Salvar o comércio tradicional para o Porto não ser uma “cidade gourmet”
No dia em que o P3 comemora três anos pedimos a algumas pessoas que fossem o génio da lâmpada e apresentassem três ideias de futuro. Para o realizador e jornalista Pedro Neves, é "urgente" tomar medidas para que a identidade do Porto não se perca — e o cinema pode ajudar
1. Preservar o comércio tradicional e os nativos
O Porto é, cada vez mais, uma cidade cosmopolita, aberta a novas culturas e visitantes. Vejo uma cidade dinâmica cheia de criação cultural fruto de muita persistência e paixão dos seus habitantes e agentes que remaram muito contra a maré e não se deixaram abater. Vejo também o aproveitamento de espaços antigos, novos usos a velhos prédios e objectos que ganharam nova vida. Contudo, preocupam-me estes novos tempos. A especulação não tem tempo a perder. Os aumentos brutais das rendas empurram os habitantes de sempre, nomeadamente os reformados com pequenas pensões, para fora do centro da cidade. Atrás deles vão os filhos e os netos em busca de habitação digna a preços que possam pagar.
O comércio tradicional, sejam as lojas, os pequenos cafés ou as mercearias que foram resistindo tantos anos, vão fechando portas para dar lugar a novos espaços. Com isso, a cidade vai acabar por se perder.
As reabilitações estão a colocar a fasquia demasiado alta para novas famílias que, em tempos tão precários e de crise, mal ganham para se poderem sustentar. Acabam perante duas escolhas: ou uma casa a cair de podre, ou os novos T0 e T1 a preços proibitivos a casais com filhos que precisam de mais espaço. Cada vez se reabilitam mais prédios para apartamentos de aluguer a turistas. Os nativos, as gentes de sotaque acentuado, que penduram camisas de dormir e cuecas à janela, começam a desaparecer e vão deixando de ter lugar numa cidade que também é sua. As classes altas e os turistas não fazem uma cidade, do mesmo modo que os guetos são sinónimos de exclusão. A cidade é feita de memórias, de gente de todos os lugares, de mistura, de conhecimento, de cultura, de antigos e novos hábitos, com mais ou menos sotaque. É feita de gente que aqui nasceu, na terra onde os seus avós já tinham nascido e viam os filhos e netos brincar pela ruas. E de gente que aqui chegou para fazer desta cidade sua. É isso que dá vida ao Porto e que faz dele uma cidade única.
O turismo é bem-vindo e há espaço para mais. Mas não chega. O património edificado não é suficiente para sustentar uma cidade que é sempre erguida nos alicerces das gentes que a habitam e que lhe dão o seu carácter tão especial. Não quero ver a Rua da Picaria sem carpinteiros e lojas de móveis, a Rua ao Almada sem as lojas de ferragens, a Rua do Loureiro sem tabernas, o Bolhão transformado num centro comercial. Os novos espaços podem e devem coabitar com os antigos.
É urgente tomar medidas para que a identidade da cidade não se perca, reabilitar edifícios com rendas bonificadas que permitam a permanência dos habitantes e o regresso das famílias ao centro da cidade. É o que faz o Porto ser o Porto, é precisamente não ser, nem nunca ter sido, uma cidade gourmet.
2. Criar um fundo municipal para os produtores e realizadores do Porto
Depois de anos negros para a cultura do Porto, que foi sempre criando com brutais dificuldades e muita imaginação, voltou a respirar-se na cidade. A cultura deixou de ser lazer para passar a ser ela própria. Há novos eventos e acontecimentos. Em Dezembro haverá lugar a um novo festival de cinema documentário. O Porto Post Doc é um festival que o Porto, que sempre foi uma cidade com fortes ligações ao cinema, precisava. É um festival bem pensado e estruturado e que tem intenção de crescer e de se fortalecer. As sessões começaram já há uns meses, aos domingos, no Passos Manuel. Vão-se criando rotinas que criem mais público, que mostrem um cinema do real que muitos desconhecem, que permitam novos olhares sobre realidades diferentes.
A produção de cinema, sejam curtas ou longas, ficção ou documentário, ajuda a fazer a identidade de um país, de uma região, de uma cidade. Sem imagens, não existimos, não deixamos marca, não retratamos os tempos, não reflectimos sobre nós próprios e o que nos rodeia. Todavia, a produção de cinema em Portugal é brutalmente centralizada em Lisboa.
No Porto, cidade de Aurélio Paz dos Reis e de Manoel de Oliveira, produz-se e sempre se produziu cinema mas com muito mais dificuldades. Os seus cineastas independentes têm resistido quanto podem. Muitos foram obrigados a sair, a tentar produzir em Lisboa ou mesmo fora do país.
Noutros países como França, existem fundos regionais ou municipais para as produtoras e realizadores das cidades onde se encontram. O Porto podia fazer o mesmo. Há muito para mostrar, muito para reflectir, muito para filmar, seja no Porto ou fora dele mas por gente e empresas da própria cidade. Não falo de filmes promocionais, de vídeos publicitários. Falo de filmes, de documentários, de ficções que ajudem a levar o nome da cidade e dos seus criadores além fronteiras a partir do Porto. Muito mais do que os efémeros painéis publicitários, o cinema marca uma época, um tempo, fica na história e no património material e imaterial da cidade.
3. Ouvir quem verdadeiramente conhece situações de emergência social
Nas minhas actividades de documentarista e de jornalista, visitei inúmeras vezes casos de emergência social. Idosos abandonados, gente sem esperança, pessoas a viverem em barracas e casas degradadas, desempregados de longa duração. Conheci pessoas com passados complicados, presentes intranquilos, futuros negros. Com a crise tudo piorou. Há mais desemprego, mais precariedade, mais sem-abrigo, menos felicidade e expectativa de futuro. Conheci também aqueles que não desistem, que fazem do combate às desigualdades e à injustiça autênticas causas, batalhas de uma vida inteira. São assistentes sociais, super-homens e mulheres que se embrenham na penumbra, na humidade, em conflitos que parecem insanáveis que tentam resolver a todo o custo.
Já se tentaram diversas abordagens para resolução de problemas estruturais que vêm de longe. Contudo, muitas vezes, os estudos e as resoluções são feitos por técnicos sem conhecimento de causa, por burocratas que não saem dos gabinetes, que olham para as pessoas como números, que têm medo de sujar as mãos, de olhar olhos nos olhos, de chafurdar cinco minutos na lama que cobre o corpo inteiro de tantos. Gasta-se tempo que não existe, constroem-se em puzzles onde faltam peças, empurram-se as pessoas e os seus problemas para debaixo de um tapete sujo.
O que sugiro é que se comecem a ouvir estas pessoas. Que lhes peçam opiniões, que escutem quem anda todos os dias no terreno. Que tenham em conta quem vai à raíz dos problemas, quem vê gente como gente e não como dados estatísticos, que tem conhecimento e vontade e ajuda a encontrar soluções que pareciam impossíveis.