Abenomics em crise, podem as mulheres salvar o Japão?

Com a política monetária expansionista a dar sinais de estar a atingir os seus limites e a concorrência externa a forçar o Japão a mudar se quiser crescer, o governo de Shinzo Abe aposta nas mulheres para dinamizar a economia do país. Estará o Japão preparado para isso?

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Shinzo Abe tenta apostar nas mulheres AFP/TOMOHIRO OHSUMI

O percurso desta engenheira, agora presidente de uma pequena empresa produtora de materiais de alta precisão para a indústria automóvel, está longe de ser um percurso normal. Principalmente para uma mulher japonesa. Pouco depois de nascer, o seu irmão mais velho morreu, o que levou o pai a criá-la como se fosse um rapaz. O que isto significava no Japão do século passado é que Takako Suwa estudou engenharia, um curso tradicionalmente dominado por homens, e depois foi chamada para trabalhar na empresa de que o pai era dono ao lado de uma maioria esmagadora de colegas masculinos.

A sua insistência em realizar mudanças profundas na pequena empresa de produção de modelos de peças para o sector automóvel rapidamente embateu na resistência dos funcionários mais antigos da empresa e do próprio pai, todos eles pouco preparados para ver uma mulher assumir qualquer papel de liderança. Por duas vezes, o pai afastou-a da empresa.

A morte do fundador há seis anos , contudo, forçou a sucessão. E Takako Suwa teve de enfrentar o desafio de se tornar uma pioneira num meio dominado tradicionalmente por homens. "Foram os trabalhadores mais antigos que me pediram para assumir a presidência, mas eu acho que eles pensavam que eu ia só servir para manter o nome da família. Quando viram que eu queria mudar as coisas na empresa para enfrentar a crise, não gostaram", afirma, lembrando também que no exterior, a empresa começou a ser vista com desconfiança. "Quando havia o rumor de que uma empresa tinha ida à falência, perguntavam sempre se tínhamos sido nós, apenas pelo facto de ser uma mulher que estava na liderança", recorda.

Agora, a confiança começa a melhorar, graças aos resultados que têm feito da Daiya Seiki uma das empresas de sucesso de Ohta City, a área de Tóquio onde se encontram cerca de 3000 PME e um dos locais onde os efeitos da crise económica japonesa mais se fazem sentir, com diversas empresas a fecharem portas depois de os seus fundadores morrerem.

Com esta história, não espanta que Takako Suwa seja frequentemente apresentada pelo Governo japonês como uma das imagens de marca para "vender" a sua estratégia de dar mais poder às mulheres e assim ajudar a economia do país a crescer.

Há um ano e meio, quando anunciou a sua estratégia para tirar o país da estagnação económica e da deflação em que se encontra há já quinze anos, o primeiro-ministro Shinzo Abe apostou numa política monetária mais expansionista do que nunca, prometeu mais investimento público e garantiu que iria realizar reformas estruturais para adaptar o Japão à nova realidade económica. Estas três "setas" constituem aquilo que se veio a chamar de Abenomics, o plano concertado de combate à deflação mais profundo apresentado por uma economia desenvolvida desde o New Deal de Franklin Roosevelt nos Estados Unidos, antes da Segunda Grande Guerra.

É nas reformas estruturais que se inclui a tarefa de dar às mulheres um papel de maior destaque no mercado de trabalho, usando assim uma mão-de-obra muitas vezes discriminada e claramente subaproveitada pela economia. E se as dificuldades enfrentadas por Takako Suwa na sucessão do seu pai não fossem suficientemente claras, bastaria olhar para as estatísticas internacionais para perceber que as mulheres no Japão têm, mais do que a maioria dos países, dificuldades em impor-se.

No ranking produzido em 2013 pelo World Economic Forum para medir as diferenças na economia, política e educação entre sexos, o Japão ficou no 105º lugar entre 136 países, apenas superando os países do Médio Oriente e da Ásia e ficando a larga distância da Europa (Portugal ficou em 51º lugar). E o mais grave é que nos últimos dez anos não se nota qualquer evolução positiva do Japão neste ranking.

A taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho é bastante baixa, em torno dos 50%, a meio caminho entre a Europa do Norte e o Médio Oriente. Em particular, o nascimento de um filho é ainda visto em muitos casos como incompatível com a manutenção no mercado de trabalho. Em 2013, 62% das mulheres que tiveram o seu primeiro filho deixaram de trabalhar. O regresso muitas vezes não acontece.

Conseguir promoções e trabalhos bem remunerados é também particularmente difícil. Apenas 11% dos cargos de gestão são ocupados por mulheres e a remuneração das mulheres é, em média, apenas 71% daquela que é obtida pelos homens.

"Temos vários muros que impedem o contributo das mulheres. A inexistência de infantários suficientes, a dificuldade nas promoções, porque só se promove quem trabalha mais horas e as mulheres têm mais dificuldades em fazer isso, o muro da reentrada após terem um filho e o muro dos sistemas fiscais e da Segurança Social, que não incentivam a entrada de um novo salário na família. Algumas coisas o Governo pode resolver, mas muitas envolvem uma mudança de mentalidade na forma como os homens vêem as mulheres e como eles próprios trabalham", explica Susumu Takahashi, presidente do Japan Research Institute, um dos principais think tanks do país.

Se o Japão conseguisse essa mudança, passando a registar os mesmos indicadores da média do G7, o efeito no PIB per capita do país seria de um aumento de 4%, de acordo com as contas do Fundo Monetário Internacional. E se chegasse ao padrão dos países do Norte da Europa, o acréscimo chegaria aos 8%.

Abenomics em risco de falhar
Se no início do mandato de Shinzo Abe o reforço da posição das mulheres era apenas mais uma componente da Abenomics, agora está a tornar-se uma necessidade absoluta. E isto acontece porque, nas outras frentes, a estratégia de combate à estagnação e deflação está a dar sinais de preocupante fragilidade.

Na semana passada, as autoridades anunciaram que a economia japonesa caiu 7,1%, em termos anualizados, um resultado que quebra a onda de maior optimismo que se instalou no país depois de, em 2013, com o banco central a injectar uma quantidade nunca vista de fundos na economia e o governo a regressar a planos de investimento agressivos, a economia ter reagido bem às primeiras dozes de Abenomics. A taxa de inflação subiu, parecendo caminhar para o objectivo de 2%, e a economia recuperou.

O que aconteceu agora? Etsuro Honda, conselheiro económico do primeiro-ministro e um dos homens que traçou a estratégia de Abenomics, espera que a quebra no segundo trimestre "seja apenas um fenómeno pontual e temporário". Foi em Abril que o Governo, para tentar manter sob controlo uma dívida pública que já ultrapassou a barreira dos 200%, aumentou a taxa sobre o consumo de 5% para 8%. Em Março registaram-se compras por antecipação em carros e em electrodomésticos, que depois caíram a pique no segundo trimestre. Etsuro Honda acredita que o facto de os consumidores e empresas estarem agora mais confiantes em relação ao desaparecimento da deflação (que os levava a consumir e investir menos) vai trazer de volta o crescimento económico já no terceiro trimestre.

Ainda assim, este economista alerta que "um factor fundamental a ter em conta vai ser a forma como os salários vão evoluir", admitindo que a manutenção de uma política de moderação salarial pode afectar a economia e forçar o Governo a adiar o novo aumento do imposto sobre o consumo que tem previsto para o próximo ano (para 10%).

Os mais críticos, contudo, receiam que a queda da economia seja mais do que temporária, alertando que as expectativas em relação ao fim da deflação podem sair abaladas por esta nova queda do consumo, o que por sua vez pode impedir a concretização dos aumentos salariais.

Seki Obata, professor na Universidade de Keio, em Yokohama, é um dos mais pessimistas. "O que aconteceu no ano passado é que tudo ajudava: as acções subiram, a despesa pública disparava e, por isso, o consumo subiu. Mas agora a política monetária e orçamental continuam expansionistas mas estabilizaram e deixou de haver motivo para consumir mais, há um regresso à normalidade", diz.

O regresso à normalidade para Seki Obata é, sem outras mudanças, um crescimento e inflação baixos, até porque "a desvalorização do iene tem vindo a ter um impacto reduzido cada vez mais limitado nas importações ao mesmo tempo que prejudica o poder de compra das famílias".

O certo é que, tanto entre os apoiantes como entre os opositores da Abenomics parece instalada a ideia de que, tal como aconteceu nos últimos 15 anos, não vai ser apenas a política monetária expansionista e os novos investimentos do Governo que vão arrancar a economia japonesa do estado de estagnação em que caiu.

"Fazer subir a taxa de crescimento para valores acima de 2% é um processo muito difícil para nós. Não depende apenas das empresas, do governo ou do banco central, implica uma mudança de toda a sociedade", afirma Susumu Takahashi.

Os últimos samurais
Na sua história dos últimos 200 anos, o Japão conseguiu por duas ocasiões operar mudanças radicais que muitos não pensavam possíveis. Abriu-se ao mundo exterior em 1853, depois de séculos de isolamento, e reconstruiu-se do nada depois da Segunda Grande Guerra para se tornar numa das maiores potências económicas mundiais.

Das duas vezes, foram pressões exteriores que forçaram o Japão a mudar. Desta vez acontece o mesmo. A aceleração do processo de globalização nas duas últimas décadas, em particular com a ascensão da crise fizeram com que o modelo económico japonês que tão bons resultados deu na segunda metade do século XX se tenha de repente tornado um problema.

O modo de funcionamento das empresas japonesas, onde trabalhar para além da hora e manter o mesmo emprego para toda a vida são regras, e a homogeneidade da sociedade, onde não há lugar para a imigração em massa, são agora desvantagens quando em concorrência com sociedades jovens, onde a inovação e a busca individual de riqueza têm levado a ganhos de competitividade.

O governo de Shinzo Abe promete a realização de mudanças em áreas como o mercado de trabalho e a regulação, para além de tentar combater a falta de mão-de-obra com a entrada de mais mulheres, mas há quem duvide da capacidade de o Japão concretizar uma mudança.

Akira Matsumoto, o CEO de 67 anos da Calbee - a empresa líder no Japão do mercado batatas fritas em pacote - diz-se "muito pessimista em relação ao futuro do Japão". "Estamos a mudar muito lentamente, o mundo está a mudar muito mais rápido. Temos de ter mais mulheres a trabalhar, temos de ter mais estrangeiros. Os japoneses ainda sonham que o modelo que nos trouxe até aqui continua a funcionar, mas é apenas um sonho, isso não vai acontecer", afirma.

No que diz respeito à imigração, que poderia ajudar o país a crescer mais no curto prazo e ao mesmo tempo resolver o seu grave problema de envelhecimento no médio e longo prazo, nem o governo nem a sociedade japonesa parece aberta a mudar as suas regras que limitam a entrada de trabalhadores não qualificados a um pequeno número de estágios com uma duração máxima de 18 meses. E hábitos como o trabalho para a vida não dão sinais de poder vir a desaparecer num curto espaço de tempo.

É talvez por isso que Shinzo Abe se vira cada vez mais para as mulheres. O casal Abe, actualmente bastante popular entre os japoneses, tem feito do tema um dos seus principais cavalos de batalha, usando repetidamente o slogan de que "é preciso deixar as mulheres brilharem" e organizando em Tóquio um evento anual internacional sobre o tema, a Assembleia Mundial para as Mulheres - WAW, que quer repetir todos os anos. Da conferência realizada este fim-de-semana, saíram recomendações específicas para o Japão, como o aumento do número de infantários, a abertura das fronteiras a estrangeiros que venham trabalhar nesses infantários ou a passagem para um sistema fiscal que leve em conta o rendimento individual e não o do casal. Uma das participantes, a directora geral do FMI, Christine Lagarde pediu aos empresários japoneses para abrirem o mercado de trabalho às mulheres. O representante das empresas presentes garantiu que muito já estava a ser feito.

Mas entre a promessa e a concretização há uma diferença. Conhecido por apostar nas mulheres na sua empresa - a Calbi tem muito mais gestoras do que a generalidade das firmas japonesas - Matsumoto tem especialmente dúvidas em relação à capacidade de Shinzo Abe para convencer as empresas japonesas a mudar a sua atitude nesta área. "Os outros líderes das empresas acham-me um pouco estranho. E nós somos apenas uma empresa de média dimensão. Se empresas  como a Toyota ou a Sony fizessem alguma coisa, o Japão mudaria, mas eu acho que eles estão à espera que Abe saia. Não têm qualquer vontade de fazer alguma coisa, estão confortáveis", afirma. O jornalista viajou a convite do Foreign Press Center Japan e do Ministério dos Negócios Estrangeiros japonês

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