Árvores no aquário de Edgar Pêra
Hoje e amanhã, o Cinema São Jorge transforma-se na Lisboa Verde de Edgar Pêra. Um filme de fotografias – sem gente – dos jardins, das hortas e dos parques da cidade. Mais uma vez em 3D, porque “é a altura perfeita”.
Hortas, jardins, flores, detalhes, vistas, parques. Uma flor branca que nos entra pelos olhos, apenas balizada pelo ecrã e pelos óculos negros que nos aproximam e separam dela. Uma série de troncos, ou serão raízes?, que planam de um topo que não vemos e que se entrelaçam no nosso olhar. São excertos de um filme que, quando o autor falou com o Ípsilon, ainda estava a ser montado. A florir. “É a altura perfeita para explorar esta dimensão, ou pelo menos ilusão de outra dimensão” que nos dá o 3D, com o impacto que tem hoje sobre o nosso olho – um olho cada vez mais treinado, matreiro, difícil de espantar, defende o realizador.
“A primeira vez que peguei numa câmara 3D comecei logo a filmar árvores, que têm um lado 3D muito forte porque são muitos níveis, mais do que a maior parte dos prédios – e mesmo as pessoas não são tão 3D quanto as árvores”, explica Edgar Pêra, “só se for mais do que uma pessoa”. Foi quando comprou a câmara, em 2010, que filmou o Campo Grande antes da requalificação. Está há um punhado de anos num caminho de descoberta. Que o fez perceber que “o verde fica mesmo bem” a três dimensões e que o levou, apesar de ser “muito mais urbano”, ao jardim.
Esse caminho faz-se de vários passados, de um futuro-presente e de um futuro-projecto. Enumeremos, entre as raízes entrelaçadas. No passado do homem da câmara de filmar que propôs um Manual de Evasão LX94 para a então Capital Europeia da Cultura está outra capital, a de 2012 em Guimarães, que o fez estrear-se no 3D com Cinesapiens para o colectivo 3x3D (com Jean-Luc Godard e Peter Greenaway). Mais recente é a ida de Edgar Pêra às marchas populares de Lisboa. Esse filme “ficou um bocado em banho-maria”, diz-nos, mas deu origem a Lisboa Verde, que por seu turno fez nascer Lisbon Revisited, um mergulho na cidade e em Fernando Pessoa acabado de estrear no Festival de Locarno. E no futuro-projecto está ainda mais Lisboa, mais 3D, mais Pessoa – Não Sou Nada, em colaboração com Luísa Costa Gomes.
“Tenho filmado sempre Lisboa de diferentes maneiras, pode-se dizer que é a minha cidade-fétiche”, constata o realizador, que “não queria dizer isto, mas [Lisboa Verde] tem um lado de cidadania”. Testemunhou nos últimos anos mais interesse e mais aposta no que são os espaços verdes da capital e quis conhecer melhor a sua cidade, também porque acredita que o seu filme-instalação de 20 minutos é “bom vizinho” e pode levar as pessoas novamente para a rua, para o parque, mas também para o seu actual formato de eleição. “Optei por usar só freezes, só fotografias, para as pessoas se aperceberem ainda mais do potencial do 3D. É um filme de fotografias.”
Um teatro de marionetas
Esta cidade que vamos ver no Cinema São Jorge, integrada na programação do Lisboa na Rua e segundo uma proposta de Pêra financiada pelo pelouro da Cultura da autarquia, não é imediata. Primeiro, é o verde. E depois o verde está ao lado da Torre de Belém, ou do vislumbre do Jardim Tropical, novas perspectivas longe do postal ilustrado e com heróis desconhecidos de clorofila que saltam da paisagem. Homem, câmara, primeiro plano, plano zero, plano menos um, crossfades.
Dados os partos mesclados de Lisboa Verde e Lisbon Revisited, Edgar Pêra volta ao último para falar do primeiro e da opção sistemática pelo 3D neste momento da sua carreira – sendo que está também a montar Virados do Avesso, a comédia popular com Diogo Morgado e Jorge Corrula que acabou de rodar em 2D. “O director de Locarno dizia que Lisboa é um aquário e para mim o 3D é como se fosse um aquário sem água, como um um teatro de marionetas.”
“Há planos que nunca faria em 2D, que achava até feios, mesmo feios, e que em 3D resultam plenamente”, explica no seu elogio à técnica que se (re)vulgarizou recentemente como uma tentativa dos blockbusters de Hollywood no sentido de resgatar os espectadores de novo para as salas, mas que para Pêra tem mais de território de exploração – algo que podemos ver “tal e qual segundo o nosso túnel de realidade”, como Lisboa Verde 3D, ou que é terreno totalmente autoral, como Lisbon Revisited.
“Em termos de concepção de relação com o espaço, podemos dizer que há filmes 3D desde O Mundo a Seus Pés. O Mundo a Seus Pés é um filme 3D, joga sempre com mais do que um plano de profundidade”, recorda. “O 3D são vários espaços e parece que não há nada entre eles”, promovendo uma imersão do espectador que o realizador aprecia nestes tempos de pouco espanto perante a pura imagem. E, aqui em Lisboa Verde, a cidade está sem gente. É outra, e a mesma, cidade.