Quo vadis Alba?
O que está em causa neste referendo é a viabilidade do projecto político de criação de um Estado independente para uma nação já existente e respeitada internacionalmente.
Duas questões intrigam os comentadores e os europeus em geral: fará sentido uma Escócia independente numa Europa unida e num contexto de crise económica e financeira? Que implicações terá este processo para o Reino Unido em particular e para a União Europeia em geral?
A aspiração de independência da Escócia não é uma novidade e seguramente não é conjuntural. Resulta de um processo de autodeterminação que decorreu de forma incremental e pacífica. Se é verdade que nas últimas décadas esse sonho tem sido alimentado por um partido separatista – o Partido Nacionalista Escocês (SNP) –, hoje, a mobilização pelo “sim” é mais ampla no espectro político, angariando apoios quer de eleitores trabalhistas, quer de liberais democratas.
Não é apenas a existência e preservação de uma língua autóctone (aliás, falada por uma minoria), de um território próprio (que manteve as suas fronteiras inalteradas ao longo de vários séculos) e de tradições singulares que move esta causa, até porque a especificidade cultural e histórica escocesa foi sempre respeitada e valorizada no seio da união monárquica.
Também não se trata de uma reacção à crise económica e financeira que o Reino Unido ou a Europa atravessam, se bem que é precisamente em contextos de crise que a gestão de recursos públicos, as relações centro-periferia e as políticas de redistribuição de riqueza se tornam mais sensíveis. As questões de natureza macro-económica (moeda, sistema bancário, dívida, petróleo do mar do Norte, etc.) estão no centro do debate, mas tal como seria de esperar as opiniões dividem-se. Há, porém, duas certezas: a Escócia foi sempre pró-europeia (e adepta do euro) e resistente ao neoliberalismo de Westminster. Recorde-se, por exemplo, a decisão do Supremo Tribunal de Edimburgo contra a ofensiva do Governo conservador de Margaret Thatcher ao direito de greve dos mineiros ou ainda o célebre episódio da poll tax, bem presente na memória dos escoceses.
É sobretudo uma vontade de decidir com autonomia e de responder solidariamente sobre as decisões políticas tomadas em nome de um colectivo e que afectam o seu futuro. Por outras palavras, é um projecto político de uma, por uma e para uma comunidade diferenciada, que visa realizar um sentido de destino comum, a executar de uma forma plebiscitária, integradora e continuada no tempo. O que está em causa neste referendo, mais do que a vontade de auto-determinação, é a viabilidade desse projecto político de criação de um Estado independente para uma nação já existente e respeitada internacionalmente.
Uma eventual vitória do "sim" terá implicações directas no estabilidade política do Reino Unido e dos restantes países dessa união monárquica. Não se trata apenas das duas questões constitucionais geradas pela secessão, isto é, o futuro da união e o tipo de regime a instituir. O próprio sistema de partidos e de representação sofreria uma verdadeira convulsão a norte e sul da fronteira: em Westminster, o Partido Trabalhista, cujo bastião eleitoral é a Escócia, sofreria uma derrocada; em Holyrood, o SNP assumiria, inevitavelmente, a posição de partido dominante numa primeira fase, capitalizando eleitoralmente o sucesso do referendo. Mas nada disto é inultrapassável. Passado o período de euforia inicial, as instituições democráticas retomariam, num curto espaço de tempo, a sua normalidade. Embora o SNP tenha vindo a assumir uma posição de partido dominante desde as primeiras eleições para o Parlamento escocês (1999), a constelação de poder é mais diversificada do que poderá parecer à primeira vista: Glasgow e o Sul da Escócia são tradicionalmente trabalhistas e a franja celta (Aberdeen, Caithness, Sky, Inverness) liberal democrata. Os bastiões do SNP encontram-se sobretudo no centro da Escócia.
Não obstante a maioria dos europeus expresse uma simpatia singular pelos escoceses, quer pelo seu modo de ser (divertidos, tolerantes, trabalhadores), quer pelo seu enorme contributo para o capital cultural e civilizacional da Europa (basta lembrar o Iluminismo escocês), a independência da Escócia não seria um processo automático. A adesão do país à UE teria de passar pela aprovação unânime de todos os Estados-membros, mas ao contrário dos comentários inoportunos de Durão Barroso, sugerindo que esse processo seria “muito difícil, senão mesmo impossível”, não existem razões objectivas e políticas que sustentem esse cepticismo. A Escócia é uma democracia, rege-se pela primazia do direito, tem um mercado regulado e uma das nove economias mais ricas do mundo, portanto, apta para ser um Estado- membro da UE. Pensar que o Reino Unido “remanescente” vetaria a entrada da Escócia é improvável por duas razões: porque não é clarividente que o Reino Unido subsista como entidade política com a secessão da Escócia; e porque, mesmo que continuasse a existir, seria uma decisão económica e politicamente estúpida de Westminster, tendo em conta o nível de integração das várias economias insulares (incluindo a República da Irlanda). Além disso, a Escócia contaria com o apoio de muito países da UE que passaram pelo mesmo processo, nomeadamente as repúblicas da ex-Jugoslávia, a República Checa e a Eslováquia e de outros com os quais existe uma relação histórica especial (países escandinavos e do Sul da Europa, em particular Portugal e Grécia). A possibilidade de países como a Espanha, Bélgica ou Itália vetarem a entrada da Escócia na UE, numa tentativa de desencorajar impulsos independentistas semelhantes nos seus próprios países, é possível, mas seria politicamente absurda por duas razões: porque a tese de contágio não é empiricamente sólida (não só os processos de auto-determinação na Europa nos últimos 50 anos foram poucos, como nenhum teve lugar por referência a processos de autodeterminação noutros países – cada caso é um caso), portanto, um veto apresentado com esta argumentação acabaria por ter um efeito contrário ao desejado; porque a não adesão da Escócia empurraria o país para uma situação semelhante à da Noruega e da Suíça, ficando a própria UE a perder.
Qualquer que seja a decisão final do referendo, uma nação ergueu-se para deliberar pacificamente e por via democrática o seu futuro enquanto comunidade política independente. Uma lição de civismo para a Europa e para o mundo.
Universidade de Aveiro e alumnus da Universidade de Aberdeen