“O pilar da família sou eu”
De norte a sul, estivemos com famílias numerosas e famílias mais pequenas. Mostramos as diferenças gastronómicas regionais e famílias que vivem este ritual. Na segunda reportagem da série vamos a Aveiro provar o arroz de garoupa em casa de uma venezuelana e de um português
Decorem bem um dos truques de um arroz de peixe que ficará no ponto - nem muito molhado, nem muito seco, trinca-se e a consistência está perfeita, com um sabor que só a garoupa consegue dar. “A garoupa é o nosso peixe preferido”, diz Rosa Gutierrez, enquanto põe o peixe no refogado. “É excepcional para fazer o arroz, e não precisa de muita coisa para ficar bom”.
Outro truque: “Ponho peixe com fartura no meu prato”, acrescenta, com sotaque e uma gramática muitas vezes espanholada, esta venezuelana de 55 anos a viver há quase 40 em Portugal, mãe de Dionísio, 36, e de Fábio, 27, avó de Ema, de dois, e avó emprestada de Gonçalo, cinco, filho da mulher de Dionísio.
Vai metendo a colher no tacho, testando o sabor. “Há pessoas que quando cozinham nunca provam. Eu não: estou sempre a provar. Pus um pouco mais de sal”.
No tacho há-de acrescentar louro, alho, um pouco de vinho, picante, que se usa muito na Venezuela (mas só para lhe dar aquele toque). Há-de tirar o peixe quando estiver cozinhado, acrescentar o arroz. E no final de tudo: uma colher de vinagre e coentros picados – depois é servir logo porque este é daquelas pratos que não podem esperar senão empapam. “É um manjar dos deuses”, diz João. “As portuguesas têm inveja de não saberem cozinhar como ela. Acho que é mesmo amor que ela põe na comida. Ela faz tudo bem feito. Quando vamos para o parque de campismo quem está de volta dos tachos é ela”. João só grelha. Não sabe nem “descascar um alho, uma cebola”, comenta Rosa.
A cozinha é o centro desta casa onde diariamente Rosa faz refeições para a família toda, a maior parte das vezes servidas a horas diferentes. Tem um armário de madeira escura ao centro, que divide o espaço ao meio: em cima serve para arrumar coisas, em baixo, na bancada, serve de mesa. Ou melhor, de mesas, porque aqui há engenhoca: as mesinhas individuais saem do armário e recolhem-se depois da refeição acabada: na cozinha Rosa faz tudo sozinha, por isso encontraram uma alternativa à sala de jantar que fosse prática.
Todos entram e comem. Como na casa do pai de Rosa, na Venezuela, diz Dionísio. “Só que lá é em muito maior escala”.
Normalmente, o almoço é tarde, por volta das 15h, isto quando não é depois. Abrem-se as portas para filhos e netos, cozinha-se para as companheiras dos filhos que hoje não estão, pois é dia de semana. Hoje mesmo Fábio leva, em caixas de plástico depois embrulhadas num pano, dois pratos do arroz de garoupa, uma para ele, outro para a namorada. “Por isso é que digo que sou super-mulher, super-mãe e super-dona de casa, super-avó e super-tudo”, diz orgulhosa esta mulher magra, de estatura baixa e rosto sem rugas.
“Não desgrudam”, comenta o pai, a rir. “Costumo dizer que o cordão umbilical não foi cortado como devia ser”, acrescenta Rosa. “Não há nenhum que não venha almoçar, e se não vierem têm que passar para dizer olá.” Fábio justifica: “Não há grandes condições para fazer grandes vidas”. Por isso continua em casa dos pais, ainda não deu o salto. E João, agora a sério: “Gosto de ter aqui os meus filhos, mas também quero que eles sejam independentes”.
O peixe faz parte da ementa semanal da casa: grelhado, em ensopados, em arrozes. Assado é que não porque João acha que lhe tira o sabor. Há dias em que Rosa cozinha três refeições, como na véspera da nossa visita, quase que uma para cada elemento da família. “Estão mal habituados”, diz, queixando-se com ternura porque afinal quem os habitua mal é ela. “Tenho trabalho mas me sinto recompensada porque sei que eles comeram bem”, continua.
À mesa, Dionísio prova o arroz acabado de fazer. Comenta que se podiam acrescentar umas gambas. João sugere berbigão. Rosa responde: “Não, não, não! Garoupa não leva nada. O tamboril precisa de levar mais qualquer coisa para dar vida, este [peixe] não precisa”.
Houve uma altura em que pais e filhos estavam no mercado a vender peixe juntos. Neste momento, só Fábio trabalha noutro ramo: gere um café de dia que se transforma em bar à noite, a dois passos de casa dos pais, no Rossio – mesmo no centro de Aveiro, com a ria e as gôndolas à veneziana a passar pertinho. Está, como diz, a tentar tomar as rédeas ao negócio.
Dionísio mora com a companheira e a filha, “tão perto que [os pais] vão à janela e vêem a minha casa” – estudou Ciências da Comunicação em Lisboa, chegou ao terceiro ano e desistiu. Ainda geriu um restaurante com outro sócio. Esteve à frente do café/bar que o irmão agora dirige, mas acumulava com o trabalho no mercado, e decidiu deixar o primeiro. Agora dedica-se só ao peixe, continuando a tradição familiar de João Rocha, filho de Conceição dos Cordões, conhecida peixeira de Aveiro.
Rosa também vende peixe, mas noutro mercado – o de Santiago. A garoupa que foi usada para o arroz de hoje era de Moçambique. João comercializa sobretudo peixe importado, de topo, como cherne, garoupa, robalo, “peixes que as pessoas com ordenados mínimos não têm hipótese”: vem de Moçambique, o principal fornecedor, chega de avião “com horas de frescura”, vem do Brasil, da Argentina, de Marrocos, do Senegal. Os clientes são sobretudo restaurantes, que procuram uma boa relação preço/qualidade, e o peixe importado garante isso. Rosa vende peixe da zona de Aveiro: carapau, sardinha, dourada, linguado…
A reunião é ao almoço
A hora de almoço é a pausa por excelência nesta família. O quotidiano de Rosa é duro: montar a banca com gelo, amanhar o peixe, pegar em caixas pesadas, limpar, etc. Acorda pelas 5h30 e ainda vai ajudar a limpar as casas-de-banho do bar do filho. Ele, João, depende. Por vezes tem que ir a Lisboa, ao Mercado Abastecedor de Lisboa, o MARL. “Esta vida não é agradável, esta vida de levantar de madrugada, andar com carros para baixo e para cima, e quando chega o Inverno ter que mexer no gelo… Às vezes levanto-me às 7h/8h de segunda-feira, faço o meu dia de trabalho normal, às 18h estou na lota e se analisar que aquilo não é para mim chego a casa, troco de carro, e vou para Lisboa. O MARL abre à 1h. Às 6h estou em Aveiro, depois tenho que abastecer este mercado, tenho que abastecer o mercado onde a minha mulher está, venho às 15h de terça-feira almoçar e às 18h vou outra vez para a lota.”
Dionísio fica no mercado, na área de vendas e entregas. Não é costume ir à lota, mas já foi muitas vezes ao mercado grossista de Lisboa e até mesmo ao de Vila Nova de Milfontes. É duro, mas está habituado. Não pensa, por enquanto, a longo prazo, se irá ou não seguir o negócio do pai no futuro.
A sua “pausa” no curso foi tema na altura, os pais ficaram com pena, até porque houve um investimento numa universidade privada, em que gastaram mensalmente “um ordenado mínimo violento”. Fábio também fez "uma pausa" em Engenharia Mecânica, não terminou o curso. “A gente está sempre a dizer para ele recomeçar, estamos na expectativa…”, observa Rosa.
Dionísio explica: “Uma pessoa não quer estudar e não estuda, ponto. Não há ninguém que nos faça estudar.” Já com os dois rapazes fora desta cozinha-de-estar, João desabafa: “Os filhos são um enigma. A gente nunca sabe o que espera. Procura encaminhá-los, mas...”.
Única mulher na família, Rosa confessa que “é complicado” viver apenas no meio de homens. “E pior quando eles não ajudam em nada – que é o caso: é a mãe para tudo, a super-mãe, a super-mulher.”
Casamento por procuração
Os pais de Rosa também podiam ter dito que ela acabou por fazer o que eles não esperavam: imigrar para Portugal. “Tiveram um grande desgosto”, conta. Rosa é uma dos 92 residentes em Aveiro que, à data do último Censos, disseram ser naturais da Venezuela.
Não conheceu João em Portugal, mas na Venezuela. A mais velha de quatro irmãos estudava num colégio de freiras com as primas de João. Tinham 14 e 15 anos. João foi mandado pelos pais aos 13 para casa de um tio em Caracas. “Cheguei lá a um domingo, e a uma segunda-feira espetaram-me com uma vassoura nas mãos para varrer. Acho que isto fez-me bem.”
Estávamos em 1972. A mãe de João “vivia bem” na altura, mas não queria que ele fosse para a tropa, para a guerra colonial. Mais tarde, tinha João vindo de visita a Portugal e o pai morre de repente. Ele já não regressaria à Venezuela. “Durante um tempo não me ligava, nem telefonava, e eu pensei que já tinha esquecido”, conta Rosa. “E depois um dia telefona a dizer para eu preparar os meus pais porque me ia pedir em casamento”.
Em 1977, chega a casa de Rosa uma carta dirigida ao pai, que se espantou: nem sabia que tinha namorado, quanto mais pretendente a marido. Ela casaria nesse ano por procuração, tinha 18 anos.
Chegada a Aveiro foi receber a bênção do padre com o vestido de noiva, celebrou o copo de água com o marido. Mas nunca se adaptou ao país: “O frio vem longe e eu já estou a senti-lo”.
Dionísio, que nunca quis aprender espanhol porque fazia finca-pé dizendo que era português, comenta: “Acho que se ela soubesse o que sabe hoje não tinha vindo. Tenho a certeza. Porque nunca se deu bem. Não se deu bem no início, não se dá agora, está cá sozinha. Veio para cá e nem Coca-Cola havia, e na Venezuela já havia tudo. Era a Cinderela e passou para gata borralheira.”
Rosa diz que sim: “A minha mãe e o meu pai tinham ideia de eu ser a menina que estudasse e se formasse. Como optei por me casar, deixei aquilo tudo.” Tem pena de não ter cursado secretariado – adora escrever à máquina. “Não percebia nada de peixe, mas deram-me o peixe e eu agarrei-me.”
O sentimento de desenraizamento já vinha de trás. Aos sete meses foi viver para as Canárias com os avós; regressou à Venezuela aos sete anos. E aos 18, quando foi pedida em casamento e viu de novo a oportunidade de regressar à Europa, não hesitou. João diz a brincar que não foi por ele que Rosa saiu da Venezuela.
Feitas as contas, vive há mais tempo em Portugal do que na Venezuela. Está de partida para ver a família que é de Puerto Ordaz. Os quatro têm lá ido regularmente, mas não tantas vezes quantas Rosa desejaria. Os filhos conhecem os primos, contactam com a família por Facebook. Agora, Rosa vai regressar pela primeira vez sozinha. Só comprou o bilhete de ida. “Tenho necessidade imensa de estar com os meus pais”, diz comovida, lágrimas nos olhos.
A mãe não volta para Portugal? - perguntamos a Dionísio, na brincadeira. “Sou o primeiro a dizer para ela ficar lá até ao Natal”.
Este Verão será, assim, diferente em casa dos Gutierrez-Rocha. Dionísio, que no fundo vai lá todos os dias: qual é o espaço da família na sua vida? “É o hábito. É quase uma rotina.”
O pai fala: “Atenção, a minha família é um bloco. Apoiamos o que é necessário apoiar. Somos uma família muito unida.”
Rosa: “Quando há um dia que eles não vêm cá a gente estranha. Porque não vieram? Têm comida em casa? As crianças?”
O segredo para manterem a família unida e os dois aguentaram uma relação de quase 40 anos juntos “é o respeito e a tolerância, saber dar tolerância ao outro que às vezes está cansado, saber entender essa parte”, diz João. Rosa: “Às vezes ele diz coisas que eu não gosto e deixo andar. Pelos filhos, pela família. Acho que o facto de eu conseguir manter os filhos ao pé de mim é por respeitar a ideia deles. Faço-lhes ver aquilo que penso e eles seguem ou não aquilo que digo. Mas eles sabem que têm aqui sempre o apoio.”
E acrescenta: “Eu acho que sou o pilar da família.” João interrompe: “O pilar da família aqui sou eu.”
Receita para arroz de garoupa
300 gramas de garoupa por pessoa, 1 cebola grande, 4 dentes de alho, uma folha de louro, dois tomates grandes bem maduros (ralados), um pimento vermelho (metade ralado, metade cortado aos bocadinhos). Faz-se o refogado com a cebola, alho, louro, azeite, um pouco de vinho, os tomates e o pimento; junta-se o peixe; quando está cozinhado retira-se e coloca-se o arroz (cerca de uma chávena de chá pequena para cada duas pessoas); no fim acrescentam-se os coentros picados e uma colherzinha de vinagre.