Meia centena de pontos marcados, trinta e um pontos de diferença e seis-dois em ensaios marcados, demonstram a diferença da capacidade de jogo entre All Blacks e Wallabies.
Derrotados na final do Super 15 e com o empate concedido em Sidney, os neozelandeses, como campeões do mundo e primeiros do ranking IRB tinham qualquer coisa para demonstrar. E demonstraram-no sem margem para dúvidas: na conquista e na utilização.
A entrada em cena dos neozelandeses teve um ritmo demolidor - pese o facto de terem sido punidos com penalidade convertida na primeira vez (Conrad Smith) que tocaram na bola - e fez australianos pagarem-no caro ao longo do jogo.
Qualquer das defesas esteve em geral bem, determinada e agressiva, subindo, diminuindo o tempo da decisão, criando uma pressão permanente. Mas os All Blacks dominam completamente a necessidade de jogarem na cara do adversário - a tal distância de 1 metro a que se devem tomar as decisões - fixando adversários directos e garantindo os espaços de penetração.
O treinador principal, Steve Hansen, já o tinha dito no início da época internacional: “Estamos a utilizar mais e melhor o jogo ao pé”. E de facto os All Blacks chutam mais do que as outras equipas como o demonstram as estatísticas - chutaram 23 vezes contra apenas oito dos australianos. É assim natural que tenham menos percentagem de posse de bola do que os adversários mas isso não os torna menos eficazes. Apenas transformaram o velho conceito "se podes correr e passar não penses em chutar" num outro, de resultado mais objectivo e com base numa regra d'ouro: a utilização da bola serve para criar o maior número de dificuldades ao adversário. O que exige conhecimento do jogo e, para além da técnica necessária ao bem fazer, o domínio da cultura táctica que permita decidir sobre a melhor forma - para cada momento de confrontação - de complicar a vida defensiva adversária. O que, naturalmente, tem uma enorme vantagem: sujeito ao jogo-ao-pé atacante (chamemos-lhe assim por oposição ao jogo ao pé de alívio) o adversário tem que dividir as suas atenções defensivas por um maior, como na velha estória do lençol sempre curto nos pés ou no pescoço, espaço territorial. E esta possível e constante alteração, se permite aliviar pressões, permite ainda - com a boa organização perseguidora que sempre demonstram - conquistar terreno efectivo que, colocando problemas aos defensores, os leva a cometer erros. Tudo junto num benefício que se traduz em pontos.
Alguns dos jogadores - o capitão Richie McCaw, o n.º 8 Kieran Read e o segundo-centro Conrad Smith - têm sido dados como "acabados" por apressados comentadores. Viu-se o acabamento... Os dois terceiras-linhas marcaram três ensaios e Smith mostrou-se sempre uma mais-valia para os companheiros transportadores da bola: aparece no momento exacto para receber o passe e ainda conquistar terreno, avançando até deixar, se vai ao chão, a bola em perfeitas condições de utilização para companheiros. Um notável jogador que hoje - tendo dividido as preferências com Brian O'Driscoll - é o melhor segundo-centro mundial.
Na ida ao chão enquanto portadores, todos os jogadores All Blacks mostraram o mesmo entendimento: se soltos, a preocupação de passar a bola a um companheiro que possa continuar o movimento; se presos, a preocupação de mergulhar, qual marcador de ensaio, atirando o corpo para lá da linha dos defensores, dando, desde logo, vantagem ao apoio e dificultando a vida aos defensores que se tocam na bola podem também ser considerados em fora-de-jogo (não há placadores mas pode chegar a haver ruck), ou seja e seguindo a regra que pretendem impor, criando mais uma dificuldade aos defensores. E assim podem jogar ao largo com uma enganadora facilidade que desnorteia as defesas e alarga espaços de passagem.
A panóplia técnico-táctica neozelandesa é imensa e daí o facto de continuarem a ser a melhor equipa do mundo - há quanto tempo são número um do ranking IRB? Porque são estes conhecimentos das questões tácticas do jogo e a capacidade - repetida vezes sem conta - técnica dos gestos tornados mais rápidos e mais precisos que faz do XV da Nova Zelândia uma equipa soberba. E que tem traduções evidentes na forma como a equipa actua.
Sempre admirei a capacidade dos jogadores neozelandeses reconhecerem colectivamente uma oportunidade: num repente os jogadores parecem mordidos pelo mesmo bicho e adaptam-se à situação que reconheceram - num gesto de um companheiro, num erro adversário - para conquistar terreno, bola ou pontos. Parece que, comandados por um clique exterior, todos respondem em simultâneo. Com um "mais": cada um responde de forma diferente mas colectivamente articulada para transformar o aparente caos numa força organizada. O que mostra um cuidado especial que vem, com certeza, das etapas de formação.
Ver com atenção o jogo neozelandês permite sempre descobrir qualquer nova exploração mesmo se de procedimentos conhecidos. Desta vez nos alinhamentos: na maior parte dos casos a bola captada nas alturas pelo saltador era, daí, passada imediatamente para as mãos do formação. Com vantagens evidentes: a primeira por não permitir que o cerra-fila e seus últimos companheiros, por falta de tempo, se posicionem para sair sobre as linhas atrasadas atacantes, obrigando-os a correr em perseguição; a segunda porque permite sempre surpreender, utilizando outro tempo de execução como aconteceu nos ensaios de McCaw.
Se este jogo Nova Zelândia-Austrália só teve como surpresa o volume do resultado, a verdadeira surpresa do fim-de-semana internacional ia sendo a Argentina do nosso Daniel Hourcade que, embora perdendo por 31-33 e tendo tido uma vantagem de 12 pontos aos 55' e ainda de 1 ponto até aos 76', demonstrou a mão-cheia de razões que lhe assistem na preocupação do incremento da velocidade no jogo argentino e nas alterações da composição da equipa.
Com objectivos muito elevados para 2019, Hourcade está a mostrar uma interessante via e a conquistar o respeito dos adeptos dos Pumas. A curiosidade pela continuação é muita e os Pumas, ao passaram para um superior patamar de interesse, centram em si os olhares mundiais. O que, para começo, não é nada mau... E a aposta de Hourcade merece.