As mulheres foram activistas na guerra, depois voltaram ao lar
Durante todo o período da Grande Guerra, uma ideia que dominou os movimentos feministas nos países beligerantes foi a de que as mulheres adquiriram hábitos de iniciativa e responsabilidade tais que seria desperdício não os aproveitar findo o conflito, como sintetiza a historiadora Anne Cova, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
Uma ideia muito difundida é que as mulheres, graças ao seu activismo durante a Grande Guerra, conseguiram obter vários direitos. Assim, a guerra teria produzido um efeito benéfico para os direitos das mulheres. Por exemplo, no que diz respeito à cidadania política, com a obtenção do direito de voto feminino em muitos países - Dinamarca (1915), Países Baixos (1917), Alemanha (1918), Áustria (1918), Reino Unido (1918), Polónia (1918), Rússia (1918), Bélgica (1919), Suécia (1919) - parece corroborar esta asserção. No entanto, outros países, incluindo Portugal, concederam o voto para todas as mulheres muito mais tarde: em Portugal depois do 25 de Abril de 1974, Suíça (1971), Grécia (1952), Itália (1945) e França (1944). À leitura da Primeira Guerra Mundial como um período que terá gerado grandes oportunidades para as mulheres - nomeadamente no mercado do trabalho - enaltecendo o lado positivo do conflito, opõe-se uma outra abordagem, que destaca o carácter conservador da guerra em termos de relações entre homens e mulheres. De facto, nos anos vinte, as mulheres são "convidadas" a regressar ao lar. Tendo em conta estas duas perspectivas, pretende-se analisar, de maneira sucinta, a mobilização das mulheres portuguesas bem como os seus efeitos, numa perspectiva comparada e transnacional : "L’histoire des femmes en temps de guerre (...) est un sujet aujourd’hui mieux compris dans une optique transnationale" [1 - Ver Bibliografia no final do texto].
Atrás das linhas da frente
A guerra não se desenrolou apenas com os homens na frente. Ocorreu também "behind the lines", onde as mulheres desempenharam vários papéis [2]. Esta mobilização sem precedentes não foi contudo tão elevada como pode parecer à primeira vista: a mão-de-obra feminina em França cresceu apenas 8%, passando de 32% antes da guerra a 40% durante o conflito; em Inglaterra, de 24% a 38%. Em Portugal, a mobilização aconteceu mais tarde do que na maioria dos países beligerantes porque só a 9 de Março de 1916 o país entrou no conflito, com a declaração de guerra da Alemanha. De uma maneira geral, "com excepção das enfermeiras (...), a mobilização da mão-de-obra feminina é, por todo o lado, lenta e tardia" [3]. Isso verificou-se também nos EUA, onde não houve um salto importante da população trabalhadora feminina com a intervenção tardia no conflito, em Abril de 1917. A mobilização das americanas vai crescer somente em 1918, incentivada pelas várias associações feministas (em vários países, as feministas, na sua larga maioria, pediram a mobilização das mulheres, sendo este um dever e querendo mostrar as suas capacidades).
Agosto de 1914 marca a data do início da guerra. É também nesse ano que é fundado o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP), que tinha por objectivo federar o máximo de associações de mulheres afim de "coordenar, dirigir e estimular todos os esforços tendentes à dignificação e à emancipação das mulheres" - o CNMP estava, por sua vez, filiado no International Council of Women (ICW), fundado em Washington em 1888 para "estabelecer uma comunicação constante entre as associações de mulheres de todos os países".
Quando Adelaide Cabete (1867-1935) fundou o CNMP, em Abril de 1914, em Lisboa, tinha já experiência enquanto militante feminista: fazia parte do Grupo Português de Estudos Feministas (criado em 1907 por Maria Veleda); tinha participado, em 1909, com Ana de Castro Osório e Fausta Pinto da Gama, na criação da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, movimento ligado ao partido republicano, que apoiou a queda da monarquia constitucional; e tinha fundado, em 1911, com Carolina Beatriz Ângelo, a Associação de Propaganda Feminista, liderada por Ana de Castro Osório.
Durante a Grande Guerra, foram fundadas várias associações de auxílio aos combatentes, federadas pelo CNMP. Entre elas, a Cruzada das Mulheres Portuguesas (CMP) e o Núcleo Feminino de Assistência Infantil da Junta Patriótica do Norte foram as que tiveram mais impacto e maior longevidade.
A 27 de Março de 1916, menos de vinte dias depois da declaração de guerra da Alemanha a Portugal, nasce a CMP, por iniciativa de Elzira Dantas Machado, mulher do Presidente da República [4]. Com o objectivo de apoiar os soldados e os prisioneiros de guerra, a CMP tinha origem na Associação de Propaganda Feminista. Esta última tinha também participado com outras feministas na criação da Comissão Feminina "Pela Pátria", que, como o nome indica, pretendia fazer propaganda patriótica. A CMP conseguiu fundar várias comissões e subcomissões, espalhadas pelo país e pelas colónias. Apoiou ainda a criação de Escolas de Enfermagem, incrementando um corpo de enfermeiras de guerra, e fundou três hospitais de rectaguarda. Em Agosto de 1916 é criado o Núcleo Feminino de Assistência Infantil da Junta Patriótica do Norte, no Porto, presidido por Filomena Nogueira de Oliveira, com o objectivo de dar apoio aos órfãos dos soldados. Todas estas associações provinham do campo republicano. Do lado das monárquicas e católicas, a 20 de Março de 1916, onze dias depois da entrada de Portugal no conflito, coube-lhes fundar, a Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra, presidida pela Condessa Maria Amélia de Carvalho Burnay.
A primeira década do século XX é considerada a Belle Époque dos feminismos, que se tornaram movimentos transnacionais. É nesse período que surgem homólogos do CNMP como o Conseil National des Femmes Françaises, fundado em Paris em 1901, e o Consiglio Nazionale delle Donne Italiane, criado em Roma em 1903 . De facto, "1914 teria podido ser o ano das mulheres, mas foi o ano da guerra, que veio repor cada sexo no seu lugar" [5].
Um mês antes do deflagrar da guerra, no dia 5 de Julho, as feministas francesas fizeram uma grande manifestação sufragista junto à estátua de Condorcet, em Paris, marcando o apogeu do movimento feminista. Também nessa altura, em Londres, a National Union of Women’s Suffrage Societies organizou um imenso desfile. Este período de ouro acabou com o desencadear do conflito e as feministas pedem então às mulheres para servir os seus países e deixar de lado as reivindicações e, consequentemente, a obtenção de direitos.
A União Sagrada prevalece e, na imprensa, não faltam apelos dos grandes nomes dos feminismos à mobilização das mulheres (apesar das dificuldades que enfrenta a imprensa em geral e os jornais feministas em particular). É paradigmático o caso da imprensa feminista francesa: a 1 de Setembro, o editorial de Marguerite Durand em La Fronde é censurado; La Française, de Jane Misme, suspende a sua publicação entre 5 de Julho e 15 de Novembro de 1914; Le Droit des femmes não foi publicado até Março de 1915; L’Action féministe reduz o seu formato; Le Bulletin de l’Union Française pour le Suffrage des Femmes deixa de ser publicado; Le Féminisme intégral foi publicado irregularmente; La Suffragiste não foi publicado durante a guerra. Em Portugal, o Boletim Oficial do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (que passou a intitular-se Alma Feminina a partir de Janeiro de 1917), publicou apenas sete números durante a guerra.
Os artigos oscilam entre o patriotismo - apelando ao dever da mobilização e do auxílio – e o pacifismo - denunciando os horrores da guerra. As hesitações entre os dois "ismos" - patriotismo e pacifismo - estiveram presentes quando as feministas portuguesas do CNMP ponderaram a sua participação no congresso pacifista de Haia em 1915 – o único organizado durante o conflito - para, finalmente, desistirem seguindo a recomendação da presidente do ICW, Lady Aberdeen, enviada a todos os conselhos nacionais de mulheres. Do lado das francesas do CNFF, onde a retórica do patriotismo era muito exaltada, a recusa foi imediata. O CNFF ordenou rapidamente às francesas o cumprimento dos seus deveres contribuindo para o esforço de guerra e excluiu do conselho a feminista pacifista Gabrielle Duchêne. Minoritárias eram as vozes pacifistas mesmo no seio das feministas tais como a inglesa Vera Brittain ou a francesa Hélène Brion.
Servir a União Sagrada
"Servir" ficou lema para as associações de mulheres que queriam mostrar o seu patriotismo e o cumprimento dos seus deveres. Um apoio que tomou diversas formas: assistência, beneficência, caridade, criação de ateliers de costura, confecção de agasalhos, recolha de donativos, apoio moral aos soldados com as madrinhas de guerra, visitas aos feridos nos hospitais, etc. As fontes iconográficas e orais testemunham a mobilização das mulheres como condutoras de eléctricos ou de ambulâncias e auxiliares do Exército. Não há dúvida de que as mulheres entraram no mercado de trabalho assumindo todos os papéis que os homens deixaram de poder exercer.
Dependendo do sector de serviços, a mobilização teve variações - a indústria de munições tornou-se obviamente prioritária e, em França, a personagem da munitionnette, operária de fábricas de munições, foi frequentemente evocada na imprensa. Outras actividades consideradas como prerrogativas das mulheres foram glorificadas: a figura da enfermeira recebeu mais elogios representando a abnegação, "A maior mãe do Mundo", segundo um cartaz americano da Cruz Vermelha. Não é fortuita a ênfase colocada nas enfermeiras e nas mães - e, em geral, na prestação social - porque evocam as qualidades "naturais" das mulheres como a caridade e a compaixão. Uma leitura das fontes introduzindo o conceito de género mostra que as enfermeiras - este "exército branco" segundo a expressão da historiadora Stefania Bartoloni - ficaram sempre subordinadas aos médicos [6].
No dia 25 de Agosto de 1914, Julie Siegfried, presidente do CNFF, emite um comunicado pedindo a mobilização das mulheres em torno da guerra. Em Dezembro desse ano, o CNFF organiza, sob a direção de Marguerite Pichon-Landry, o gabinete de informações das famílias dispersas, e, no início de 1915, o gabinete da actividade feminina, subvencionado pelos Ministérios da Guerra e do Armamento. São igualmente criadas creches, especialmente nas fábricas de guerra.
Em 1916 é fundada uma Secção de Estudos Femininos (SEF) no Museu Social, onde o ministro socialista do Armamento, Albert Thomas, vai escolher dez mulheres, num total de quarenta e cinco membros, para formar um comité do trabalho feminino na Subsecretaria de Estado da Artilharia e das Munições, cuja finalidade é gerir a mão-de-obra feminina nas fábricas de guerra, e que está na origem da criação da Escola Técnica das superintendentes de fábricas. Em Agosto desse ano, uma delegação de operárias inglesas visita fábricas francesas onde existe mão-de-obra feminina. Três meses mais tarde é a vez de uma delegação francesa do comité do trabalho feminino se deslocar a Inglaterra, a fim de estudar o papel da lady superintendant, também chamada lady welfare supervisor. Destes contactos resulta a criação, por cinco mulheres, da Escola Técnica das superintendentes de fábricas. A Escola, fundada a 1 de Maio de 1917, em Paris, sob patrocínio dos ministros Albert Thomas e Léon Bourgeois, ocupar-se-ia da gestão dos serviços sociais destinados às operárias. Algumas leis foram promulgadas durante a guerra para proteger as trabalhadoras: é o caso da lei sobre o trabalho ao domicílio, de 10 de Julho de 1915, em França, que permitiu combater o sweating system.
O facto das mulheres terem deixado o lar para substituírem os homens nas fábricas não foi tema pacífico e depressa se instalou a crença de que esta mudança era acompanhada de um enfraquecimento dos valores morais. Existiu ainda o medo da "masculinização" da mulher, que poderia conduzir a uma inversão dos papéis [7]. Angústias que culminaram com os ataques contra o trabalho das mulheres fora de casa. "O regresso ao lar" foi leitmotiv dos anos vinte.
Regresso ao lar
Durante todo o período da guerra, uma ideia que dominou os movimentos feministas nos países beligerantes foi a de que as mulheres adquiriram hábitos de iniciativa e responsabilidade tais que seria desperdício não os aproveitar findo o conflito. Acreditaram que, devido ao seu empenho, viriam a ser recompensadas no mercado do trabalho, teriam acesso a novas profissões e a uma maior igualdade profissional, conseguiriam alguns direitos, nomeadamente o do voto - o que não vai acontecer em Portugal e duma maneira geral nos países da Europa do Sul. Por parte das feministas portuguesas, era recorrente a ideia de defender "os interesses morais e materiais da mulher em geral, e trabalhar tanto quanto possível pelo desenvolvimento da sua instrução e educação moral e profissional" [8]. Aliás, depois do fim da guerra, o primeiro e o segundo congresso feminista do CNMP, que tiveram lugar em Lisboa em 1924 e em 1928, serão dedicados à educação.
Nos anos vinte, em vários países, a palavra de ordem passou a ser a reposição de cada sexo no seu devido lugar. Era valorizada a presença da mulher no lar e, findo o conflito, a desmobilização aconteceu muito rapidamente. Se, até pela sua longa duração, a Grande Guerra exigiu a mobilização das mulheres e lhe permitiu acesso à esfera pública, as mudanças duraram tão somente o tempo do conflito. "Pensar a Grande Guerra numa perspectiva das mulheres e de género" [9] significa introduzir uma perspetiva sexuada na análise dos acontecimentos que enriquece a história contemporânea.
Bibliografia
[1] Jay Winter, Avant-propos des volumes 1, 2 et 3. L’histoire de la Première Guerre mondiale: le moment transnational, in Jay Winter (dir.), La Première Guerre mondiale, Paris, Fayard, 2013- 2014, 3 vols. Anne Cova (dir.), História comparada das mulheres. Novas abordagens, Lisboa, Livros Horizonte, 2008.
[2] Para retomar o título do livro seguinte: Margaret Randolph Higonnet, Jane Jenson, Sonya Michel, Margaret Collins Weitz (Eds), Behind the lines: Gender and the Two World Wars, New Haven, Yale University Press, 1987.
[3] Françoise Thébaud, A Grande Guerra: o triundo da divisão sexual, in Georges Duby, Michelle Perrot (dir.), História das Mulheres no Ocidente, Porto, Afrontamento, 1995, p. 38.
[4] Natividade Monteiro, Pela Pátria e pela República”. As Mulheres republicanas na I Guerra Mundial, in Zília Osório de Castro, João Esteves e Natividade Monteiro (dir.), Mulheres na Iª República. Percursos, Conquistas e Derrotas, Liboa, Colibri, 2011, pp. 179-215.
[5] Françoise Thébaud, A Grande Guerra... op. cit., p. 35.
[6] Stefania Bartoloni, Donne nella Croce Rossa Italiana tra guerra e impegno sociale, Venezia, Marsilio, 2005.
[7] Susan R. Grayzel, Women’s Identities at War: Gender, Motherhood and Politics in Britain and France during the First World War, Chapel Hill, University of North Carolina Press, 1999.
[8] Alma Feminina, Janeiro de 1917, nº1, p. 1.
[9] Título da conferência de Françoise Thébaud no seminário de pós-graduação de História do ICS-ULisboa, 20 de Junho de 2014.
Anne Cova é investigadora no ICS-ULisboa
Amanhã: O princípio do fim da Europa imperial numa entrevista ao historiador Erez Manela por Miguel Bandeira Jerónimo