Memento mori
O diário pessoal de Joaquim Pinto é um dos mais surpreendentes e poderosos retratos de nós todos que se viram nos últimos tempos.
O filme tem o seu eixo, a sua estrutura narrativa, no período de sensivelmente um ano em que Joaquim Pinto se submeteu a um tratamento experimental. É uma crónica disso, com a abundância de pormenores suficiente para fazer de E Agora? Lembra-me também uma entrada relevante na história da “filmografia da sida”. É claro que é muito mais do que apenas isso, como começámos por tentar dizer, mas isso não impede que a questão médica adquira até outras formas de importância. Porque marca uma espécie de pauta, a que se retorna sempre depois de cada uma das muitas derivas, e porque, poeticamente mas não só, ela justifica o “fluxo de consciência”, por vezes “febril”, que toma conta da sua narração e da sua organização. Aqueles planos em que Joaquim Pinto se filma deitado ou “zombificado”, com o corpo abatido pela potência dos medicamentos contra o vírus e pela potência dos medicamentos que servem para atenuar os efeitos secundários dos medicamentos contra o vírus, criam um estado de consciência particular, um torpor que é ao mesmo tempo uma “suspensão” do tempo e a sua acumulação, um combate entre um “vazio” e “toda a memória”, todas as memórias deste homem. É dessa bruma que resulta o filme, como se — e agora? lembra-me claramente — o acto tivesse tanto de uma organização da memória como, através dela, de uma conquista de uma forma de clareza ou de claridade. Ou de limpidez.
Essa clareza e essa limpidez mandam no filme, são mesmo aquilo que mais impressiona no olhar e na narração de Joaquim Pinto. Apesar das curvas e contracurvas, no espaço e no tempo, do seu percurso, E Agora? Lembra-me vai sempre a direito, a cortar caminho por entre uma história pessoal e uma história colectiva, por entre um momento pessoal e um momento colectivo. São as memórias dos encontros profissionais e das amizades de Joaquim Pinto — de Serge Daney a João César Monteiro, a Rita Azevedo Gomes — e são as reflexões sobre o Portugal e a Europa da “crise”. É o humor, propriamente cortante, que subjaz ao filme todo e que, sobretudo a propósito da doença, é o sinal de uma “aceitação” sem “resignação” e, ainda mais, sem rendição. É o olhar, ao mesmo tempo muito pudico e muito expressivo, sobre a vida pessoal de Joaquim Pinto e de Nuno Leonel, a maneira como olha para os dois, ou como retrata um a olhar para o outro e tenta arrancar, encontrar, no outro a maneira como ele olha para o primeiro. O filme é uma história de amor, tudo nele releva, como também já tentámos dizer, de um enorme amor pela vida e por todas as suas coisas. Mas é neste olhar, tão delicado como isento de pieguices, sobre uma relação que resiste tanto quanto um corpo humano resiste aos vírus e aos medicamentos, que a história de amor, de algum modo, se perfaz, e se constitui na matéria essencial de E Agora? Lembra-me.
Ao animal invertebrado do primeiro plano respondem vários outros ao longo do filme, dos cães de Joaquim e Nuno à abelha (ou vespa) comedora de hambúrgueres, imagem de um surrealismo que Buñuel não desdenharia. Talvez irracionalmente, é ainda de Buñuel que nos lembramos nos planos finais, com a já célebre camioneta cheia de perus engaiolados, presumivelmente a caminho da degola. Depois de duas horas e tal a falar dele, Joaquim Pinto não nos deixa ir embora sem nos dar um murrozinho no estômago. Aqueles perus em rota para o seu fim são o mais surpreendente e poderoso retrato de nós todos — da “humanidade” — que alguém mostrou em tempos recentes. Memento mori: e agora, lembra-me que vamos todos morrer.