Uma da tarde. No alpendre da sua loja na avenida, um casal idoso dispõe tigelas com tomate e pepino, uma travessa de cavalas assadas, sumos daqueles quase fluorescentes. Dois copos e talheres e está pronto o repasto à sombra. Este terminal da Ria Formosa é uma Ria Formosa ele próprio: todo o lugar à sombra e todo o lugar ao sol são habitats concorridos. A vantagem disso é que é fácil fugir da mancha humana e gozar a paz nos sítios mais improváveis. Em tronco nu ou quase, como faz este casal, no meio de uma avenida. E faz muito bem: mais calor, menos vergonha do corpo.
Quarteira, Agosto. Os números, como a maioria dos turistas, são gordos: três a quatro pessoas por metro quadrado, na praia; cinco a seis à beira da água; sete a oito no supermercado, onde mangas e papaias já foram mais apalpadas do que a maçaneta de uma casa de banho pública. Descansar aqui, com filhos, sobrinhos, pais e sogros, é o quê, exactamente? Para os que estão na areia, por exemplo, talvez férias não sejam férias sem o ruído, as cores e o cheiro dos panados dos outros. Mas não foi sempre assim, dizem os lobos do mar.
“Isto aqui já foi outra coisa, mais calma, sem tanta gente”. Segundo a mesma fonte, a transformação galopante de uma aldeia piscatória para cidade-postal aconteceu pela mão de brasileiros e à sua imagem. “É o sítio do Algarve mais parecido com o Rio ou Fortaleza, tem calçadão, a pessoa mete-se na praia em cinco minutos, vai e volta as vezes que quiser”. Depois dessa assimilação, gentes de todo o país, do Equador, da Colômbia, terão corrido para cá. Verão após verão, aluguer após aluguer, loja após loja. Quarteira praticamente não chegou a ser vila, tal não foi a expansão do seu asfalto.
Cai a noite sobre a cidade colorida e, no escuro do mar, traineiras como pirilampos na água. A praia recupera a forma, as centenas de pessoas estão agora no calçadão. Alguém achou que o lugar e a hora convidam a uma vigília por Gaza – marcada no Facebook para as 21h30. Às 22h, em volta de velas e cartazes, estão cerca de vinte pessoas. O número aumenta sempre que um dos organizadores declama versos ao megafone, mas os intervalos de silêncio logo devolvem os transeuntes às bugigangas e aos churros. Poucos metros à frente, outras vinte pessoas assistem à performance de uma família de seis elementos que dança ao som de ‘Macarena’, versão karaoke. Há quem peça bis.
Alguns comentam baixinho o porquê de a vigília não os deter por cinco minutos. “Massacre de Israel? Qu’é que a gente tem a ver com isso, mó?”, “Gaza é como um cãozinho pequeno que provoca o dono [Israel] até ele lhe dar um pontapé”, “Eu cá sou PSD”: as justificações são tão diversas como as consciências. Um miúdo lê “Todos somos Gaza” e pergunta à mãe o que é “Gaza”. As crianças e os seus porquês sobre o mundo. “Vamos para casa mas é”, responde a senhora, como quem não arranja uma explicação para o facto de o céu ser azul ou de o leite vir da vaca.
Quarteira, com todos os seus prédios, tendas e chapéus-de-sol, é só um exemplo de que somos mais colónia que sociedade.