No futuro, 97% de Portugal será mar
A Marinha adopta soluções cada vez mais eficientes para exercer a sua autoridade no mar. Agora, devia fazer-se a fusão das estruturas de apoio a todos os navios, propõem os seus responsáveis .
A explicação vem mesmo do mar. Portugal é uma das maiores nações da Europa quando se soma ao espaço terrestre a Zona Económica Exclusiva. Actualmente, o país estende-se ao longo de um milhão e setecentos quilómetros quadrados e, caso a sua pretensão venha a ser aceite internacionalmente, com o alargamento da plataforma continental o território nacional alargar-se-á a quase quatro milhões de quilómetros quadrados. Fazendo com que 97% de Portugal seja mar.
“O Estado tem uma área gigantesca de mar”, resume Gouveia e Melo, chefe de gabinete do Chefe de Estado-Maior da Armada. Com tanto mar, a maximização de recursos na Marinha deixou de ser uma opção há muito tempo para um país como Portugal. “Nas marinhas dos países mais pequenos, a preocupação é a racionalidade económica”, assume o contra-almirante.
É por isso que a Marinha Portuguesa não é apenas uma arma de guerra. Desde 1976 que vem desenvolvendo a sua capacidade de realizar actividades militares e não militares, o chamado duplo uso. Isso não sem algumas polémicas pelo meio, sobre quem tem autoridade para fazer o quê, num país com as já referidas 12 entidades com autoridade no mar.
Os termos em inglês separam claramente duas funções essenciais, que são uma espécie de aliança de sustentabilidade: security e safety. A tradução para português presta-se a confusões e a operacionalização também. No mar a fronteira esbate-se. E o debate ainda se faz sobre quem deve ter o poder de fazer impor a soberania portuguesa e quem tem de impor o cumprimento da lei.
É em terra que se encontra um dos melhores exemplos da aplicação do conceito do duplo uso. Mais precisamente em Oeiras. Foi no perímetro das instalações da NATO que a Marinha instalou o Centro de Operações Marítimas (COMAR). Numa sala com seis militares e uma miríade de computadores e ecrãs é levado a cabo, “24 horas sobre 365 dias”, o comando e controlo das forças navais da Marinha. Mas não só. A Marinha operacionaliza, a partir daquelas instalações, o acompanhamento dos navios da Armada em águas nacionais mas também a sua colaboração em ambiente marítimo com outras autoridades do Estado. Com os tais outros 12 serviços do Estado com poder no mar.
Graficamente, explica Gouveia e Melo, é naquela sala que se “identifica o blip que aparece no radar”. Ou, para se ser mais preciso, radares e satélites. Cruzando toda a informação civil e militar que permite seguir em tempo real qualquer movimento no espaço marítimo português. É ali que se faz a “compilação e fusão de informação” que depois pode ser disponibilizada às outras entidades.
“Somos os olhos e os ouvidos do Estado além-horizonte”, explica o comandante Coelho Dias, responsável pelo COMAR. Seja para vigiar a eventualidade da passagem de um navio militar, seja para a possibilidade de outras acções menos belicosas. O objectivo é que nada fuja à malha. Para isso está ali concentrada uma “rede de radares” e até de satélites europeus. É ali que são compilados os dados detectados pelo Long Range Identification and Tracking (LRIT), pelos satélites do Automatic Identification System (AIS) e pelo Vessel Monitoring System (as caixas azuis dos navios de pesca). Que são depois fundidos e integrados pelo programa Oversea, desenvolvido pela Marinha e pela portuguesa Critical Software. Um sistema informático que já foi vendido à Guarda Costeira irlandesa.
Por ano, atravessam as águas portugueses mais de 180 mil navios, confirma Coelho Dias. E assim torna-se essencial destrinçar um simples barco de pesca, de um cargueiro, de um cruzeiro científico ou de um navio, como classifica Gouveia e Melo, que aparece com “intenções esquisitas”. Que lá por não ter a intenção de traficar droga, por exemplo, não quer dizer que não viole a lei. Um cargueiro que lave os seus tanques ao largo de Lisboa pode cair na tentação de ir longe demais e gerar um acidente de poluição que afecte o bem-estar dos portugueses.
Coelho Dias recorda um exemplo de um navio francês que caiu na malha do satélite europeu: “Ele passa três vezes por semana e apanha quase sempre uma situação. Dessa vez detectou uma mancha no mar. ‘Rebobinámos’ o panorama e detectámos que naquele período três navios haviam passado por aquela rota. Contactámos os navios. Houve um que assumiu uma lavagem de tanques, garantiu que o tinha feito na margem permitida por lei. Disse que era apenas óleo de soja. Mas a verdade é que a quantidade foi de tal ordem que foi detectado por um satélite. Imagine que uma substância mais nociva chegava às praias da Costa da Caparica em plena época balnear… Quando o interpelámos, ele contactou de imediato o COMAR para se explicar. Eles sabem que nós estamos atentos. Isso é dissuasão.”
O caso seguiu o seu curso. Mas só foi possível graças à capacidade e celeridade que um centro como o COMAR dá ao Estado português de reagir em tempo real. Tanto para vigiar uma lavagem de tanques no mar, como para detectar uma embarcação suspeita que se dirige à costa.
Ou para coordenar uma operação de Busca e Salvamento ao largo de Lisboa. Também é a partir dali que é coordenada qualquer acção no mar que a Polícia Judiciária, por exemplo, veja por necessária levar a cabo. “Se a PJ tem informação privilegiada sobre um acto suspeito no mar, pode pedir à Marinha para fazer o seguimento de uma qualquer embarcação. E também podemos desencadear a intercepção, com elementos da Judiciária no momento da intercepção”, explica Paulo Vicente. Nesse tipo de operações, a Marinha cede os meios e “o comando é assumido pela entidade que é competente”, clarifica o comandante.
Radares em vez de navios
A “fusão” é a mais-valia que permite ao COMAR atingir os seus objectivos. Gouveia e Melo agarra no exemplo para defender os ganhos providenciados por essa opção tomada em 2008. “Antes tínhamos de ter presença naval no mar”, reconhece Coelho Dias. Agora usam-se os radares “em vez de uma série de navios no mar feitos formigas tontas”.
E é na “fusão” que Gouveia e Melo vê a solução que garante um Portugal sustentável. O contra-almirante defende-a na sua área. “Os grandes custos na Marinha estão em terra, nas actividades necessárias à sustentação da actividade no mar”. Sendo um submarinista, aplica a ideia à flotilha de submarinos. “Para os dois que temos tivemos que criar uma estrutura em terra que engloba a manutenção, a logística operacional (combustível e alimentação), o comando e controlo, o pessoal (carreiras e formação) e treino e doutrina. Essa estrutura que suporta dois submarinos, depois de criada, poderia suportar a actividade de 20, caso fosse necessário.”
Gouveia e Melo propõe a fusão das estruturas de apoio a todos os navios. Tendo por exemplo, uma estrutura que fosse capaz de gerir tanto os navios da Marinha como as embarcações da GNR. Uma solução exequível, sustenta o mesmo responsável, uma vez que já existem provas: “A Marinha tem cinco helicópteros [Lynx, que operam nas fragatas]. O apoio a esses helis é feito pela Força Aérea que é quem tem maior experiência. Não fazia sentido a Marinha duplicar uma estrutura que já existe na Força Aérea”.
Essa inevitabilidade também transformou os equipamentos navais que a Armada tem actualmente ao seu dispor. À vista desarmada, os dois recentes Navios de Patrulha Oceânicos surgem como mais um navio de guerra. Mas, na realidade, explica o comandante Paulo Vicente, estas embarcações foram pensadas, desenhadas e concebidas para “cumprir missões de serviço público”.
Destinadas a substituir as obsoletas corvetas e os vetustos patrulhas, os dois navios tiveram definidas, desde o início, como “tarefas principais” outras missões que não a guerra. “O canhão até nem precisava de ter sido instalado”, garante Gouveia e Melo. Foi colocado para dar outra “presença”, acrescenta Paulo Vicente.
A sua “principal missão”, tal como definida, é executar as “missões da Marinha em tempo de paz”. Que, por ordem de prioridade são “patrulhar, fiscalizar as águas costeiras e oceânicas”, “controlar as actividades económicas”, “executar missões de busca e salvamento”, “colaborar na defesa do ambiente” e “executar acções de socorro e assistência em colaboração com o Serviço Nacional de Protecção Civil”. Só nas “tarefas secundárias” surgem as missões que tradicionalmente são acometidas a um navio de guerra como a de “cooperar com os outros ramos [das Forças Armadas] com vista à criação de condições militares para a resistência activa em caso de ocupação do território nacional”.
Como tal, os patrulhas oceânicos Viana do Castelo e o Figueira da Foz foram construídos com um conjunto de requisitos específicos. Capazes de uma “prolongada permanência no mar” – um mês – com um “mínimo de guarnição” – 38 homens – e o “máximo de automatismo”. E com capacidade para “funcionar como base avançada” dos helicópteros da Marinha, com equipamento e espaço para fazer reabastecimentos aos Lynx. Dispõem por exemplo de um sistema de tratamento de resíduos em conformidade com as leis antipoluição. Para poder operar tanto em alto-mar como na costa, foram desenhados com um calado “até quatro metros, de forma a poderem praticar a maioria dos portos nacionais”. Transportam, cada um, duas embarcações semi-rígidas para acções de fiscalização e salvamento, outras duas embarcações suplementares para apoio a mergulhadores e também acções de salvamento.
Os seus sistemas de armas têm uma peça com “capacidade de utilização de munições de diferentes calibres”. Têm espaço extra para “eventual embarque de sistemas e equipamentos adicionais”. Nomeadamente, um “contentor normalizado tipo laboratório especializado”.
Foram pensados para juntar na mesma plataforma todos os equipamentos necessários para substituir e assim cumprir as missões de dois tipos de navios da Marinha. As das corvetas, de 85 metros e com guarnições de 70 homens, para operar em mar alto. E as dos patrulhas mais pequenos, de 44 metros, que com os seus 33 homens patrulham a costa.
Os novos Viana do Castelo e Figueira da Foz foram aumentados ao efectivo da Marinha entre 2010 e 2013. Mas não chegam para abater ao efectivo as seis corvetas e quatro patrulhas que, apesar de terem sido construídas entre o final dos anos 60 e início de 70, ainda estão no activo.
Desde que o programa de construção de 10 patrulhas oceânicos foi congelado e depois cancelado, por força da crise e das restrições orçamentais, a Marinha teve de avançar com dispendiosos programas de manutenção dos outros equipamentos mais antigos. Que para se manterem no mar requerem guarnições maiores, fazem menos e gastam mais.