de ordenamento de candidatos pelos eleitores. Reforma que poderia ser interessante se bem preparada e proposta no início de uma legislatura, não no seu termo. Apressadamente brandida como último recurso para atrair os descrentes na política, tornou-se uma arma de populismo. Ao pretender agendar um debate potestativo sobre o assunto, sem consultar os seus próprios deputados, não falta quem pergunte que vendaval varreu a cabeça de Seguro? Uma audácia insensata, contraditória e desastrosa para a imagem do PS. Com tais comportamentos, o PSD esfrega as mãos de contente: terá a reeleição garantida.

Um raio de luz. Surge da Escócia pátria de fantasmas, nevoeiros, gás natural e “scotch”. Uma demonstração de pulsar democrático e de genuína defesa unida pelo interesse público histórico, não apenas do momento. O “não” à independência da Escócia, apesar das lágrimas e afectos que mobilizou, repôs o bom senso e ajudou a Europa. Conservadores, liberais e trabalhistas uniram-se pelo “não”, oferecendo garantias de devolução de reais poderes. O notável discurso de Gordon Brown, antigo primeiro-ministro trabalhista, certamente ajudou pela emoção racional. Quem venceu foram os escoceses e o Reino Unido. Aqui foi o populismo o derrotado.

Professor catedrático reformado

P.S.: Nesta página que subscrevo no Público, chamada Terra e Lua, no passado dia 15, o texto Lua não vinha assinado, o que induzia a pensar ter sido escrito pelo responsável pela página. Por lapso, foi omitido o nome do seu real autor, João Ferreira Cruz. Seguindo a moda, mas por boas razões, peço desculpa ao autor e aos leitores.

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