Recolher obrigatório não evita novos confrontos em Ferguson, no Missouri
Governador mantém ordem em vigor para proteger pessoas e bens depois de uma semana de motins. Departamento da Justiça destaca mais agentes para a investigação à morte de jovem desarmado por um polícia.
A medida extraordinária foi decretada no sábado, com alguma relutância, pelo governador do Missouri, Jay Nixon, que justificou a necessidade de proteger a segurança de pessoas e propriedades depois de uma semana de vandalismo, confrontos e motins. “Não podemos viver com motins diários. É preciso acabar com o medo de sair à rua”, defendeu.
A aproximação da meia-noite esvaziou consideravelmente as ruas que servem de palco aos protestos, mas centenas de manifestantes ignoraram a ordem para recolher a casa e desafiaram a polícia, numa iniciativa que resultou em mais uma batalha campal em, debaixo de chuva intensa, trovões e relâmpagos.
As forças de segurança, equipadas com material anti-motim, começaram por usar bombas de fumo para obrigar os manifestantes a dispersar. Estes responderam com palavras de ordem e gritos de “Nós somos Michael Brown”, e o arremesso de pedras. Rapidamente a situação ficou fora de controlo: a polícia disparou gás lacrimogéneo e no lado dos manifestantes ouviram-se tiros – um homem foi atingido e transportado de carro para o hospital; o seu estado é considerado crítico. Sete pessoas foram detidas e acusadas de desobediência ao recolher obrigatório e às ordens de dispersar – a calma foi restabelecida ao fim de 45 minutos.
Vítima e suspeito
Michael Brown, um estudante de 18 anos que se preparava para iniciar o ensino superior, foi abatido com vários disparos depois de uma altercação com um agente da polícia, Darren Wilson. Seis dias depois da morte, as autoridades informaram que o jovem era suspeito num assalto ocorrido, momentos antes, numa loja de conveniência de uma bomba de gasolina: imagens das câmaras de videovigilância, mostram um indivíduo, identificado como Michael Brown, a empurrar e intimidar o dono da loja, para roubar uma caixa de charutos.
No entanto, reconheceu o chefe da polícia de Ferguson, Thomas Jackson, o confronto entre o agente e Michael Brown, que resultou na sua morte, não teve nada a ver com o roubo. Segundo o chefe, apesar de a descrição do suspeito ter sido distribuída via rádio à polícia, Wilson não estava a responder à ocorrência nem foi essa a razão para a interacção entre os dois. “O contacto inicial não esteve relacionado com o roubo”, esclareceu, dizendo que o jovem foi abordado por estar a circular na faixa de rodagem, pondo em causa a circulação dos automóveis.
Os acontecimentos seguintes continuam a ser contados de maneira diferente pela polícia e pelos familiares e amigos da vítima, incluindo Dorian Johnson, identificado como o segundo suspeito no roubo e que estava ao lado de Brown quando este foi morto. Numa primeira explicação, as autoridades disseram que o agente foi agredido por Brown, que tentou alcançar a sua arma, e disparou para se defender. Johnson fala numa “execução a sangue frio” – segundo conta, o amigo tentou fugir do agente, que o agarrou ainda dentro do carro e começou a disparar; Brown terá parado e estava de braços no ar quando Wilson descarregou os tiros fatais.
Através do Twitter, o rapper conhecido como Thee Pharoah, morador da Canfield Drive, onde decorreu o tiroteio, fez o relato em directo dos acontecimentos. A primeira mensagem é de puro choque: “Acabei de ver uma pessoa morrer”, escreveu, em maiúsculas. Logo a seguir, vem uma fotografia de um homem prostrado no chão numa poça de sangue, com polícias à volta. Alguém pergunta: porque o mataram? “Por nada, ele estava a correr”, responde o rapper, que fala em dois tiros pelas costas e mais cinco quando a vítima se voltou de frente.
O relatório preliminar da autópsia confirmou que Brown foi atingido por mais do que um tiro, mas os pormenores não foram tornados públicos. Este domingo, a polícia federal requisitou a realização de uma nova perícia independente, a pedido da família da vítima, e por causa das “circunstâncias extraordinárias” do caso.
Autoridades locais sob pressão
As autoridades locais – fortemente criticadas pela demora na divulgação da identidade do agente envolvido e caracterização de Brown como suspeito do roubo do posto de gasolina –, recusam adiantar qualquer informação sobre as circunstâncias que antecederam o tiroteio. Muitos observadores contestam a falta de transparência das autoridades, cuja política de comunicação dizem ter contribuído para a escalada da situação.
Greg Carr, presidente do departamento de Estudos Afro-Americanos da Howard University, uma das mais conceituadas instituições vocacionadas para o ensino da população negra, foi uma das vozes a alertar para o potencial de desestabilização. “A polícia de Ferguson e a América estão a brincar com o fogo com as suas tentativas para justificar a morte de Michael Brown”.
A divulgação das imagens de videovigilância foi feita à revelia das instruções do Departamento de Justiça – que destacou o FBI para supervisionar as investigações –, e mereceu o reparo do governador do Missouri, que confessou “discordar” da iniciativa da polícia. “Não fomos informados e não ficamos satisfeitos”, disse Jay Nixon à cadeia ABC, acrescentando que a informação “parecia destinada a lançar a dúvida sobre um jovem que foi baleado na rua”. “As emoções ficaram ainda mais à flor da pele”, observou.
O governador disse ainda que o Procurador-Geral [equivalente a ministro da Justiça] Eric Holder o tinha informado da mobilização de mais 40 agentes para a cidade, de forma a acelerar as investigações ao caso. “É muito importante resolvermos o assunto. Temos de ser diligentes, e temos de ser transparentes”, considerou. Nixon agradeceu ainda à população de Ferguson que, nas suas palavras, soube entender os seus motivos ao impor o recolher obrigatório.
O elogio à comunidade foi repetido por vários líderes, juntamente com novos apelos à calma e algumas palavras de admoestação pelos distúrbios de sábado à noite. No seu programa radiofónico, o conhecido reverendo Al Sharpton disse que “não é com mais vítimas que pomos fim à nossa dor”, em referência aos tiros disparados pelos manifestantes durante a madrugada. “Compreendo que os jovens estejam a sofrer, com raiva, mas deitar fogo a lojas ou dar tiros aos carros da polícia não resolve nada”.