Taiwan envia um pedido de amizade a Portugal, política à parte
Há quase 40 anos, o governo português disse a Taiwan que tinha de fechar a sua missão diplomática em Lisboa. O status quo permanece hoje. E Taiwan continua a tentar ter uma relação com Portugal, política à parte
“Portugal é como um pepino. Taiwan é como uma batata doce”, disse, sorridente, em inglês, descrevendo as silhuetas dos dois países. Os rapazes olharam uns para os outros, como se tentassem discernir o que queria dizer isso de viverem num país-pepino.
Ela prosseguiu, com o entusiasmo de um treinador desportivo, num inglês mais rudimentar do que a tradução sugere: “Alguém sabe a área de Portugal?” Os destinatários retraíram-se. “Não? Penso que é 92 mil quilómetros quadrados. Taiwan só tem 36 mil. Mas nós temos 23 milhões de habitantes. Portugal tem 10 milhões.” Não que fosse uma competição. Quase como se quisesse reduzir a importância dessa diferença, a seguir ela explicou que a população se concentra quase toda na costa oeste, porque o resto do território é montanha. Na verdade, a expressão que ela usou foi “vive muito apertada”.
Os taiwaneses nunca se contentam com aquilo que têm, dirá alguém mais tarde, falando por experiência própria. Os portugueses também não, acrescentará o mesmo taiwanês, falando por experiência própria. Empate técnico, portanto. 0-0. 1-1, vá.
O fim da relação com Taiwan
Portugal cessou relações diplomáticas com Taiwan em 1975, durante o período revolucionário. Macau foi um dos principais motivos: interessava ao Governo português ter uma relação com a China para negociar o futuro daquele território, que durante o Estado Novo fora um símbolo da dominação imperial, mas agora, com a descolonização dos países africanos, ameaçava tornar-se um embaraço, como Carmen Amado Mendes, professora de relações internacionais na Universidade de Coimbra, explica no seu livro Portugal, China and The Macau Negotiations, 1986-1999, publicado no ano passado.
Portugal rompera relações diplomáticas com a China comunista de Mao Zedong em 1949. Salazar nunca reconheceu qualquer legitimidade à República Popular da China, estabelecida nesse ano, em resultado da guerra civil entre maoístas e nacionalistas. Mas, em Janeiro de 1975, um novo governo de esquerda (liderado por Vasco Gonçalves, com Mário Soares à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros) anuncia a sua disponibilidade para estabelecer relações diplomáticas com a República Popular da China, que descreve como “o único representante legítimo do povo chinês”.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) solicita à legação de Taiwan em Lisboa que “sejam tomadas as medidas necessárias ao encerramento da mesma dentro de período de tempo conveniente para o efeito”. A 27 de Março de 1975, como se pode ler na página de Internet do Instituto Diplomático do MNE sobre as relações diplomáticas Portugal-China, Taiwan encerra a sua representação diplomática em Lisboa. Distanciar-se de Taiwan era um pré-requisito, se Portugal quisesse que a China respondesse ao seu gesto de abertura. Em 1979, quando a diplomacia entre Portugal e a China é formalizada através de um comunicado conjunto, Portugal reconhece Taiwan como “parte integral da República Popular da China”.
Até hoje. “O vosso governo abandonou-nos”, diz ao telefone Kuang-Jong Fong, subdirector do Centro Económico e Cultural de Taipei, que funciona como a representação do governo de Taiwan em Lisboa, embora não a título governamental ou oficial. Antes de vir para Portugal, Fong era diplomata de carreira na América Central, em El Salvador, um dos 21 países que reconhecem Taiwan como um Estado independente da China. Em Portugal, Fong não tem qualquer título ou estatuto diplomático. Não é diferente de qualquer outro residente estrangeiro.
“Cheguei em Janeiro deste ano e dei conta de que muitas pessoas aqui não sabem nada sobre Taiwan. Confundem Taiwan com a Tailândia”, diz Kuang-Jong Fong. “Precisamos de promover o nosso país.”
Foi o que levou o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Taiwan a apostar na diplomacia pública, enviando uma delegação de 16 estudantes universitários a Portugal, que designou de “embaixadores da juventude”. A iniciativa existe desde 2009: todos os anos, são mais de mil os estudantes que se candidatam voluntariamente. Apenas 124 são escolhidos, segundo “um processo de selecção exigente”, lê-se na nota de imprensa do Centro Económico e Cultural de Taipei.
“Eles viajam por vários países e têm múltiplas experiências. É muito diferente do que se pode ensinar na escola”, explica Kuang-Jong Fong, já não por telefone, mas presencialmente.
Esses 124 estudantes, provenientes de universidades diferentes, são divididos em oito grupos; cada grupo visita entre quatro a cinco países. Antes de Portugal, o grupo tinha estado na Dinamarca e na Suécia; depois de Portugal, seguiria para a Mongólia, etapa final, antes do regresso a casa. Ao todo, 31 países serão este ano visitados por estes “embaixadores da juventude”.
O meio académico, em particular a interacção com estudantes locais, é a principal prioridade da viagem, mas o programa em Portugal continha uma grande variedade, de um encontro com deputados na Assembleia da República à apresentação de um espectáculo de música e dança ensaiado durante seis semanas pelo grupo na Feira da Luz, em Carnide, entre o cheiro a fritos das roulottes de churros e os espasmos do sistema de som de barracas adjacentes. Ninguém disse que diplomacia era uma coisa fácil.
Tai-wa-ne-ses?
O segundo dia em Lisboa começou com uma visita à Universidade Lusófona, no Campo Grande, para um encontro com estudantes daquela instituição. Faltam cinco minutos para as dez quando o segurança diz que o grupo está a chegar. “Eles são muito pontuais. Mais pontuais do que os britânicos”, certificou. “Como é que se diz? Tai-wa-ne-ses?”, disse devagar, pronunciando cada sílaba. Não havia o perigo de este segurança, walkie-talkie no coldre, confundir Taiwan e Tailândia. “Para mim, é Formosa. Taiwan é inglês. São os ‘formosos’.”
E adivinhem quem é que lhes deu esse nome, Formosa, no século XVI.
“Portugal foi o primeiro país a visitar-nos. Vieram a Taiwan ainda antes dos chineses”, nota, mais tarde, Jhe-Min Lin, estudante de ciência política, 19 anos. “Passaram por Taiwan e baptizaram-nos: Ilha Formosa.”
O segurança tinha razão. Os taiwaneses foram pontuais. Cinco rapazes e uma rapariga do 9º ano, a turma mais pequena do Real Colégio de Portugal (privado, parte do Grupo Lusófona) tinham chegado pouco antes. Duas raparigas do grupo taiwanês traziam a boca tapada por máscaras de higiene. Um rapaz puxava uma enorme mala de viagem cor-de-rosa Samsonite, como se tivesse acabado de chegar do aeroporto. Dentro do pequeno auditório da universidade, a pequena amostra portuguesa sentou-se do lado esquerdo – os rapazes ocupando a primeira fila, a única rapariga do grupo e a professora atrás –, os taiwaneses do lado direito. A mala cor-de-rosa foi aberta ao meio e os embrulhos metodicamente arrumados começaram a revelar instrumentos musicais. Tambores, um mandolim, um violino chinês. É o que se chama vir preparado.
Um grupo adicional de estudantes de Ciências Farmacêuticas era esperado, mas ainda não tinham chegado meia hora depois. Um membro do staff da Lusófona foi procurá-los.
Hsiao-nee Chang, directora do Departamento de Assuntos Europeus do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Taiwan, uma diplomata que tem viajado com o grupo de embaixadores da juventude, aproveitou para afinar o seu português.
“CAAA-NII-DÉ?”, perguntou a um compatriota, apontando para o programa da tarde (“21h30: Espectáculo no Jardim da Luz, Carnide”). “Caaa-nii-dé”, confirmou ele.
Isso foi antes de ela desdobrar o mapa de Taiwan em frente dos rapazes do 9º ano e chamar pepino a Portugal. A extrovertida com cabelo à pajem era ela.
Aprender com Portugal
A sessão começou sete minutos antes das 11, depois de os estudantes de Ciências Farmacêuticas chegarem. O atraso ocorreu porque tinham estado a fazer um exame de segunda época. Tailleur de calça verde água, Teresa Damásio, co-administradora do Grupo Lusófona e directora para as relações internacionais, estágios, emprego e empreendedorismo, dirigiu-se aos taiwaneses em inglês. “Estamos no período de férias [escolares] em Portugal. É por isso que não temos muitos estudantes aqui connosco. Vocês chegam a Portugal num período bastante crítico. Temos uma enorme crise social, económica e política. Esta é uma instituição privada. Os estudantes pagam as suas próprias propinas sem qualquer ajuda do Estado. Nós só recebemos esse dinheiro para poder sobreviver.”
A seguir, os estudantes taiwaneses apresentaram-se um a um, erguendo-se das cadeiras. Primeiro o nome verdadeiro, depois o nome ocidental, para simplificar a comunicação (“You can call me Roger”), o curso superior e, quase sempre, uma ou duas cortesias sobre Portugal.
Kuang-Jong Fong, o subdirector do Centro Económico e Cultural de Taipei, levantou-se para falar. “Na quarta-feira da semana passada, o Fórum Económico Mundial divulgou o seu ranking de competitividade global.”
O discurso sobre o “milagre de Taiwan”, uma das economias que mais cresceu nos últimos 50 anos. Previsível.
Só que não era nada disso.
Fong continuou: “Portugal deu um grande salto. No ano passado estava em 51º lugar. Este ano está em 36º. São 15 lugares de diferença.” Taiwan, acrescentou, está em 14º, mas caiu dois lugares. “Isso quer dizer que alguma coisa está errada. Precisamos de aprender com Portugal.”
Nove meses de vivência talvez tenham chegado para Fong perceber que os portugueses são melhores a receber elogios do que a dá-los. Mais tarde, ele explicou o que queria dizer. “Tanto quanto sei, Portugal teve uma fase de grande crescimento. Em 2006 a economia parou e o país começou a perder competitividade. Agora, depois do sofrimento imposto pela troika, as pessoas aperceberam-se de que tinham de fazer alguma coisa para mudar a situação e o governo fez reformas nesse sentido. E é graças a isso que agora Portugal deu um salto tão grande. Se há uma diferença enorme é porque houve uma mudança profunda no interior do sistema. E as pessoas aqui são bastante decentes, pacíficas. Isso significa que esta sociedade tem uma boa disciplina. Com disciplina, mais cedo ou mais tarde, hão-de recuperar. Não se pode esperar bons resultados no futuro de um país sem disciplina.”
A operação de charme taiwanesa prossegue no auditório da Lusófona: vídeo de dois minutos com atracções turísticas, demonstração de caligrafia chinesa (“Vou mostrar-vos uma palavra, apenas: amor”, anunciou uma rapariga antes de pintar os caracteres chineses em papel de arroz), exibição de artes marciais, música ao vivo com instrumentos tradicionais chineses, e dança. Taipei mandara os seus X-Men para Lisboa, cada um com um talento especial.
Os jovens taiwaneses chamaram os estudantes portugueses para se juntarem a eles na dança final, dois países de braços entrançados um no outro, correndo à roda do auditório – um triunfo para diplomacia pública, aparentemente.
Depois chegou a vez dos portugueses falarem de si. Uma estudante ocupou a tribuna com o laptop e durante cinco minutos fez uma apresentação em Powerpoint sobre o mestrado em Ciências Farmacêuticas, a elevada taxa de empregabilidade do curso e o respectivo laboratório técnico. Foi tudo.
“Queremos fortalecer a relação bilateral entre os dois países”, diz o subdirector da representação de Taiwan em Lisboa, falando com o PÚBLICO. “Não é culpa nossa que... Há mais de não sei quantos anos que tentamos convencer o vosso governo a abrir uma representação em Taipei. Estamos sempre a dizer que isso beneficiaria a vossa relação com os países asiáticos porque Taiwan é um entreposto que faz a ligação com a China continental e outros países. Para vocês, seria muito conveniente”, explica Kuang-Jong Fong. “Além disso, somos o quinto maior investidor mundial. O que significa que temos uma abundância de capital. Certamente que se houver mais cooperação entre os dois países, os investidores irão considerar Portugal.”
Isso é possível, sem o restabelecimento de relações diplomáticas oficiais entre Portugal e Taipei?
“Somos muito pragmáticos”, confirmou Fong.