França e Alemanha desafiam Bruxelas e juntam gestão das linhas com a operação ferroviária
Enquanto Portugal funde a Refer com as Estradas de Portugal, as duas potências europeias concentram o sector ferroviário numa holding.
Desta forma, e fazendo juz da sua tradição centralista, a França ressuscita a velha SNCF, que passará a contar com 150 mil trabalhadores e que, ainda por cima, vai permitir poupanças de 550 milhões de euros anuais até 2020. Um regresso ao quadro anterior a 1991 quando uma directiva comunitária impôs a separação da gestão da infra-estrutura e da exploração dos serviços de transportes, com vista a acolher novos operadores (privados) para o mercado ferroviário.
Na Alemanha, nunca chegou a ser criada uma verdadeira empresa de infra-estruturas ferroviárias. A DB Netz, congénere da portuguesa Refer, faz parte da holding da estatal Deutsche Bahn (DB), sendo por esta detida em 100%.
Ao contrário de Portugal - que foi um dos países pioneiros a aplicar a directiva comunitária logo em 1997 com a criação da Refer, separada da CP - a Alemanha andou sempre num faz de conta com Bruxelas e só em 1999 criou a sua própria “Refer”, mas sem que esta tivesse o grau de autonomia e de independência desejado pela Comissão Europeia.
Este jogo do gato e do rato, que durou os 20 anos em que sucessivos pacotes ferroviários procuraram consolidar o processo de liberalização do caminho-de-ferro, teria um ponto alto em 2012 com uma invulgar conferência de imprensa conjunta da DB e da SNCF na qual responsáveis daquelas empresas se insurgiram contra a “abordagem dogmática” da Comissão Europeia por esta legislar de forma “ligeira” sem ter feito uma análise completa dos custos e benefícios do modelo vigente de separação entre a roda e o carril com o modelo anterior de integração vertical.
Fernando Puentes, jornalista espanhol especialista em ferrovia, relata no seu blog Alta Velocidad que as duas empresas estatais francesa e alemã pagaram à Roland Berger um estudo em que comparavam os modelos ferroviários da China, Rússia, Japão, Canadá e Estados Unidos com o da UE. A conclusão era que a estrutura integrada não é sinónimo de incompetência e que o monopólio público na ferrovia não é necessariamente ineficiente.
Dois anos depois, com esta decisão do Parlamento (seguida pelo Senado), a França junta-se à Alemanha e ambas assumem que a roda e o carril funcionam melhor se não estiverem em empresas separadas e que os benefícios disso para a sociedade como um todo são melhores do que se houver liberalização e entrada de mais operadores.
A adesão dos vários países aos pacotes ferroviários ditados por Bruxelas tem sido feita quase a la carte. Por exemplo, a Bélgica revelou-se uma aluna bem comportada e separou completamente a infra-estrutura da exploração. A Espanha resistiu até 2005 até criar o Adif (congénere da Refer), mas algumas vozes têm-se levantado contra esta segregação, até mesmo dentro do governo de Rajoy, sobretudo depois do acidente de Santiago de Compostela que, em 24 de Julho do ano passado, custou a vida a cerca de 80 pessoas.
Vicente Rallo, presidente da entidade que investigou o acidente, citado pelo El Pais (1/7/2014), admitiu numa audição parlamentar do Congresso espanhol que “isto [o acidente], numa Renfe integrada, jamais teria acontecido” porque o sucedido não era compatível com o modus operandi da velha empresa estatal antes de estar separada em duas.
Fusão indesejada
Em Portugal, 17 anos depois de a Refer ter sido criada por cisão da CP, a gestora de infra-estruturas ferroviárias vai ser fundida com a Estradas de Portugal, apesar de tal nunca ter constado do programa do Governo nem do da troika.
Aliás, das medidas da troika para o sector ferroviário, o Governo não cumpriu ainda nenhuma, já que a privatização da CP Carga não avançou, a concessão da linha de Cascais também não, e a própria transferência dos terminais ferroviários de mercadorias da CP para a Refer também ainda não foi executada.
A dificuldade em concluir esta transferência dos terminais demonstra que o próprio modelo do sector não está ainda consolidado porque subsistem dúvidas sobre o que deverão ser activos da CP e da Refer.
Daí a surpresa com que foi recebido o anúncio de que Portugal seguiria o modelo em voga na Finlândia e na Suécia, que junta a ferrovia e a rodovia numa só empresa.
Nos contactos feitos pelo PÚBLICO, apenas representantes dos sindicatos e comissão de trabalhadores da Refer declararam estar contra esta fusão. Quadros de primeira linha e antigos administradores da empresa e das suas afiliadas optaram pelo silêncio, assumindo que os tempos não estão para ter posições públicas divergentes das do Governo.
A sensação dominante é a de que a Refer será a “parente pobre” da fusão e que, como a ferrovia é uma indústria pesada com custos muito elevados, recairá sobre esta a maior pressão para os cortes.
A maioria dos quadros receiam a perda de know how ferroviário e que a nova empresa se transforme numa mera gestora de contratos, indo ao mercado comprar os serviços que ao longo de 150 anos foram prestados pelas companhias ferroviárias do tempo da monarquia, mais tarde pela CP e depois pela Refer. E que, com o tempo e a prática generalizada do outsourcing, pouco reste daquilo que é hoje esta empresa.
“Em Bruxelas quer-se um caminho-de-ferro europeu enquanto opção política e de gestão do território, mas Portugal comporta-se como se não soubesse o que quer”, desabafou um quadro da Refer, que pediu o anonimato dada a posição que ocupa.
Em 2 de Abril deste ano, o secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro, dizia ao Jornal de Negócios que “não é pela via da redução de pessoal que esperamos extrair valor de uma fusão entre a EP e a Refer”. Mas em 6 de Agosto, António Ramalho, que preside à comissão que vai tratar da fusão entre as duas empresas, declarava em conferência de imprensa que “ninguém poderá garantir a segurança dos postos de trabalho”.