As lições das primárias de Obama

Uma nova forma de democracia está a germinar e a emergir progressivamente e a sua eclosão é inevitável.

Essas primárias catapultaram para a Presidência dos Estados Unidos um quase desconhecido jovem senador que apresentava como principais credenciais políticas a sua experiência como organizador comunitário nos bairros pobres dos subúrbios de Chicago. A verdade é que Barack Obama valeu-se dessa sua inusitada experiência para lançar uma campanha que deu voz à rua, ao cidadão comum, às pequenas comunidades e, a partir das bases, ergueu um dos maiores fenómenos de mobilização popular de que há memória na América.

Obama conseguiu organizar uma enorme comunidade de apoiantes entusiastas porque abdicou do controlo centralizado da sua campanha, muito comum nas organizações políticas habituadas a uma grande rigidez organizativa, e abriu espaço para a construção de uma rede auto-organizada (bottom-up) com base num diálogo transversal entre os diferentes níveis da sua estrutura de campanha. Obama deu voz aos seus apoiantes, através da disseminação de estruturas de base, promovendo a abertura de sedes em pequenas comunidades e organizando uma activa e bem apoiada rede de voluntários, apostando numa forte mobilização não apenas individual, mas comunitária. Um aspecto que se revelou decisivo para virar o jogo a seu favor nas primárias de 2008, fazendo a diferença na renhida disputa com a sua oponente Hillary Clinton, que no início da corrida era apontada como a grande favorita à nomeação pelo Partido Democrata.

Acontece que nada disto teria sido possível se Obama não tivesse tirado partido e usado com enorme mestria as tecnologias digitais. A campanha de Obama constitui, porventura, o mais interessante “caso de estudo” de marketing político de sempre, com recurso às tecnologias de informação e comunicação. Na verdade, até hoje, nenhum outro político conseguiu levar tão longe a sua causa usando as tecnologias digitais. Barack Obama protagonizou a batalha política tecnologicamente mais sofisticada da história, tendo dirigido uma campanha que potenciou de uma forma sem precedentes as comunicações digitais.

As comunicações móveis e as redes sociais constituíram desde a primeira hora um forte canal de conexão entre os apoiantes de Obama, não apenas na mobilização para as suas acções de campanha e na angariação de fundos, mas sobretudo na construção de uma comunidade de prática, uma rede baseada na participação e na co-responsabilização. Uma rede de pessoas que trabalharam juntas, aprendendo umas com as outras, discutindo e resolvendo problemas comuns e criando repertórios de experiência colectiva, de competências e de memória comum.

No final da sua campanha presidencial de 2008, no sítio online My.BarackObama.com, o novo Presidente eleito dos EUA contava com um motivado e bem treinado “exército” de 1,5 milhões de membros, reunidos em cerca de 35 mil grupos, em função da profissão, da área geográfica, ou de actividades comuns, que tinham organizado mais de 150 mil eventos e angariado, através de pequenos donativos individuais, a impressionante soma de 482 milhões de euros, cerca de 70% do total das contribuições para a campanha de Obama.

O que a estratégia de Obama veio demonstrar, tendo como decisivo teste as primárias de 2008, é que as tecnologias digitais podem contribuir para que os cidadãos se possam auto-organizar e serem parte activa do processo político. Basta, para isso, que as organizações políticas abdiquem do controlo centralista das suas campanhas e adaptem os seus modelos organizativos às novas dinâmicas sociais, tornando as suas estruturas mais leves e flexíveis, dando maior autonomia às organizações de base. Em suma, confiando às pessoas o poder de ajudar a construir o processo político.

O mais curioso é que este fenómeno pouco tem a ver com a tecnologia em si. A tecnologia é o instrumento, mas a lição mais importante a aprender com a inovadora e bem sucedida estratégia de Barack Obama é a forma como devem ser usadas e desenvolvidas um conjunto de ferramentas, que geram novas práticas e que multiplicam a participação popular e as probabilidades de eficácia da ação política. Isso permite aos políticos mobilizar os cidadãos e fazer com que estes confiem na sua ação e no funcionamento do sistema político.

Na verdade, desde há muito que se sonha com o dia em que possa emergir uma nova forma de fazer política orientada para um amplo diálogo entre os eleitos e os eleitores, onde a tecnologia seja usada não apenas como um mero adereço ou como um instrumento de encenação e manipulação, mas antes como um meio eficaz para aproximar os cidadãos da política e garantir a sua efectiva participação na construção da res publica. Muitos anseiam por um novo sistema político, construído não de cima para baixo (top-down), mas apostado em garantir níveis mais elevados de participação, representatividade e legitimação democrática. Um sistema político mobilizador, onde os cidadãos são parte integrante do processo de construção política.

Não há democracias perfeitas, mas há umas que manifestamente fazem um esforço de evolução e de aproximação aos cidadãos maior do que outras. Uma coisa é certa, uma nova forma de democracia está a germinar e a emergir progressivamente, mais rapidamente nalguns sítios do que noutros, mas a sua eclosão é inevitável.

Será que por cá os nossos políticos já se deram conta?

Militante do PS, especialista em Comunicação

 

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