A rua das retrosarias
Numa retrosaria, há uma espécie de organização perfeita do mundo que cabe numa caixa de botões. Dantes, as cidades também eram assim organizadas, cada tipo de botão na sua caixa, ou seja, cada arte com a sua rua. Terá sido por isso que tantas retrosarias se reuniram na Rua da Conceição, na Baixa de Lisboa? Não encontrei resposta para a minha pergunta nas antigas lojas centenárias que ainda hoje ali vendem botões, rendas e galões.
Em cima do balcão do n.º 95, estão duas caixas abertas e identificadas com etiquetas escritas à mão. Uma anuncia “travessões franceses” e a outra “travessões de tartaruga pretos”. Carlos Calheiros Cruz, que está atrás do balcão desta sua casa desde o início dos anos 1970, conta que o período áureo das retrosarias, no seu tempo, foram os anos 80. “A nossa força eram as modistas.” Mas, com o gradual desaparecimento destas e o domínio crescente do pronto-a-vestir, o negócio foi decaindo e hoje as retrosarias da Baixa são curiosidades para os turistas que as fotografam porque, segundo dizem, já não há disto nos países de onde vêm.
Hugo Barreiros, proprietário da Nardo, um pequeno império com duas lojas, uma de cada lado da rua, tem como prova da sua história antiga uma enorme máquina registadora National, que didacticamente explica no topo que “o freguez verá no mostrador a importância da sua compra”. Mas o dono não sabe a data exacta da fundação da loja que ocupa no n.º 87.
Sabe é que o negócio tem vindo a mudar e que as antigas retrosarias tiveram de se ir adaptando. As paredes ainda estão forradas a caixas com os mais variados tipos de botões presos no exterior de cada uma, para que não haja dúvidas sobre o que está no interior. E os velhos livros, alguns com as lombadas a desfazer-se, ainda mostram, página após página, as muitas variedades de galões para enfeitar lençóis, cortinados, chapéus, bibes de escola.
Mas, ao lado destes, aparecem já chapéus, écharpes, malas de senhora, acessórios de moda, artigos que dantes não se encontravam à venda numa retrosaria. Mesmo assim, enquanto observo o movimento encostada ao balcão de madeira, entram senhoras para comprar fitas de renda para acrescentar numa blusa, fita elástica, entretela para remendar uma almofada. Uma delas fica ali à conversa, a explicar o que pensa fazer em cada blusa, enquanto a funcionária vai buscar o metro de madeira de secção quadrada para, com gestos precisos, medir 1,20m de fina renda de um cinzento-claro.
O cheiro desses balcões de madeira e os gestos da senhora a desenrolar a renda e a medi-la no velho metro fazem-me lembrar as tardes de infância quando ia com a minha avó comprar lãs ou tecidos. Vejo-me sentada em cima de um balcão, enquanto a minha avó aponta para as lãs coloridas encaixadas no armário da parede e depois as sobrepõe para ver se o efeito lhe agrada.
Mais tarde, em casa, eu, que nunca tive jeito para trabalhos manuais, gostava de ficar de braços estendidos a ajudar a minha avó a transformar a meada de lã, que parecia um carrapito de senhora elegantemente enrolado no alto de uma cabeça, num novelo muito redondo. Gostava também de ir às lojas de tecidos e ver sair do seu lugar as grandes placas coloridas, que caíam sobre o balcão com um baque surdo, para depois serem desenroladas dando voltas sobre si mesmas e deixando ondas de tecido formarem-se no chão, aos meus pés.
Mas o que mais me encantava eram os botões. Caixas e caixas de botões, e nós à procura de um igual ao que tinha caído da manga do casaco — ou então, decididas a arrancar o da outra manga para substituir os dois por outros mais bonitos. No exterior da caixa, de lado, alinhavam-se como uma família cinco botões iguais, do maior até ao mais pequeno. Dentro da caixa, a família multiplicava-se e misturava-se, e era preciso encontrar os dois gémeos com que íamos sair da loja, embrulhados num pedaço de papel tão pequeno que a minha avó tinha de o guardar no porta-moedas para não o perdermos.
Voltávamos para casa com o problema resolvido — e o mundo parecia organizado como uma caixa de botões e confortável como uma meada de lã.