A adega futurista da Gran Cruz vai entrar no primeiro teste a sério
A maior exportadora de vinho do Porto investiu 16 milhões num projecto para juntar ao volume a criação de vinhos de ponta.
Tubos. Curtos ou compridos, na horizontal ou na vertical, tubos fixos e tubos suspensos de longos braços que traçam o limite de uma semicircunferência, tubos de inox nus ou revestidos com camisas de borracha que condicionam a sua temperatura, tubos no interior, no exterior ou debaixo de terra. Os tubos são a alma da adega futurista da Gran Cruz que começou por estes dias a funcionar pela primeira vez em pleno no Alto Douro.
São, ao todo, uns cerca de 35 quilómetros de tubos que ligam os pontos de recolha de mosto às cubas vinificadoras e daqui às gigantescas unidades de armazenamento que podem acolher até 360 mil litros de vinho. Gerir as ligações deste emaranhado seria um quebra-cabeças até para a mais disciplinada das equipas. Mas os riscos de se enviar vinho branco para uma cuba de vinho do Porto, ou de misturar água das limpezas com o vinho em evolução, são remotos: um sofisticado software, que exigiu a instalação de mais de 100 quilómetros de cabos de dados, torna essa tarefa mais rotineira e rigorosa.
Nos últimos anos, aproveitando a vaga exportadora que, entre 2004 e 2013 duplicou o valor das vendas de vinho português para o estrangeiro (excluindo o Porto e o Madeira), nasceram adegas de ponta um pouco por todo o país. Mas é difícil encontrar um lugar tão vanguardista e arrojado como a adega que a empresa detida pelos franceses da La Martiniquaise construiu a escassa distância de Alijó, mesmo no limite da fronteira Norte da região demarcada – a inauguração fez-se em Junho com a presença do Presidente da República, Cavaco Silva.
O administrador da empresa em Portugal, Jorge Dias, que foi académico, pioneiro da nova vaga da viticultura regional e passou pelo Governo e pelo Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, justifica o desenho final da obra, e a sua complexidade, com uma correlação de prioridades. “Foram dois anos de projecção e um ano de construção”, afirma.
Há muito que Jorge Dias e a sua equipa estudavam adegas de ponta um pouco por todo o mundo. Chegado à empresa em 2009, Dias tinha por missão dar uma nova vida a um gigante que, apesar de ser líder do mercado do vinho do Porto, com uma quota global de 23%, carecia de uma imagem de qualidade capaz de rivalizar com as suas concorrentes directas. Apesar de exportar em volume mais do que qualquer outra empresa, apesar de ter uma posição dominante no mercado francês que justifica a maior fatia de um volume de negócios que ronda os 75 milhões de euros, a Gran Cruz era vista como uma empresa passiva.
Desde então, a Gran Cruz surpreendeu com o lançamento de reservas de Porto branco antigas ou com o clássico Colheita de 1985 e lançou os seus primeiros vinhos do Douro. Tornou-se uma marca de referência no “novo” Porto Pink (rosé) e já é a terceira marca que mais vende em Portugal. Ao mesmo tempo, criou o Espaço Porto Cruz, na marginal de Vila Nova de Gaia, o que, em conjunto com a nova adega, fez subir o investimento para 25 milhões de euros.
Um sistema flexível
Quando o projecto arrancou e a equipa da Gran Cruz se sentou à mesa com o arquitecto Alexandre Burmester e os engenheiros da Afaconsult, era necessário pensar num projecto capaz de responder às diferentes fases da vida da adega ao longo do ano. “Fizemos um excelente trabalho de grupo e o arquitecto foi capaz de perceber bem as nossas necessidades”, diz Jorge Dias.
Esteticamente, o enorme edifício impõe-se na paisagem do planalto duriense pelas suas curvas ondulantes. No seu interior, uma estrutura sem paredes, rematada com uma enorme cobertura térmica, surpreende. “O arejamento de um equipamento destes é fundamental”, diz Jorge Dias. No interior, o que domina é a tonalidade metálica do aço inoxidável com que se fazem as cubas, as escadas, as plataformas e os tubos.
Todo o projecto foi feito por técnicos portugueses, incluindo a automação – estiveram envolvidas a Progresso, a Perfinox e a Cambra Systems. Só o software de gestão da rede de ligações entre as diferentes componentes da adega foi adquirido no estrangeiro.
A definição do projecto tinha como orientação a procura de um sistema flexível e prático, ajustado às necessidades de uma unidade de grande dimensão. Num dia normal, a adega consegue receber até 200 toneladas de uvas de mais de mil viticultores da região. No final de cada vindima, passarão pela adega umas 6600 toneladas de fruta que logo no início se dividem em duas categorias: a maior parte, umas 6000 toneladas, entra na linha principal de produção; mas as uvas restantes, de melhor qualidade, entram numa linha autónoma e recebem um tratamento mais cuidadoso para poderem dar origem a vinhos do Porto de categoria superior (Vintage, LBV ou vinhos com indicação de idade ou de data de colheita), ou reservas de vinho do Douro. “Na prática são duas adegas numa”, explica Jorge Dias.
A primeira linha de demarcação para as uvas que seguem para um lado ou outro faz-se com o registo dos agricultores. Todos os que acordaram com a Gran Cruz a entrega das suas uvas recebem um cartão com um chip que permite gerir de forma individualizada as suas entregas. Nos meses que antecedem a vindima, os produtores são acompanhados e informados da data em que devem vindimar. Poucos dias antes, têm de levantar na adega caixas de plástico que carregam até 160 km de uvas. Cada uma destas caixas tem um chip que é lido por um medidor com radiofrequência. Os dados da carga são enviados para o computador e cada agricultor fica imediatamente a saber que quantidades entregou e com que volume alcoólico provável. A equipa de enologia acede a este registo e, nas suas opções, pode jogar com outra informação prévia sobre as uvas que recebe – se são de zonas altas ou baixas, que castas dominam na vinha, etc.
As caixas deixadas na parte de recepção da adega seguem então dois destinos possíveis: vão para o grande volume ou têm qualidade para entrar na “adega gourmet”, de onde sairá vinho equivalente a umas 700 mil garrafas por ano. Se seguirem esta via, começarão por atravessar uma linha de produção onde serão desengaçadas de forma suave, entrarão em tapetes onde se faz uma primeira escolha de uvas com verdor ou podridão. As que não forem eliminadas nesta etapa serão sujeitas a um sofisticado controlo de triagem óptica, que as retirará da linha antes de entrarem na fase de vinificação. Feito o esmagamento, as massas descem então para o primeiro nível da adega para lagares robóticos onde entrarão em fermentação. “Com estas condições é mais fácil alimentar a nossa ambição de fazermos grandes vinhos”, diz José Manuel Sousa Soares, director de enologia da empresa.
Para os grandes lotes, as uvas desengaçadas e esmagadas seguem por tubos suspensos até as cubas autovinificadoras que ficam no piso dos lagares. Antes, recebem o primeiro tratamento sanitário e se, por exemplo, em causa estiver um vinho branco que requeira uma fermentação mais suave e dilatada no tempo, passam por longos tubos arrefecidos que fazem baixar a temperatura dos mostos.
Nas cubas com vinho tinto, para além do habitual recurso de regar a manta (as películas e grainhas das uvas) na sua extremidade superior, a Gran Cruz dispõe ainda de um sistema robótico que a desfaz e aumenta a área de contacto com o líquido – fundamental para a extracção de cor, de taninos e de aromas. Todas as cubas têm sistemas de aquecimento e de arrefecimento para controlo de temperatura na fermentação.
A falsa calma do Inverno
Ao lado das duas filas de cubas autovinificadoras gigantescas dispostas em semicírculo, esmagadores modernos fecham o ciclo da primeira vinificação. Depois de acabada a vindima, lá para meados de Outubro, a adega entra em pousio. Na aparência, pelo menos. Nos primeiros meses de vida do vinho o trabalho na adega é exigente. É necessário fazer lotes, proceder a trasfegas e arejamentos, transferir os últimos vinhos da parte da vinificação para o armazenamento e fazer a lavagem do equipamento. Na adega da Gran Cruz, todos estes processos se fazem com o recurso à automação. Dois ou três funcionários podem gerir uma adega capaz de armazenar 22 milhões de litros de vinho.
As conexões possíveis entre as cubas através da rede de tubagem chegam às cinco mil. Para transferir vinho de uma cuba para outra, o sistema informático apresenta quatro soluções e os técnicos têm apenas de escolher uma e avançar. Nas cubas, outra originalidade, não há “escalas” para mostrar a quantidade de litros existente: um radar interno fornece essa informação ao computador que gere o processo. Sempre que há uma movimentação de vinho, é necessário limpar as tubagens. Em Alijó, um sistema de “torpedos” trata de esvaziar as tubagens e permite a utilização em qualquer outra trasfega de vinho ou nas limpezas.
A adega de Alijó vai funcionar como a peça-chave de uma ampla rede de centros de vinificação espalhados pelo Douro que mobiliza as colheitas de 3600 agricultores. É aqui que a Gran Cruz espera fazer a diferença. Não só pelas condições de que dispõe para fazer a vindima, como pela gestão dos vinhos até ao momento em que a mobilização de 1400 camiões os transportar até aos casos e balseiros ou até às linhas de engarrafamento de Gaia.
Enquanto se prepara para a vindima que, a partir desta semana, entra na sua fase de aceleração, a equipa da Gran Cruz faz os últimos retoques nos equipamentos, instala a maquinaria mais sofisticada nas linhas de recepção. Ali serão produzidos dois terços das necessidades da empresa em vinhos do Douro e 24% do vinho do Porto. Sobre as suas cabeças paira um enorme desafio. Ter uma adega a par do que há de melhor no mundo obriga a Gran Cruz a disputar os primeiros lugares do ranking de qualidade dos vinhos do Douro e do Porto. Dentro de poucos anos saber-se-á se o desafio foi ganho.