“Cobrir uma guerra significa tentar ser testemunha e, sim, correr riscos”
Dois jornalistas foram decapitados. Se os jornalistas deixarem de tentar chegar às guerras, quem vai falar das pessoas que as vivem?
Fui à fronteira da Turquia com a Síria em Abril de 2012. Tinha prometido não entrar e não entrei, mas arrependo-me.
Um professor de Hama (ensinava em Damasco até ao início da revolta) tornado activista (membro do Comité de Coordenação Local) e quase a tornar-se rebelde a contragosto, quis levar-me à sua cidade. Eu tinha demasiado frescos na memória os sírios que morreram a tirar jornalistas europeus de Homs, dias depois da veterana Marie Colvin ter morrido debaixo das bombas de Assad com o fotógrafo francês Rémi Ochlik. Colvin estava de saída, mas decidiu voltar a Homs pelo mesmo sistema de túneis por onde entrara.
É injusto dizer que Colvin, com a sua orgulhosa pala e o respeito que inspirava, arriscou em Fevereiro de 2012? É e não é. “Ela queria mais uma história”, disse a mãe da repórter norte-americana (enviada do Sunday Times). São outros veteranos, amigos dela, a admitir que ela arriscou, sem perceberem por que o fez.
Colvin tinha morrido e havia lá mais jornalistas que escaparam com ferimentos menores e houve sírios que morreram para os tirar de lá.
Em Abril, eu disse ao professor de Hama que tinha medo que ele morresse por minha causa. Ele respondeu que ia morrer de qualquer maneira, às mãos do seu Presidente (a grande ameaça na altura). O professor tinha ido a Istambul falar com os opositores no exílio e a Antakya, na fronteira, pedir apoio à liderança do Exército Livre da Síria (o primeiro grupo armado da oposição, formado por desertores e civis). Ia voltar de mãos vazias. Ao menos que levasse uma jornalista para ver e contar o que a gente de Hama suportava.
Mortos e libertados
É por isso que tento ir a guerras. Para contar das vidas dos que são apanhados por tanques e bombas, gente como eu, que nunca se imaginou a pegar numa arma e que, de repente, tem de escolher entre morrer na cama com os filhos nos braços (ou a cabeça no peito dos pais) ou morrer a tentar impedir milícias e jihadistas de lhes entrarem em casa.
Há repórteres viciados em adrenalina. Não é o caso da maioria dos veteranos que conheço. Não é o caso da maioria dos que foram à Síria. O gigante Anthony Shadid (The Washington Post), que morreu com um ataque de asma no país de Assad. Javier Espinosa (El Mundo), libertado em Março pelos extremistas que o tinham raptado seis meses antes, na cidade de Raqqa, um dos bastiões do ISIS (Estado Islâmico do Iraque e do Levante, agora conhecido simplesmente por EI, Estado Islâmico), no Norte da Síria.
Quando Espinosa foi libertado, os jihadistas tinham em cativeiro 40 ocidentais (para além de ninguém sabe quantos sírios). Dois eram norte-americanos e chamavam-se James Foley e Steven Sotloff. Foram decapitados. Ambos jornalistas, nunca dois jornalistas morreram assim em tão curto espaço de tempo. Alguns jornalistas e membros de ONG raptados cometem erros (assinam textos ou publicam no Twitter, denunciando a sua localização). Outros têm azar, que é tudo o que não se pode ter quando há bombas a cair do céus e criminosos de espadas afiadas no terreno. Os estrangeiros são moeda de troca. Ponto. Os jornalistas, pelo menos desde o Iraque, são um alvo preferencial.
Fui à Síria porque poucos iam, muitos menos em Outubro de 2013 do que em Abril de 2012, e era preciso alguém estar lá para ver e sentir e ouvir e depois escrever. Saí de Lisboa a 10 de Setembro num avião para Amã e só depois fui para Istambul, daí de novo para Antakya. Candidatos a jihadistas deixavam-se então ver a pé nas estradas ou em autocarros, como o que eu apanhei de regresso de Gaziantep, onde fui entrevistar o intelectual sírio Ammar Abdulhamid.
No dia em que apanhei o avião de Amã para Istambul houve uma batalha entre jihadistas estrangeiros e rebeldes sírios mesmo na zona por onde eu contava passar a fronteira. Quando cheguei a Antakya, os buracos escasseavam. O posto fronteiriço de Kilis, na província de Gazientep, por onde tantos jornalistas tinham entrado e saído era demasiado óbvio e conhecido do ISIS. O meu buraquinho planeado, na rede de um campo de refugiados em cima da fronteira de Bab al-Hawa também já estava sob ameaça: do outro lado, fica Atmeh que se tornara no parque de diversões dos homens vindos de Londres ou Grozni, à espera de ordens para combater sabe-se lá em nome de quem.
Encontrei o meu buraco – na fronteira do contrabando – e esse envolveu pouco mais do que correr (muito, é verdade) atrás de um contrabandista, por entre sírios curdos e turcos que levavam electrodomésticos e traziam pessoas. No regresso, fui detida pela polícia militar turca. Foi cansativo mas seguro. Quando estava a entrar caíam os primeiros rockets lançados pelo ISIS contra a cidade para onde me dirigia, Afrin, cercada por jihadistas mas bem defendida. A única maneira de ir e vir sem risco de rapto era o contrabando.
Planos A, B, C
Entrei e vi Omaya, 12 anos, morrer. Nos dias seguintes, quem ali mandava, os curdos do partido PYD que agora combatem ao lado dos curdos turcos e iraquianos para salvar cristãos e yazidis (as fronteiras deixaram de existir) deixaram-me circular: bastou uma visita ao chefe da nova polícia e um carimbo num papel com o meu nome e o dos sírios que me acompanhavam, o miúdo de 18 anos e o controlador aéreo que desistiu de ir trabalhar quando o aeroporto de Alepo, a maior cidade da Síria, deixou de ser civil.
Entrei, saí, e trouxe muito para contar daquela terra onde todos os dias chegava gente em fuga de aldeias e vilas tomadas pelo ISIS, árabes sunitas, cristãos, yazidis, curdos. Como agora, tantos correm pela vida a Leste, no Iraque. Em vez de ir a Afrin, a 60 quilómetros de Alepo, podia ter ido a Alepo. O plano disponível implicava seguir num carro de abbaya (túnica) e hijab (lenço); uma vez lá, seria deixada uma noite numa casa onde padeiros amassavam, outra num hospital improvisado… Três noites no máximo, nem um passo na cidade que conheci em paz. Na altura, nos checkpoints do ISIS (seguiria um carro à frente para avisar antes de cada um) raramente as mulheres eram interpeladas. Eu até falo qualquer coisa de árabe, podia funcionar. Preferi Afrin e a liberdade de fazer jornalismo como o entendo.
Há sempre um buraquinho. Hoje, voltaria (e espero voltar) ao Iraque e à Síria, mesmo com tanto horror e a ameaça de novas decapitações. Iria a Erbil e Ankawa (subúrbio cristão), a Lalish (o principal santuário da minoria yazidi, curdófona e pré-islâmica). Provavelmente iria a Kirkuk, onde estive em 2010 com o fotojornalista Nuno Ferreira Santos. Hoje, não iria a Mossul, a segunda maior cidade do Iraque (onde em 2003 fazia entrevistas na rua), tomada pelo ISIS em Junho. Não iria a Mossul como não fui a Alepo nem a Atmeh, na Síria, em Outubro.
Felizmente conheci a Síria em 2006. Felizmente estive no Iraque em Novembro e Dezembro de 2003, quando saía para jantar sozinha, quando entrava numa loja para comprar meias e saía convidada para casamentos por uma família a querer tomar conta de mim. Felizmente voltei ao Iraque em 2010, quando eu e o Nuno ignorámos o recolher obrigatório na final do Europeu, Espanha-Holanda, e assim conhecemos um futebolista que nos deu boleia no regresso ao hotel. Felizmente fui a Afrin em Outubro do ano passado, terra que nunca vira uma ONG internacional ou agência da ONU.
Fui acolhida por uma família maravilhosa e pude fazer o que quis, avaliando o risco de cada saída, mas sabendo que um rocket tinha de ter muita pontaria para acertar em mim e no miúdo que foi meu tradutor e que agora estuda Medicina a muitos quilómetros de casa. Ninguém sabia que eu lá estava, só gente a quem eu confiava a vida em Antakya e alguns colegas do jornal.
Hoje, voltaria, mesmo existindo o azar. Porque a Síria e o Iraque estão perto, mesmo aqui, como os sírios que moram em Lisboa, Faro ou Évora por estarem no programa de bolsas criado por Jorge Sampaio. Como os jihadistas que foram e voltarão um dia a Espanha, França ou Reino Unido. Porque o Mediterrâneo é só um e o mundo também. E o que se passa ali podia passar-se aqui.
Os sírios nunca pensaram estar a abrir as portas do inferno quando se manifestaram. Os iraquianos nunca sonharam com bombistas suicidas quando viram Saddam cair. Hoje, voltaria à Síria e ao Iraque, com o mesmo cuidado. Porque, como disse Colvin, “cobrir uma guerra significa ir a sítios devastados pelo caos, pela destruição e pela morte, e tentar ser testemunha”, e, “sim, correr riscos”.