Cartas do soldado ao seu amor: “Só pensava em Deus, via-me cercado pela morte”
Ficou para trás na batalha de La Lys, a 9 de Abril de 1918. E deu consigo rodeado de alemães. “Desde o dia 9 que não sei por onde ando nem sei ainda qual será o meu destino.” Estes são excertos de cartas de um soldado-telegrafista que o filho, hoje com 85 anos, quer homenagear. Contam a Grande Guerra na primeira pessoa, com palavras ora animadas, ora tristes, ora patrióticas, ora desesperançadas, mas sempre ternas para com o seu amor, Maria.
O montinho de cartas a Maria, com os carimbos da censura, esteve até há não muitos anos atado com uma fita, intocado. São muitas as cartas, centenas de páginas, letra bem desenhada, em papel amarelecido, porque o jovem João Francisco Rosa, soldado-telegrafista, escrevia com regularidade à sua noiva, às vezes com dois ou três dias de intervalo apenas. “Minha boa Maria...”, “Minha querida...” No início, contava coisas bonitas. Nem parecia que tinha ido para a guerra.
França, 3 de Junho de 1917: “Tenho a dizer-te que tive uma viagem muito linda, tanto por mar como por comboio. Escrevi-te um postal ilustrado quando marchei de Lisboa, peço que me desculpes por não escrever carta, não tive tempo para isso. Estou muitíssimo encantado com as terras de França, passei por cidades muito bonitas. Os campos estão tão bem preparados que se parecem com os jardins de Portugal. Até à data não tenho mal nenhum a dizer, somos muito bem tratados. As francesas e os franceses, quando o comboio [chegava], vinham-nos esperar à estação e davam pão, café e flores (...) peço-te que mandes esta direcção à minha mãe porque aquela que lhe mandei não ia bem (...) é a seguinte: João Francisco Rosa, soldado telegrafista n.º 431, Infantaria 15, CEP, França (...)”
Os primeiros homens do Corpo Expedicionário Português (CEP) tinham chegado a França no início de 1917. E em Abril desse ano, João Francisco Rosa, nascido a 15 de Julho de 1893, no Carvalhal do Pombo, freguesia de Assentiz, concelho de Torres Novas, embarcava também. Tinha 23 anos. Pouco depois, já mandava cartas para Maria, de quem esperava retribuição, como fazia questão de notar.
França, 3 de Julho de 1917: “Não te descuides a escrever que a maior alegria de um soldado é receber a carta de uma namorada ou de uma mãe (...)”
Parecia animado nessa altura. Só mais tarde haveria de falar do frio, do cansaço, da morte que o rodeava, dos perigos que enfrentava, de algumas injustiças. Ai se Maria soubesse... Nem tudo se podia dizer nas cartas, que passavam pela censura antes de fazerem o seu caminho. Por exemplo, não se podia mencionar nomes de terras. Tudo acontecia, portanto, nessa grande terra chamada França.
As letras verdes impressas nos sobrescritos usados pelos soldados do CEP estabeleciam regras: “O remetente deverá assinar a declaração seguinte: ‘Certifico sob minha honra que o conteúdo deste sobrescrito não se refere senão a assuntos de família e particulares.’ (...)”
Na aldeia do Outeiro Grande, freguesia de Assentiz, Portugal, onde vivia Maria Lopes Pereira, a noiva de João, as cartas chegavam à loja do Sr. António Alves — um armazém onde se vendia de tudo um pouco, de ferragens a mercearias. Ao fim da tarde, as pessoas esperavam à porta do armazém para saberem se havia carta para elas. António Alves gritava os nomes dos destinatários em voz alta. O de Maria soava muitas vezes. Como sinal de reconhecimento, João Rosa mandava sempre uma “recomendação ao Sr. António Alves e família”.
Maria era a mais velha de quatro irmãos. Ajudava a família, em casa, nos dias de semana, e aos domingos ia às ameixas e às pêras. Era católica praticante, como João Rosa, cuja profissão até ir para a guerra não é conhecida, mas que, imediatamente depois de regressar, se dedicou a um negócio de tratamento de peles de ovelha. Ela não tinha tanto jeito para as letras quanto ele — que, ainda assim, só fizera a quarta classe, apesar do vocabulário, da consciência política e da escrita parecerem ser de alguém mais letrado. Mas ia respondendo, cartas e cartões, que chegavam a demorar 20 dias até chegar a terras francesas. Isto quando não chegavam de todo. Mas nesta altura, Verão de 1917, João Rosa era ainda um soldado tranquilo que não se impacientava. Depois da agradável viagem por terra e mar, esteve no quartel-general a “receber instrução de telegrafista”, porque aquela que levava, feita na tropa, uns anos antes, em Portugal, já não era adequada aos aparelhos que naquela guerra se usavam, conta ele numa das missivas.
Em Julho, encontrou mais rapazes portugueses, conhecidos. E estava animado. Até usava de ironia nas palavras à amada.
França, 3 de Julho de 1917: “Por estes dias vou pela primeira vez fazer uma visita às trincheiras, vou apertar a mão a um alemão! (...)”
João F. Pereira, hoje com 85 anos, é filho de João Francisco Rosa. Guarda tudo com cuidado: as cartas, os sobrescritos timbrados, as fotografias da época, um cartão com um cesto de flores bordado, um passe que permitia ao pai uma saída do quartel entre 12 e as 17 horas de um dia de Janeiro de 1919, já a Guerra tinha acabado — e ele ainda em França...
Sabe de cor várias frases que constam das centenas de páginas escritas pelo pai — “fora as que se extraviaram”, sublinha. Por exemplo, conta que numa de Julho daquele ano de 17, o pai pedia a Maria para que lhe fizesse chegar notícias do que se dizia que tinha acontecido em Fátima (as aparições). “Vi que se estão passando casos muito interessantes, quando escreveres manda-me dizer alguma coisa acerca disso.”
Há cartas com a letra direitinha e outra mais torta, cartas escritas a horas tardias, cartas com borrões, desabafos, muitos, frases patrióticas. “Quando virá esse dia tão desejado por milhões e milhões de soldados que nesta hora se estão batendo pela Pátria e pelo Direito?” — questionava-se João Rosa numa delas. “Queremos uma paz vitoriosa para nós Portugueses.”
Para com Maria, havia, sempre uma grande delicadeza, muita ternura. E as cartas terminavam quase invariavelmente com “um aperto de mão apertado”, que mais não era permitido.
França, 17 de Agosto de 1917: “Maria escrevo-te esta carta não porque tenha de dar resposta a alguma das tuas, porque a última que recebi foi só há três dias, e logo te respondi a ela. Mas escrevo-te sim, porque o meu coração não me autoriza que eu esteja muito tempo sem te escrever (...)”
E assim se aproximava o primeiro Natal longe de casa. As cartas dos dias e semanas seguintes deixavam transparecer um crescente cansaço.
França, 24 de Dezembro de 1917: “Estou há 7 meses em França e ainda não tive dia que tanto me lembrasse e que tanta paixão me desse como o dia e noite de amanhã. Um dia tão belo e tão santo, dia de grande festa, e ver-me assim tão longe de toda a família, e de ti que és a pessoa que neste momento mais adoro (...) é quase meia noite, estou a ir para a missa do galo celebrada pelos capelões portugueses que aqui se encontram (...)”
Depois de voltar a Portugal, João Rosa não gostava de falar da sua participação na I Guerra Mundial, prossegue João Pereira, o filho. “Penso que é um traço comum a muitos dos que lá estiveram.” Contou, no entanto, um episódio que acabaria por levar João Pereira a procurar mais informações sobre o passado do pai, muitos anos depois dele morrer: sobrevivera ao 9 de Abril de 1918 — o dia em que o CEP foi completamente destroçado numa vasta ofensiva alemã, na Flandres.
Daquela que ficou conhecida como batalha de La Lys resultou um grande número de baixas, milhares de prisioneiros e um recuo das forças aliadas (1). Foi a maior ofensiva que as tropas portuguesas suportaram em qualquer teatro de operações. E João Rosa sobrevivera em circunstâncias especiais, como se verá adiante. Poucos dias antes do desastre, escrevia uma vez mais à sua “boa Maria”. Dizia que por aqueles dias, não faltava a quem acontecessem fatalidades. “Tenho tido pouco descanso” e poucas alegrias, contava de forma lacónica. Maria parecia esforçar-se para animá-lo.
França, 26 de Maio de 1918: “Cá recebi o que vinha dentro da carta, o botãozinho de rosa com o laço de fita de seda, fico-te obrigado que são lembranças muito apreciadas por mim (...) recebe mil saudades e um aperto de mão deste que te ama muito (...)”
Na última carta que João Rosa escreveu antes da batalha, a 5 de Abril, o tema era a sua tristeza por ter percebido que muito do que escrevia a Maria, à mãe, a tanta gente, não chegava ao destino. “Não posso nem imaginar qual terá sido o destino de tanta carta.” Nos dias que se seguiram a essa desabafo, João Rosa não escreveu mesmo.
“Os telegrafistas não ficavam na frente de batalha”, conta João Pereira. E terá sido isso, acredita, que fez com que o pai sobrevivesse ao 9 de Abril. O que o próprio contou, quando regressou a Portugal, é que estava na trincheira quando a dada altura deixou de ouvir os tiros, as granadas, os bombardeamentos. E que se instalou um silêncio terrível. Mandou então o ajudante ver o que se passava. E foi assim que perceberam que estavam no interior das linhas alemãs. “Na debandada das forças portuguesas os telegrafistas tinham sido esquecidos”, conta João Pereira. “E o meu pai era um deles.” O soldado terá então comunicado para o Comando. “Disseram-lhe que ficasse quieto. Em silêncio.” Esperava-se ma contra ofensiva. E durante dois dias, diz João Pereira, ficou na trincheira à fome e ao frio, em silêncio. Até ser resgatado, “creio que por tropas britânicas”, conta.
França, 16 de Abril de 1918: “Sei que deves estar um pouco admirada e também ansiosa por não teres notícias minhas e, no entanto, julgo que à data em que esta receberes se saiba um pouco mais ou menos o que aqui se passou no dia 9. Pois posso dizer-te [que] ainda estou vivo de certo por ter andado debaixo da protecção de Deus. Desde o dia 9 que não sei por onde ando nem sei ainda qual será o meu destino e o de muitos (...) De muitas coisas que tinha só pude salvar o meu corpo, e bem mal vestido (...) saí da pequena caverna onde estava em trajes menores. Calcula que nem o teu retrato e outros que mais tinha, coisas que eu estimava, nem isso eu pude salvar (...) um desses rapazes que está na fotografia que te mandei, que é o namoro da rapariga de Assentiz, desapareceu e ainda outros nossos vizinhos, que não falo no nome deles porque não tenho ainda a certeza do que é feito deles. O João Santos foi homem de muita sorte, onde ele andou também escapou. O João de Juncais, não o vi mas sei que está bom. Em breve te tornarei a escrever e darei notícias, principalmente dos nossos vizinhos (...)”
João Pereira só desatou a fita que juntava as cartas do pai à mãe quando em 2008 no jornal O Almonda, de Torres Novas, onde vive, “insistiram” para que o fizesse, porque queriam assinalar com algo especial o aniversário da batalha de La Lys. Concordou, analisou as missivas e os postais e assinou um pequeno texto sobre o pai, que morrera em 1961, aos 70 anos, em Lisboa: “Um soldado torrejano” — foi assim que chamou ao artigo. Alguns excertos das cartas foram então publicados.
França, 23 de Abril de 1918: “Tenho escrito menos porque não tenho tido vagar e estive pelo menos 8 dias que nem papel tinha, nem tintas (...). Dizes que tinham por aí notícias pouco boas. Quando chegarem a saber tudo, bem então é que podem dizer que são pouco boas. Coitado do Afonso lá-se foi (...) um dia antes estive a falar com ele. Eu por mim é que estava protegido por Deus (...)”
A certa altura, João Pereira decidiu procurar saber mais sobre a vida do progenitor que, se sobrevivera à mortífera batalha de La Lys talvez, quem sabe, tivesse recebido algum reconhecimento, uma medalha, qualquer coisa. “Fui ao Arquivo Militar para ver se havia alguma referência ao meu pai. Afinal ele foi lá abandonado [no campo de batalha].” Não encontrou nenhuma distinção. Pelo contrário... mas já lá vamos. O fantasma do dia 9 permaneceu presente nas cartas de João Rosa durante muito tempo.
França, 26 de Abril de 1918: “Quem sabe se me espera também sorte igual à que alguns tiveram no dia 9 deste mês (...)”
No aniversário de Maria, o 21.º, escreveu-lhe um cartão bonito, com um cesto de flores bordado. Quis dizer-lhe que apesar de estar longe, não deixava nunca de pensar nela — “Como se estivesse na tua presença.”
França, 21 de Maio de 1918: “Alguma lágrimas chorei também a ver-me perdido e desgraçado durante as horas tão terríveis que passei, onde só pensava em Deus, porque via-me cercado [pela] morte. Pensava também muito em vós, meu único bem, e na família que me resta ainda. Nestas horas aflitas que passei, pensei e lembrei-me das últimas horas junto de ti, na véspera da minha despedida. Naquela data, sem saber o que era a guerra, mas pensando tudo ruim, interroguei-me se te tornaria a ver ou não. Pois daqui a uns dias faz um ano que cheguei a França e ainda hoje mesmo pergunto ao futuro se nos tornaremos a ver juntos (...) Por hoje não te enfado mais, dá muitos cumprimentos à tua família e recebe milhares de saudades e um aperto de mão bem apertado deste que tem esperança de te ver em breve (...)”
O Verão que se seguiu foi difícil. Havia dias em que João parecia animar-se. Noutros impacientava-se. Porque não lhe enviava Maria o retrato que ele tanto pedia nas cartas? O outro, que ele trazia sempre com ele, ficara nas trincheiras. “Infelizmente ainda não o quiseste ou pudeste mandar. Pois estou muito ansioso que ele chegue”, pedia João nos primeiros dias de Junho, mês em que foi promovido a Cabo — “Agora que estou quase a ir para Portugal”, dizia, sem grande entusiasmo. “Tenho tanta fé que ainda vou ajudar a comer as uvas e os figos”, acrescentava noutra carta. E noutra ainda: “Oh! Que dias tão felizes e alegres eu espero passar junto de ti, meu querido Anjo!...” As notícias que chegavam de casa, contudo, não eram as melhores.
França, 27 de Julho de 1918: “Fiquei muito triste pela ruim notícia que me deste (...) sofro por saber que não gozas de saúde, julguei que essa maldita febre espanhola que dizes ter não tivesse atingido também as províncias (...) tenho lido que essa febre não é das mais perigosas mas também que é preciso cautela (...) desejo as tua rápidas melhores. Adeus, até um dia.”
No Outeiro Grande, começavam a circular notícias de que os soldados estavam para voltar. E, de facto, João via alguns dos seus colegas partirem. Não é certo que tarefas lhe cabiam na altura — mas a História conta que depois de 9 de Abril de 1918 o quotidiano dos restos das tropas nacionais (que já antes de La Lys se encontravam exaustas) se alterou bastante. Por ordem do Alto Comando Britânico, os soldados portugueses eram usados em trabalhos de engenharia, como abrir estradas, e “passaram a viver em tendas, em zonas mais ou menos recuadas da frente, com um empenhamento pouco honroso” (2).
França, 29 de Julho de 1918: “Não te escrevi carta há mais tempo por mudar de terra onde estava (...) andamos com mudanças há alguns dias, mas agora posso dizer que estou numa situação que tenho vagar para tudo, estou num pequeno posto telefónico com mais 3 colegas, fica um pouco distante de terra aonde está a Brigada e o Batalhão do 15, mas todos os dias lá vamos buscar géneros para nós aqui cozinharmos (...) Estou a ver que não volto mais para Portugal. Têm ido alguns para lá têm, mas têm ido a maior parte destes que têm estado sempre na retaguarda (...) Agora os que têm sido martirizados cá vão ficando à espera talvez de outro 9 de Abril (...)”
O tema das supostas das injustiças — a ideia de que nem todos eram tratados de igual forma — tornou-se recorrente nas cartas do soldado.
França, 7 de Agosto de 1918: “Ainda mais arreliado fiquei por me mandares dizer que tinhas deixado de escrever por dizerem que nós íamos a caminho de Portugal. É que tão pouco jeitos vejo de para lá marchar, porque já faz dois meses no dia 15 deste mês que o João Santo d’aqui marchou com destino a Portugal e ainda não passou do porto de embarque (...) Já soube que o Luiz do Outeiro Pequeno tinha chegado a Portugal. Esses assim é que são homens de sorte, que vêm para França e não passam da Base. Não chegam tão pouco a saber o que é a guerra... Agora eu também já não me ralo, já deitei o coração ao largo, quando eu esteja mal seja como agora, a minha vida é comer, passear e dormir. O perigo também não é muito porque ainda estou um pouco retirado da frente (...)”
Tudo o que João queria era que a guerra terminasse depressa, com uma vitória dos aliados, e voltar a ver Maria. Mas tornava-se evidente que “já não ia comer as uvas e os figos” desse ano. Via-se a envelhecer. “Quando chegar aí a Portugal já de certo não me queres porque levo cara de velho.” Chegou a ponderar mandar tirar um retrato novo, para mandar para a terra, com medo de que quando lá chegasse a namorada já não o reconhecesse....
Sentia tanto a falta dela que, se fosse “uso” na aldeia, até lhe daria um abraço, se a visse, um abraço como daria à mãe e à irmã, claro, esclarecia numa carta. Mas apesar de todas as cautelas de João, Maria não gostou da referência ao abraço, que considerou abusiva. Ofendeu-se e zangou-se na carta de resposta.
Acabariam por casar-se, mas só em 1925 — antes, João Rosa quis construir uma casa para a família. Depois nasceria uma menina e mais tarde, em 1928, João Pereira. Em 1930 iriam viver para Lisboa e ele integraria a Empresa União Gráfica — proprietária do jornal Novidades, órgão oficial da Igreja Católica —, como funcionário administrativo. Teriam uma vida boa. Mas ainda faltava...
França, 30 de Agosto de 1918: “É verdade que partiram para Portugal alguns Batalhões e que estão a chegar novas tropas. Já me deram por notícia, apesar de não ser boa, que ainda terei de cá ficar três ou quatro meses junto aos novos que vieram (...)”
O Armistício que pôs fim à guerra foi assinado em Novembro de 1918. João Rosa só regressaria a Portugal em Abril de 1919. Não trouxe ferimentos para curar. Nem nenhuma doença de maior, relata o filho, João Pereira. Que se lembra, contudo, de ver o pai, por vezes, ter uns ataques, umas tremuras, que depois passavam. Maria costumava explicar que era por causa dos gases tóxicos que ele tinha inspirado na guerra.
França, 26 de Novembro de 1918: “No dia 10 deste mês fiz uma viagem de 55 km que foi de Isbergues para Lille (...). No dia 11 quando chegámos a Lille, recebemos a notícia de que tinha acabado a guerra. Não calculas a grande alegria (...) Para me ficar esse dia bem assente na memória, apanhei uma grande tascada com vinho branco (...) Já por aqui vêm chegando muitos prisioneiros franceses que estavam na Alemanha. Ainda ontem aqui chegou um filho da casa onde estou alojado. Pois não calculas a alegria que esta família teve, principalmente a mãe dele. Eu presenciei tudo e não pude conter sem que me viessem as lágrimas aos olhos (...)”
Há uns anos, quando foi ao Arquivo Histórico Militar, João Pereira não encontrou nenhum registo que distinguisse, de algum modo, a participação do pai na batalha de La Lys. Em vez de palavras de reconhecimento encontrou um castigo: “Cinco dias de detenção por ter sido apanhado na rua com os botões do capote aberto, já depois de ter sido assinado o armistício”, conta com um sorriso.
Na folha do Registo Disciplinar (assim se chama o documento) de João Rosa, lá está: pena imposta a 2 de Dezembro de 1918 “por ter sido apanhado pelo 2.º comandante” com “o capote desabotoado”.
França, 18 de Fevereiro de 1919: “Vai-te preparando para me receberes que se Deus quiser será mais depressa do que nós pensamos.”
João Pereira gostava de saber mais, mas as suas tentativas para obter informações não resultaram. Na véspera dos 90 anos de La Lys, que se assinalaram em 2008, escreveu à Liga dos Combatentes. Haveria dados oficiais que sustentassem a informação oral transmitida pelo pai? “Não tive resposta.” Arrumou os documentos que recolhera. Mas por estes dias de Verão começou a ler no PÚBLICO o suplemento dedicado aos 100 anos da I Grande Guerra e voltou ao montinho das cartas do pai à mãe atadas com uma fita, aos documentos, aos cartões...
Com 85 anos, João Pereira tem tido uma vida cheia — herdou do pai o gosto pela escrita, o interesse pela política (é militante do PS, tendo chegar a ser coordenador do partido em Torres Novas), é um convicto praticante de um estilo de vida saudável... mas faltava contar esta história. É o que ele acha.
Por isso agarrou em todos aqueles documentos, que têm fragilidade dos seus quase 100 anos, e aceitou divulgá-los, apesar de o pai sempre ter sido um homem reservado que gostava pouco de falar da guerra. Quer prestar-lhe homenagem. E quer que os seus filhos, netos de João Rosa, e os filhos dos seus filhos, bisnetos, saibam que houve um homem na família que lutou na I Grande Guerra e foi “um exemplo de coragem, de alguém que não se rendeu”.
Notas: (1) e (2): informações retiradas do Memorial ao Mortos na Grande Guerra, desenvolvido pelo Arquivo Histórico Militar (http://www.memorialvirtual.defesa.pt)
Os excertos das cartas de João Rosa foram editados
Amanhã: João de Almeida, o soldado português que morreu fuzilado na Flandres