Existem vários tipos de guerras e conflitos, uns maiores outros mais intimistas, uns com muitas baixas outros onde apenas nos perdemos a nós próprios, mas em todas as guerras existe um ponto em comum: os despojos. De todas as guerras sobra algo que nos lembra de como tudo era no início, uma espécie de memória física. Impressiona ver cidades destruídas e impérios reduzidos a pó, tal como impressiona ver os números das invitáveis baixas, mas poucas guerras são tão drásticas como as que ocorrem dentro de portas, nas quais os despojos são mais valiosos que qualquer bem material: os filhos.
As relações acabam, duas pessoas que em tempos se juntaram por um sentimento maior que elas mesmas agora odeiam-se profunda e publicamente e a única solução é a quebra do vínculo e a separação dos males sobrantes. À laia do politicamente correcto, esta separação devia ser o mais “limpa” e educada possível zelando pelo bem da única “coisa” boa que fica daquela relação mas, o problema é que muitos casais estão tão inebriados pela ideia de reduzir a nada a pessoa com quem um dia partilharam tudo que acabam fazer dos filhos a arma de arremesso e a moeda de troca. Sem qualquer piedade, aquele filho vê a sua realidade não só arruinada como ainda se vê obrigado a escolhas, divisões, discussões, faltas de respeito entre os dois pilares da vida de cada um de nós.
Revolta-me, confesso-o, que tantos pais não sejam capazes de ver o dano que o seu caos pessoal consegue fazer a uma criança, seja qual for a sua idade, pois se em pequenos as brigas nos magoam os ouvidos e os estômagos ainda frágeis, com a percepção do certo e do errado tudo ganha uma dimensão muito mais feia e injusta. Se em pequenos os desenhos mostram uma mãe triste e um pai ausente, em adultos, por muito boa-fé e vontade de ser feliz, fica sempre a sombra do que (ainda que sem querer) nos fizeram e o medo, o medo de (ainda que sem querer) fazer o mesmo.
Há miúdos mais rijos do que outros, que encontram os seus escapes e resultam em adultos bem resolvidos e cheios de amor para si e para os outros, mas há miúdos que precisam de mais: mais amor, mais silêncio, mais sorrisos, mais gente, e a estes vai sempre faltar qualquer coisa, que podem nem saber bem o que é, mas que lhes dá uma insegurança que os outros parecem não ter.
Das relações vai sempre sobrar algo: um fio que não usaremos mais, um local a que não gostamos de voltar, uma casa a ter de ser vendida, um sofá disputado aos cêntimos, mas nunca os filhos. Sobrará o tempo que antes era passado em família e agora se divide em “um fim-de-semana teu e um meu”, mas nunca os filhos. Sobrará a sensação de que talvez não se tenha feito tudo ou que demos o nosso melhor, mas nunca os filhos. Porque os filhos não sobram, porque os filhos, são a materialização do conjunto de partículas cósmicas de luz, amor e vontade que um dia aquele casal foi. De todas as guerras sobram despojos. Que estes nunca sejam os filhos.