O sexo da arte

Em O Mundo Ardente, Siri Hustvedt cria um universo ambicioso num livro que cruza ensaio e intriga de forma eficaz

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Um livro que atravessa os interesses da escritora: a literatura, a arte, a filosofia, as neuro-ciências Pedro Cunha

“Os começos são enigmas”, lê-se já o livro vai com umas dezenas de páginas. E, pelo começo, mesmo sabendo do enigma, esta podia ser uma obra de histeria. Uma mulher zangada com o modo como a sua condição feminina a minimiza no mundo das artes e que decide criar um embuste para provar que tem talento. Mais do que isso: que a ideia de talento não está isenta de uma avaliação de género. “A celebridade não é o que fazemos. É estarmos em cena, é sermos a cena…” E, em cena, a identidade é a do performer num jogo que pouco tem que ver com verdade. A verdade é a da obra onde o autor se pode esconder se for capaz de manter o jogo. “E se eu inventasse um artista que fosse todo ele crítica de arte, texto de catálogo, e nenhuma obra?”, desafia-se a mulher que se quer vingar num mundo onde até à meia idade não foi capaz de ser a celebridade em palco por questões que, acredita, têm menos que ver com a qualidade do que faz do que com o facto de ser mulher. A primeira frase poderia sustentar esse sentimento de histeria a comadar o resto: “Todo o trabalho intelectual e artístico, incluindo as piadas, ironias e sátiras, tem mais sucesso na mente da multidão, quando a multidão sabe que, algures por detrás da grande obra, ou do grande embuste, se encontra uma pila e um par de tomates.” É uma frase-grito de Harriet Burden, mulher, artista plástica, antes de se decidir pela máscara para ser “a cena” e começar a apresentar as suas obras com a assinatura de três homens, três artistas plásticos com biografias distintas que lhe permitem desenvolver a sua visão da arte e da identidade, dentro e fora desse universo.

De forma simplista, é este o conceito de partida de O Mundo Ardente, sexto romance da norte-americana de origem norueguesa Siri Hustvedt (n. 1955), um livro que atravessa os interesses da escritora: a literatura, a arte, a filosofia, as neuro-ciências trabalhados enquanto fundamento dessa ideia de máscara, num universo, que, sabe ela, a sinceridade pode ser um problema para a afirmação pessoal.

O retrato de Harriet Burden é apresentado depois da morte da artista, em 2004, através de diários e cartas da própria Harriet, com ensaios, textos críticos, entrevistas e testemunhos recolhidos junto de quem conviveu com ela. O romance nasce desta conjugação de discursos, múltiplas vozes, que a escritora gere de forma eficaz. A começar pela do editor desse texto maior, alguém com o nome de I.V. Hess, um professor de estética que é informado do grande projecto de vida de Harriet através de uma carta. O objectivo dela, soube ele, era não só expor o preconceito contra as mulheres que existia no mundo das artes, mas também desvendar os complexos mecanismos da percepção humana e o modo como ideias inconscientes sobre o sexo, a raça e a celebridade de um indivíduo influenciam a forma como um espectador compreende uma determinada obra de arte”.

O projecto é ambicioso. O de Harriet, a personagem, e o de Siri, a escritora. O romance poderia resultar numa chusma de ideias feitas e boas frases para citar sobre um tema nada original à volta de um equilibrismo ou paródia de identidades. Mas, na tragédia de Harriet, Siri consegue superar-se naquele que é o seu melhor livro, um exercício onde conjuga emoção e ensaio numa intriga onde não falta suspense e a dimensão humana — conferida por boas doses de ironia e pathos — capaz de transformar uma personagem de ficção em “alguém” tridimensional que se ama, ou odeia. E Harriet não é fácil de ser amada pelo leitor.

Fisicamente, ela está próxima da caricatura. Um metro e 88, mamas grandes, uma “omnívora movida por uma fome infinita, o desejo de devorar o máximo de conhecimentos que lhe fosse possível”, uma rapariga que queria ser artista e se casou aos 24 anos com um poderoso negociante de arte de Nova Iorque e se tornou a sua mulher extremada, anfitriã de festas na casa de Park Avenue, e mãe de duas crianças, que se dedicou à casa e cujo trabalho artístico passou a ser olhado como o hobby caprichoso da mulher de um caçador de artistas. Foi quando ele morreu que Harriet decidiu entrar em cena criando heterónimos para os seus trabalhos. Três homens passaram a assinar as suas peças. Entre 1998 e 2003 organizou exposições e em todas surgia atrás de um nome masculino. Anton Tish, o jovem bem-parecido e cobiçado pelas câmaras; o gay mulato Phineas Q. Eldridge, e o Rune, o representante do que se pode chamar a essência masculina. “Cada artista-máscara tornava-se para Burden uma ‘personalidade poetizada’, que não pertencia nem a ela nem à máscara e sim a ‘uma realidade mista criada entre ambos’”, escreve Richard Brickman, o autor da carta que seduz o professor Hess para o projecto de Burden. Um projecto que cruza ate e ciência e serve a Siri Hustvedt para esgrimir ideias e referências que vem coleccionado. Soren Kierkgaard e Fernando Pessoa enquanto testemunhos de bons executantes de “vozes múltiplas”, mas também há Freud, Sterne Vermeer ou Velázquez, Milton ou Emily Dickinson como figuras formadoras de uma personalidade inconformada e em luta contra o tempo.

Harriet Burden é uma muito boa ideia de Siri Hustvedt. Talvez uma protagonista à medida da ambição da escritora, com muito de autobiografia nos interesses e motivações num livro extenso (463 páginas) na edição portuguesa onde há a apontar, por vezes, um excesso de zelo para que tudo funcione quase de forma científica. Mesmo o erro, num jogo onde, adivinha-se à partida, o corpo nunca é alheio à obra que cria.

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