Mortos em acidentes de viação mostram mais casos de consumo de cannabis
Nos últimos dois anos morreram na estrada 52 pessoas com presença confirmada de cannabis; 87,5% dos condutores estavam sob efeito activo da droga. Jovens são mais afectados. Primeiros dados nacionais do Instituto de Medicina Legal.
Em 2012 e em 2013 morreram nas estradas do país 52 pessoas em que foi, posteriormente, confirmada a presença de desta droga, sendo que em 46% destes casos era a única substância no sangue. Estes números resultam da primeira recolha de dados a nível nacional por parte do INML, que quis perceber a dimensão deste novo fenómeno, e foram avançados ao PÚBLICO pelo vice-presidente da instituição, João Pinheiro.
O também director da Delegação do Centro do INML explica que, nos mesmos anos, de um total de 1632 autópsias feitas a vítimas de acidentes de viação, 509 acusaram a presença de etanol (31%) – a substância que indicia o consumo de bebidas alcoólicas. Destas, 253 eram os condutores dos veículos. Nos 52 casos de cannabis, em 46% das situações as vítimas eram condutores, mas há outros 42% que para efeitos estatísticos estão contabilizados como “desconhecidos”, que João Pinheiro adianta corresponderem maioritariamente a condutores, pelo que a percentagem será superior a 80%. Ao todo, 96% eram homens.
No caso das vítimas que apresentavam cannabis associada a outra substância, o “cocktail” mais comum foi a combinação com o álcool (68%), seguida da cannabis, com álcool e outras drogas (14%). A cocaína foi a segunda droga mais frequentemente associada à cannabis, que pode ter várias formas, desde as folhas secas (conhecidas como marijuana) à resina (haxixe), óleo e pólen e é a substância ilícita mais consumida em Portugal, com prevalências superiores a 9% ao longo da vida.
O problema é que, numa altura em que a sinistralidade está a descer, o vice-presidente do INML e médico legista tem-se deparado com mais casos fatais com presença de cannabis, ao contrário do álcool em que os dados globais apontam para um decréscimo do abuso do consumo de bebidas ao volante.“De há dois ou três anos para cá, não antes, notei que alguns casos de autópsias de jovens vítimas de acidentes mortais apareceram-me pela primeira vez apenas com cannabis positiva no sangue, não tendo álcool, que ainda é o mais vulgar nestes casos, ou até mesmo a associação com outras substâncias”, afirma o responsável do INML.
João Pinheiro acredita que a detecção de mais casos com presença de droga se deve ao maior controlo mas também a um crescimento no consumo e à sua desvalorização. Dos 52 casos, 24 foram em 2012 e 28 em 2013 e a maior parte das autópsias foram feitas na Delegação do Sul (27), apesar de João Pinheiro frisar que os dados não permitem avaliar se há assimetrias nacionais com significado estatístico.
Algumas das percepções de João Pinheiro são corroboradas por Susana Henriques, docente da Universidade Aberta e investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa, que destaca a “tendência para o aumento do consumo e da tolerância social face a esta substância” – o que tem sido facilitado pela “apresentação de certas substâncias (como a cannabis) como ‘leve’ ou ‘natural’”. Na posição da socióloga com vários trabalhos da área das consumos, estes rótulos reforçam “o efeito de tolerância social, bem como a percepção do risco associado aos (ab)usos”, lembrando ainda que o uso da cannabis com fins terapêuticos também tem contribuído para a imagem de “valorização” dos efeitos da droga assim como as correntes de liberalização em voga no Uruguai e em algumas zonas dos Estados Unidos [ver texto na página 6].
Olhando para a distribuição das vítimas por escalão etário percebe-se, de facto, que os mais jovens são os mais afectados, com um total de 23 vítimas na faixa entre os 20 e os 30 anos, seguindo-se nove vítimas entre os 10 e os 20 anos. Se for tida em consideração uma divisão de cinco em cinco anos, a maior parte das vítimas (15) têm entre 20 e 25 anos, seguindo-se nove vítimas dos 15 aos 20, oito vítimas dos 25 aos 30 e sete dos 40 aos 45 anos. “De facto voltamos a ter um pico entre os 40 e os 45 anos, que é uma idade curiosa pois foi quando começou o grande boom da marijuana e são consumidores que mantiveram este hábito muito regular. Temos a ideia, nos consumos em geral, que o toxicodependente é um andrajoso que anda a arrumar carros e estamos absolutamente enganados. Há muitos toxicodependentes integrados na sociedade e as políticas devem ter isso em conta”, sublinha João Pinheiro.
Aliás, os números vão ao encontro das percepções. O estudo Consumos e Estilos de Vida no Ensino Superior, divulgado no final de 2013, mostrou que mais de 25% dos estudantes inquiridos consideraram “pouco” ou “nada prejudicial” fumar marijuana ou haxixe de vez em quando. Relativamente aos consumos de substâncias ilícitas, 40% dos estudantes declararam já ter consumido cannabis pelo menos uma vez na vida. O documento foi elaborado a partir de 3327 inquéritos a estudantes do primeiro ciclo (licenciatura) e mestrados integrados da Universidade de Lisboa, entre 27 de Novembro e 16 de Dezembro de 2012. Concluiu haver uma percepção de baixo risco semelhante à encontrada pelo estudo Flash Eurobarometer – Youthattitudesondrugs realizado em 2011 entre os jovens europeus de 15-24 anos. Para os jovens portugueses inquiridos no trabalho, a cannabis é a droga ilícita a que atribuem menor proporção de risco elevado para a saúde (24% para o consumo ocasional e 64% para o consumo regular de cannabis).
Mas como pode relacionar-se a presença de cannabis com o acidente? Não pode falar-se em causalidade, diz João Pinheiro, apesar de alguns estudos internacionais apontarem para uma maior frequência de acidentes em consumidores. “A única coisa que nós podemos dizer é se de facto o indivíduo, no momento do acidente, estava ou não sob o chamado estado de influência por aquela ou aquelas drogas, porque no caso do abuso do consumo de drogas não há limites legais. Ao contrário do álcool, a lei não o prevê”, explica. As análises procuram não a cannabis propriamente dita mas os seus metabolitos, isto é, a presença de THC (delta-9-tetrahidrocanabinol), que actua sobre o sistema nervoso central e que induz os efeitos psíquicos, ainda que com grandes diferenças de uma pessoa para outra.
“Temos a chamada droga mãe e depois os compostos em que ela se metaboliza no organismo, que são os metabolitos, que no caso da cannabis é o THC”, ilustra o responsável do INML. Consoante o metabolito de THC encontrado, os especialistas conseguem perceber há quanto tempo a cannabis teria sido consumida antes da morte e se estaria activa ou inactiva. Nestes 52 casos, o INML detectou que em 83% dos casos os metabolitos de cannabis estavam activos, um número que sobe para mais de 87% do caso dos condutores.
Mesmo sem ser possível estabelecer uma relação directa entre qualquer consumo e um acidente, o psiquiatra Pedro Levy [ver texto na página 7] refere que os efeitos agudos da droga são traduzidos em “alterações psicomotoras que dificultam a motricidade, sendo a velocidade de processamento da informação menor”, lembrando que “uma pessoa com menos reflexos tem também o sentido crítico afectado, até sobre as duas capacidades”.Já a longo prazo, o médico do Hospital de Santa Maria e coordenador do Programa de Intervenção nas Fases Iniciais da Psicose reforça que o consumo prolongado em idades como as das vítimas mortais tem “efeitos cumulativos” ao nível do cérebro, que “vai ficando alterado ao longo dos anos por ter sido exposto em idades muito sensíveis”.
Os dados do INML estão em linha com as tendências identificadas pelo primeiro estudo epidemiológico em contexto rodoviário sobre a prevalência de álcool e de outras substâncias psicoactivas na população condutora e que foi feito no âmbito do projecto europeu DrivingUnderInfluenceofAlcoholDrugsand Medicines. O trabalho, concluído em 2011, diz que, no caso dos condutores, a cannabis foi a droga ilícita mais prevalente em Portugal, com 1,4%, o que coloca o país com a terceira percentagem mais alta entre 13 Estados europeus – mas, ainda assim, abaixo da média de 3,1% de outros países do sul da Europa.
Jorge Torgal, professor catedrático de saúde pública da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, admite que sempre pugnou “pelo fim da criminalização do consumo”, em geral, e não vê “razões para que haja uma interdição do consumo de cannabis e mesmo da sua comercialização em volumes reduzidos”. O especialista, com vários trabalhos da área da droga, defende sim que haja “uma modelação dos consumos para que as pessoas percebam os limites e os efeitos”, justificando que “o consumo de cannabis não pode ser isolado de outros comportamentos de risco”.
“Em Portugal, a cannabis foi mais prevalente nos homens entre os 18-34 anos e nas noites de fim-de-semana. No estudo dos condutores mortos em acidentes de viação, foi também a cannabis a droga ilícita mais prevalente (4,2%) em Portugal, apresentando um valor superior aos verificados na Finlândia e Suécia e inferior ao da Noruega”, lê-se no Relatório Anual 2012 – A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD).
O presidente do SICAD, João Goulão, alerta que é preciso ter em consideração que “têm sido produzidos produtos de cannabis com uma potência psicotrópica mais elevada do que era tradicional”, pelo que o olhar sobre esta droga tem de acompanhar essa tendência. Aliás, o relatório de 2013 do SICAD identificou pela primeira vez uma alteração que para Goulão traz “sinais de preocupação”: em 2012, nos contextos de procura de tratamento, a cannabis surgiu pela primeira vez como a droga principal mais referida pelos novos utentes em ambulatório (38%), superando os casos de novos pedidos de ajuda por heroína. Mesmo assim, o também presidente do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência diz que este aumento pode ser lido no sentido de estarem a chegar mais cedo aos utentes, antes de passarem para outras drogas.
Em qualquer dos casos, João Goulão diz que designação de “drogas leves” já foi abandonada perante os “efeitos psicotrópicos intensos” que a cannabis pode ter em alguns casos. Mas entende que o actual quadro legal em Portugal responde aos problemas, ainda que defenda que se deva estar atento às mudanças em países como os Estados Unidos e o Uruguai.