O regresso aos álbuns de Vashti Bunyan termina aqui
Depois de ter andado desaparecida da música durante 35 anos e sido salva do esquecimento por gente como Devendra Banhart e Animal Collective, Vashti Bunyan voltou aos discos e anuncia agora que Heartleap é o seu último álbum. Foi o suficiente para a sua frágil voz refazer a discografia que fora abruptamente suspensa.
E quase como acto punitivo para si mesma, a cópia que guardava era uma vulgar gravação em cassete que alguém lhe arranjara. Certificava-se assim de que nas ocasiões em que voltasse a enfrentar esse pedaço avulso de um passado que a defraudara, o embate teria forçosamente de a colocar perante um fragmento de vulgaridade, anónimo, indistinto a olho nu, uma corriqueira cassete coberta não tanto por toalhas de mesa ou roupa interior quanto por uma camada de vergonha.
E foi na gaveta que ficou até a internet desenterrar inesperadamente o passado de Bunyan. Quando se viu de computador à frente, não resistiu a teclar o seu desejo mórbido de perceber se Diamond Day tinha deixado algum rasto, e só então percebeu que o álbum não só não ficara irremediavelmente sepultado lá atrás como encontrara lentamente o seu público ao longo dos anos – graças sobretudo a um bootleg de origem desconhecida, criado a partir de um exemplar em vinil gasto e riscado. “Consegui arranjar um desses discos, fiquei atónita e foi isso que me fez avançar para a reedição em CD – depois de passar dois anos a procurar a master da gravação”, conta ao ÍPSILON. “Descobri finalmente a pista de que estaria num armazém em Londres, onde permaneceu intocada durante 30 anos e fui buscá-la. Foi maravilhoso chegar lá e ter aquela caixa de fita nos braços.”
Nessa altura, Bunyan já tinha conseguido fazer as pazes com o álbum que tanto a amargurara durante mais de 30 anos. Desligada da fase final de misturas e masterização, dada a sua emigração de Inglaterra para uma comuna fundada por Donovan na Escócia (onde ainda hoje vive e se diz favorável ao movimento de independência face ao Reino Unido) e a sua recente maternidade, reconhece que “o disco saiu muito diferente daquilo que tinha imaginado”. “E então virei-lhe as costas, desapareceu simplesmente – do mundo da música e do meu mundo. Só que foi, ainda assim, uma desilusão por quase ninguém o ter ouvido e nos raros casos em que o fizeram ter sido desvalorizado como canções de embalar para crianças ou uma peça musical totalmente irrelevante que merecia desaparecer no interior de um caixote do lixo. Acabei por concordar com essas opiniões porque não ouvi nenhum comentário positivo e, por isso, presumi que era lixo. O facto de, mais tarde, outras pessoas se mostrarem entusiasmadas mudou a minha percepção. Claro que isto não diz nada de muito positivo sobre mim, mas foi assim que aconteceu.” Percebendo na sua mãe essa mudança e a limpeza cuidada do azedume em que tinham ficado a borbulhar as memórias relativas a Diamond Day, os filhos lá lhe confessaram que a desrespeitavam e ouviam a cassete às escondidas no rádio do carro, fantasiando sobre aquele passado musical que ela tão desesperadamente teimava em esconder.
35 anos
Quando, em 2000, Just Another Diamond Day deixou de ser peça rara vendida em leilões (em que atingia facilmente os mil euros por um exemplar em bom estado), Bunyan viu-se subitamente levantada em ombros, adorada como divindade e declarada figura nuclear de uma comunidade free folk em pico de popularidade que a elegia como epítome de uma música ancorada nos cancioneiros da Incredible String Band e dos Fairport Convention (músicos dos dois grupos tinham, aliás, participado no seu “disco falhado”). A esta sonoridade juntava, no entanto, uma voz bela e delicada que parecia poder desfazer-se na esquina de cada verso. O charme imenso destas canções antecipava, de facto, em muitos anos a chegada de um Devendra Banhart que se tornaria um dos seus principais fiéis, convidando-a para o seu Rejoicing in the Hands em 2004. Pouco depois, eram os Animal Collective que se juntavam à exaltação colectiva ao gravarem com Bunyan um EP de quatro temas intitulado Prospect Hummer. “Ao encontrarem os seus públicos, eles incluíram-me e construíram um lugar para mim. Vou-lhes ser eternamente grata por isso”, confessa.
Mais do que uma distância de 35 anos entre 1970 e 2005 – respectivamente, anos de edição de Just Another Diamond Day e Lookaftering –, o fosso entre o primeiro e o segundo álbuns era definido sobretudo pelos contornos do sonho que lhe estava associado. Em 1970, embora com um investimento mínimo, Bunyan esperava secretamente que o mundo (mesmo que pequenino) desse pela existência da sua música e a reconhecesse como válida. Em 2005, o seu segundo álbum, composto após largos anos de se sentir “muito desapontada e desolada com aquilo que tinha acontecido” e “um falhanço completo na música”, era aguardado com extremo interesse. Também porque no meio desses dois momentos, Vashti zangou-se o suficiente com a música para a ouvir o menos possível e só limpou o pó à guitarra para ensinar o filho mais velho a tocar. “De repente”, recorda em relação ao momento em que venceu a desconfiança relativa ao seu talento para as canções, “pude pegar novamente na minha guitarra sem sentir que soava terrivelmente. Durante todos esses anos, sempre que lhe pegava não suportava ouvir a minha própria voz porque trazia aquele período de volta. Só depois recomecei a compor.”
Nem uma canção escrita em 30 anos. Lentamente, a partir de 2000 e animada pela paixão alheia, fazia dez novas composições. Só que, apesar de feliz por poder fazê-lo novamente, não conseguia anestesiar o medo de que as canções não prestassem. “Estava muito preocupada com a possibilidade de não estar à altura do culto que se formara”, admite. “Até porque esse culto se formara em torno do Diamond Day e residia muito no seu carácter transcendente, sonhador e fantasioso. Algo que, volvidos 30 anos, não estava presente da mesma maneira, eu vivia num mundo muito diferente daquele que existia na minha cabeça ao compor o Diamond Day. As canções do Lookaftering eram essencialmente um olhar para trás, tentando atribuir algum sentido àqueles anos intermédios e estava preocupada que as canções pudessem ser demasiado realistas e mundanas para quem tinha gostado do Diamond Day.”
O álbum derradeiro
Só que a mundanidade nunca poderia ser demasiada, uma vez que a voz soprada de Vashti Bunyan remete com uma precária e impoluta fatalidade para um qualquer cenário idílico, pouco respeitador da lei da gravidade e rodeado de uma natureza em estado virgem. Era assim em Lookaftering, é ainda assim em Heartleap, o seu terceiro e derradeiro álbum. Derradeiro por duas razões: a cantora acredita que o tema-título “condensa todas as canções que alguma vez quis escrever e diz tudo aquilo que alguma vez quis dizer” e, por outro lado, sabendo do labor vagaroso que dedica a cada tema, tem a certeza de que se esperar por mais sete a nove anos para voltar a gravar a palavra “álbum” já estará muito provavelmente a cair no esquecimento. “Se compuser mais alguma coisa”, avisa, “quero lançá-la de imediato, não quero esperar anos. Sou muito lenta a compor e a gravar, e demoro muito a sentir confiança nas canções.”
Heartleapé também uma afirmação de emancipação tardia. Durante os nove anos que antecederam a sua edição, Vashti Bunyan dedicou-se à composição mas também à aprendizagem dos processos de gravação que lhe permitiriam trabalhar sozinha – excepção a umas pequenas perninhas de Banhart e dos Vetiver –, sendo essencialmente um álbum de guitarra, de um piano que toca com graciosidade mas sem grande perícia (uma mão de cada vez) e que, garante, a aproxima dos seus primeiros tempos autorais. “Nessa altura sabia que tinha uma série de orquestrações na minha cabeça, mas não conseguia fazer nada com elas. Agora, com a programação em computadores e um teclado, tenho tudo à mão, faço tudo com os meus meios e tiro essas orquestrações da cabeça lançando-as ao mundo.”
A chegada a Heartleap marca também o tempo necessário para inverter por completo a sua relação com Diamond Day. A dor está já tapada, a sua discografia cumpriu-se para além do objecto solitário e Bunyan conseguiu que as canções saíssem dos fundos do reconhecimento popular, ficando expostas, e refazer a sua existência musical – como acontece agora com Linda Perhacs, esperamos ainda poder vir a suceder com Sibylle Baier mas, infelizmente, já não chegou a tempo de Karen Dalton, todas escorregadas pela década de 70 abaixo e sem perspectiva provável de redenção ao dessintonizarem-se de um mundo que não as compreendeu no devido tempo. Bunyan conseguiu corrigir a história e pode agora dedicar-se à escrita do livro que tem em mãos. A temática é familiar: o seu percurso até à edição de Diamond Day. Afinal, é esse ainda o momento capital da sua vida.