Escrever na camisa

Romain Puértolas, 38 anos, é o mais recente fenómeno editorial francês. A incrível viagem do faquir que ficou fechado num armário IKEA foi vendido para 36 países mesmo antes de estar publicado em França. Chega agora a Portugal

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ENRIC VIVES-RUBIO

Em 2013, o livro que conta a história do faquir indiano Ajatashatru Larash Patel, que decide ir a Paris comprar uma cama de pregos que viu no catálogo do IKEA e acaba envolvido nas redes de imigração clandestina - a personagem vive uma série de aventuras em vários países, da Europa ao Norte de África -, foi publicado em França e os seus direitos vendidos para mais de 36 países. O  autor, que quando escreveu o livro ainda trabalhava na Polícia Nacional francesa (analisava os fluxos de imigração regular que passam por toda a parte no mundo e fazia sínteses para o director da Polícia de Fronteiras), abandonou o emprego para viver da escrita. Entretanto Romain Puértolas, 38 anos, esteve a trabalhar na adaptação ao cinema do livro (que irá sair em livre de poche para o ano) e o seu próximo romance vai ser editado em França em Janeiro de 2015. No site www.romainpuertolas.com já há uma frase de promoção que lembra um slogan publicitário “O amor dá-nos asas”.

Num hotel de Lisboa, onde está pela primeira vez, Romain, natural de Montpellier, aparece vestido a rigor. Além dos sapatos coloridos traz uma camisa branca, escrita à mão com uma caligrafia perfeita, que costuma usar para estas ocasiões em que anda a promover o seu best-seller

“A ideia para este livro aconteceu-me, como sempre, como com todos os livros que escrevi: as ideias foram-me aparecendo à medida que ia escrevendo. Tal como me aconteceu agora, enquanto ia sendo fotografado iam-me surgindo frases, por isso estava a tomar notas antes de começarmos a conversa”, explica, lembrando que é o oitavo romance que escreveu e o primeiro a publicado por uma editora tradicional.  “Os outros foram todos recusados pelos grupos editoriais”, diz. Não sabe explicar por que é que o editor escolheu este e não os anteriores. Enviou sempre os livros para editores diferentes mas para Le Dilettante enviou dois, um que tinha escrito antes deste - Le jour où Shakespeare a inventé le Moonwalk - e A incrível viagem do faquir que ficou fechado num armário IKEA.  

O primeiro, que foi recusado, conta a história de um jovem de 30 anos com trissomia 21, síndrome de Down, que está a tentar fazer uma espécie de internet em papel - anota tudo o que aprende em caderninhos, para se um dia houver algum problema com a internet ter tudo anotado; vai ser um detective infiltrado num caso de assassinato num centro de ensino especial. Romain Puértolas não sabe se o editor que lhe enviou a carta a dizer que ia publicar o romance do faquir leu também este ou se foi lido por outra pessoa. “Recebi uma carta com a recusa e a explicação que me davam era que o meu personagem com síndroma de Down era demasiado inteligente”, conta, a rir-se. “Não tentei mais enviar esse livro e comecei a escrever este do faquir Ajatashatru Larash Patel.” 

A aventura no sentido forte do termo
O livro publicado é muito semelhante ao que enviou para a editora. As modificações que o editor lhe pediu para fazer estão relacionadas com o universo dos imigrantes clandestinos. “Acrescentei quatro ou cinco páginas com pequenas histórias relacionadas com os clandestinos. Eu não achava que o assunto da imigração ilegal fosse interessante para os leitores porque esse era o meu trabalho. Por isso quando o editor leu o livro disse-me que estava bem mas pediu-me para desenvolver mais essa parte e acrescentei. Quanto ao resto, tudo já estava escrito.”
 

A determinada altura, o narrador afirma que o faquir Ajatashatru acabara de compreender, por causa dos clandestinos, “que tinha à sua frente os verdadeiros aventureiros do século XXI. Não eram os navegadores brancos, nos seus barcos de 100 mil euros, nas corridas à vela, nas voltas ao mundo solitárias que só interessavam aos patrocinadores. Esses já não tinham nada para descobrir.”
Em Lisboa, Romain explica que quis mostrar que hoje já não há muita aventura porque “com as imagens de satélite podemos ver o mundo em toda a parte, no Google Maps podemos procurar tudo, já não há terra incógnita como antes. Pelo contrário, os clandestinos são pessoas que viajam sem saberem exactamente onde estão e para onde vão. Quando atravessam o Mediterrâneo fazem-no em pequenos barcos de pesca, são centenas nestes barcos, têm naufrágios, há muitos que morrem, é mesmo a aventura, a aventura no sentido forte do termo. Por isso eles são verdadeiramente os últimos aventureiros do nosso século.” 

Por isso, a história icónica dessa realidade é para Romain a daquele jovem rapaz a quem o faquir dá uma nota 500 euros para que ele possa realizar a travessia e que não vai ser bem-sucedida porque há um naufrágio e ele morre. “Essa é uma realidade quotidiana, todos os dias são como esses, mesmo se não se fale na televisão. Costuma falar-se quando há um naufrágio grande mas há pequenos naufrágios todos os dias e pessoas que morrem todos os dias. E essa personagem representa-os a todos”, aos “clandestinos cujo único pecado era não terem nascido no lado certo do Mediterrâneo.”

Autobiografia fantasista
O seu trabalho na Polícia Nacional era de representação internacional ou na Comissão Europeia em Bruxelas ou em Varsóvia e um pouco político. “Não era um trabalho de acção, na rua. Eu recebia todas as informações e fazia sínteses”, diz Puértolas que é linguista de formação mas desde pequeno que queria ser inspector de polícia. “Todos os dias recebia relatórios de todos os pontos em França do que acontecia nas fronteiras durante o dia. E todos os dias há muitas histórias.”

Mas todos os países por onde passa o faquir - menos a Líbia - são sítios que o escritor conhece. Em Barcelona trabalhou no aeroporto durante cinco anos; em Roma esteve hospedado no hotel onde a personagem às tantas se desloca; em Inglaterra viveu durante um ano, e aí aprendeu a pilotar aviões, no aeroporto de onde a personagem foi expulsa. “São todos lugares que conheci. Este livro é uma espécie de autobiografia fantasista.” 

Se se fizer uma busca na página oficial de Romain Puértolas podemos ver que já foi DJ, professor, controlador aéreo, piloto e polícia podemos até espreitar alguns dos seus delírios de juventude: uma série de videoclipes em que canta canções da sua autoria e também alguns dos episódios do programa The Trickbusters Show, que colocava no YouTube onde explicava como se fazem truques de magia, à maneira de James Randi. A conta foi fechada 11 vezes pela companhia de David Copperfield.

No romance, o faquir que Romain Puértolas inventou transforma-se em escritor de best-sellers e começa a escrever num porão de um avião naquilo que tem à mão, incluindo na roupa que veste. “Quando ele escreve na sua camisa os dois primeiros capítulos do seu livro…”, conta Puértolas, apontando para a camisa branca que traz vestida. Também ele escreveu na sua camisa ou foi um estilista que o fez a seu pedido, tão certinha está a caligrafia? “Não! Fui eu que a fiz!”, responde veemente e começa a procurar canetas num estojo. “Não sei se a trouxe, é uma caneta que uso para brincar com os meus filhos, uma caneta com tinta especial para tecido. Demorou-me três horas. Fiz isto para ir a um programa de televisão, para a minha primeira apresentação lembrei-me de fazer a camisa do meu faquir.” 

Tal como o seu faquir, não pára de ter ideias. Já está a escrever aquele que será o seu terceiro livro publicado. “Eu faço tudo, escrevo no Twitter, no Facebook, mantenho o meu site. Faço as capas dos meus livros. O próximo livro que vai sair em França fui eu que fiz. Adoro fazer tudo”, diz com ar despreocupado.

Até parece fácil. Escreve um livro em semanas, em qualquer lugar, até no telemóvel durante as viagens de metro. “Tenho imensas ideias. Não tenho a síndroma da página em branco. Eu tenho a síndroma da página negra. Tenho muitas histórias, tenho vontade de dizer stop, stop, pára de criar mas todos os dias tenho ideias para romances. As ideias acontecem-me, quer esteja no avião quer esteja na peixaria. É por isso que escrevo em toda a parte e há esta metáfora de escrever na minha camisa. A metáfora que criei para dizer que escrevo todo o tempo e em toda a parte. De tal maneira, que até escrevo na minha camisa”, diz soltando uma gargalhada. 

 

 

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