O Brasil não está em lugar nenhum. E no entanto move-se
A Bienal de São Paulo e a Cidade Matarazzo estão à procura de “outros futuros possíveis” para um país ansioso por lá chegar. Mas essas são apenas duas das muitas propostas da cidade, que respira arte por esta altura.
O escocês Charles Esche, os espanhóis Pablo Lafuente e Nuria Enguita Mayo, e os israelitas Galit Eilat e Oren Sagiv, “os primeiros gringos a fazer a curadoria da Bienal” (palavras de Esche), decidiram, por isso, dedicar esta 31.ª edição da mostra paulista, uma das mais relevantes do mundo, às “coisas que não existem”. O que tanto pode significar a criação de um acontecimento novo (e inusitado) – a implosão do Templo de Salomão, que a Igreja Universal do Reino de Deus inaugurou a 31 de Julho em São Paulo – ou a eliminação de algo velho – o Inferno, no caso da instalação Errar de Dios (homenagem dos Etcétera a Leon Ferrari).
O israelita Yael Bartana, que assina Inferno (o vídeo-sátira que “destrói” o Templo de Salomão e denuncia as ambições comercialistas do bispo Edir Macedo para o edifício), é já um dos artistas mais mediáticos da mostra. Devido à sua nacionalidade, foi o mais citado pela imprensa quando se juntou a um grupo de artistas que exigia que a organização da Bienal rechaçasse um apoio de Israel no valor de 90 mil reais (num orçamento de 24 milhões de reais – cerca de 8,2 milhões de euros), devido ao conflito em Gaza. O financiamento manteve-se.
O episódio levou o presidente da Fundação Bienal, Luis Terepins, a reiterar a mostra como “plural, democrática e republicana”. E o certo é que, entre os 81 projectos patentes no Pavilhão Ciccillo Matarazzo deste sábado até 7 de Dezembro, muitas são as peças do Médio Oriente e de outras regiões periféricas em diálogo com a realidade brasileira. “Há conexões que se estabeleceram [entre as obras] que fazem sentido sem sabermos dizer porquê. Há relações e sensibilidades que não precisam de ser postas em palavras”, defende Esche.
A violência (Wonderland, Halil Altindere) é um dos temas fortes, tal como a política (Voto!, Ana Lira), a marginalidade (mural de Éder Oliveira), a moralidade (Línea de Vida/ Museo Travesti del Perú, Giuseppe Campuzano) e o espaço (Nosso Lar, Brasília, Jonas Stal). Mas talvez poucas peças – a maioria das quais comissariada (60%) – comuniquem tão bem com o discurso dos curadores como as de Bruno Pacheco, o único português presente, com as suas multidões de propósitos indefinidos (Meeting Point). Ou a miríade imaginativa do chinês Qiu Zhijie (Map) e a invisibilidade – inexistência de facto – da linguagem visual da Europa setentrional pré-cristã tratada pelo dinamarquês Asger Jorn (10.000 ars nordisk folkekunst).
A indefinição e a imaginação são ideias-chave desta Bienal, que os curadores reúnem num conceito de aparente abstracção mas muito concreto – a “virada”. É um movimento que dá “espaço à complexidade e à flexibilidade, sem receio de conflitos e enfrentamentos”, que gerará um “entendimento diferente” do mundo. E é aí que, dizem, está e não está o Brasil. Explica Nuria Enguita Mayo: “Quando você virando, não está num lugar, está virando.”
“Algo está a mudar e ainda não sabemos o que será”, acrescenta Charles Esche. “Queremos passar das coisas que não existem para [a forma] como as faremos existir”, completa Oren Sagiv. E para isso contam com o esforço da Bienal de democratizar o acesso à cultura, de ter um programa educativo capaz para estudantes e professores, e com as itinerâncias da mostra por dez cidades brasileiras (e a primeira itinerância internacional, no Museu de Serralves).
Invasão criativa
Pode ser difícil sair do Parque do Ibirapuera, onde se situa o edifício desenhado por Oscar Niemeyer que alberga a Bienal. Há também para visitar o Museu de Arte Contemporânea (outro Niemeyer), o Museu de Arte Moderna, o Museu Afro Brasil, o Pavilhão Japonês e o Jardim das Esculturas (e, num pormenor, o jardim geométrico do já desaparecido Waldemar Cordeiro, a que a galeria Luciana Brito está até 18 de Outubro a dedicar uma exposição que junta duas facetas de Cordeiro habitualmente separadas – a do artista e a do paisagista).
Mas vale a pena. Não apenas para percorrer um conjunto de galerias fundamentais da cidade – a Mendes Wood (que está a expor o brasileiro Tunga), a Luisa Strina (com outro valor seguro do mercado brasileiro: Cildo Meireles), a Emma Thomas ou a Galeria Vermelho –, não apenas para descobrir ou regressar a espaços clássicos como o MASP, a Pinacoteca, o Centro Cultural Banco do Brasil (onde está agora A Noiva de Joana Vasconcelos), o Instituto Tomie Ohtake (para ver Histórias Mestiças, uma exposição desassombrada e frontal sobre a história do Brasil) ou o SESC Pompeia, mas para descobrir espaços novos que São Paulo tem para oferecer.
Nas próximas semanas, a Cidade Matarazzo é indispensável. O empresário francês Alexandre Allard mobilizou o elã artístico que se vive em São Paulo e transformou o plano de reabilitação do antigo Hospital Matarazzo (o conde Matarazzo, tio do fundador da Bienal, Ciccillo Matarazzo), devoluto há cerca de 20 anos, num acontecimento cultural. Para isso, convidou 91 artistas para intervir no complexo de edifícios antes de as obras de renovação começarem.
Com um investimento que rondará os 1500 milhões de reais (518 milhões de euros), Allard quer fazer do espaço uma referência para a cidade, transformando-o num pólo de criação e fruição cultural, onde também passarão a existir um hotel de luxo, restaurantes e bares. O projecto foi alvo de algumas críticas, por intervir numa construção do início do século passado que é património classificado. O empresário relativiza as críticas e diz querer preservar a memória do lugar, devolvendo-o à cidade e fazendo-o entrar no futuro com uma nova vida.
Nas imediações da Avenida Paulista, a mais importante artéria da cidade, a Matarazzo não é um espaço qualquer: entre aquelas paredes nasceu meio milhão de paulistas. Muitos também ali morreram. E foi com esse peso, embora num ambiente de festa, que se construiu a exposição Made by… Feito por brasileiros, que abre a 9 de Setembro. “É de uma grandiosidade que merece ser vista”, afirmou a ministra da Cultura do Brasil, Marta Suplicy, na apresentação da exposição, na terça-feira, quando Fafá de Belém interpretou temas de Amália, Chico Buarque, Caetano Veloso e Rui Veloso num vestido feito por Joana Vasconcelos.
A artista portuguesa interveio na capela do antigo hospital. Do outro lado do complexo, um outro português, Miguel Palma, fez uma instalação para o refeitório, onde outrora um cozinheiro português preparava a comida de quem por ali passava. Entre ambos, existe um labirinto de salas, quartos, corredores, lóbis e átrios com obras de Vik Muniz, Tunga, Lygia Clark ou Nick Cave (cerca de metade dos artistas são estrangeiros). O curador da exposição, o francês Marc Pottier, diz tratar-se de uma “invasão criativa”. Para voltar a constar no mapa.
O jornalista viajou a convite do Groupe Allard