“(Des)off-shorizar” Portugal

Normalmente quando pensamos em off-shores pensamos em contas, bancos e paraísos fiscais, mas a política de off-shore que caracterizou os últimos 20 anos de governação em Portugal, na Europa e a nível global é muito mais do que apenas isso – e, consequentemente, muito mais perigosa para a democracia, o desenvolvimento económico e o combate à desigualdade em Portugal e no mundo.

A “off-shorização” política, económica e cultural é a estratégia ganhadora que caracteriza aquilo a que Warren Buffet, um dos grandes investidores do século XX, chamou de “guerras de classe”. Uma guerra que, segundo o mesmo, está a ser ganha, pelo menos, até agora pela classe “ultra-rica”.

John Urry, sociólogo e autor do livro Offshoring, define essa classe “ultra-rica” promotora das práticas de off-shore enquanto a classe global composta por indivíduos e famílias de rendimentos muito elevados, isto é, proprietários/gestores de grandes empresas produtoras e prestadoras de serviços a nível global e internacional, membros de múltiplos think tanks, líderes políticos e destacados membros das elites partidárias.  

Sabemos, tendo por base múltiplos estudos, que as grandes empresas actuando nacional ou globalmente detêm subsidiárias, associadas ou joint-ventures off-shore em locais normalmente definidos como “paraísos fiscais”. Essas empresas são construídas, como refere John Urry, como bonecas russas, cada entidade detendo múltiplas outras em camadas de ocultação e segredo.

Utilizando como exemplo um protagonista financeiro-empresarial próximo da actualidade portuguesa, a Goldman Sachs, John Urry refere que aquela empresa financeira é constituída por 4000 entidades, por vezes separadas entre si por até 10 níveis relacionais,  e estando cerca de um terço registadas em paraísos fiscais.

No entanto, um exemplo de off-shore é também o do escândalo da carne de cavalo vendida como carne de vaca na Europa. Isto porque mesmo a maior parte do que comemos viaja entre múltiplas empresas, muitas delas associadas a “off-shores”, antes de chegar até ao nosso prato.

Para John Urry, off-shore não é sinónimo apenas de dinheiro e impostos, mas de muitos mais processos tornados distantes e, em parte ou na totalidade, secretos, incluindo a produção industrial, o lazer, a energia, o tratamento de lixos, as emissões de dióxido de carbono e a segurança.

O “off-shoring” é, efectivamente, o lado negro da globalização, mas não é uma inevitabilidade. Apenas tem sido apresentado como tal pelos mesmos agentes económicos e políticos que mais têm lucrado (à custa de todos os outros) e que, por via das políticas de off-shore, praticadas também em Portugal, têm ascendido a essa classe global ultra-rica.

Por sua vez, “(des)off-shorizar”, ou promover políticas de on-shore, não implica recusar a União Europeia, a globalização ou uma vida cosmopolita. Implica sim recusar um sistema implantado para apenas aumentar o poder e a riqueza de uma pequena elite em detrimento das classes médias e dos mais pobres a nível nacional e no todo global. 

Uma agenda política de mudança para Portugal tem, necessariamente de se questionar como pode “(des)off-shorizar” práticas governativas e empresariais, leis e, até, normas culturais até agora vistas como toleráveis. 

Uma agenda política on-shore implica a recusa da ideia de que todas as políticas devem ser desenhadas para dar mais vantagens aos “investidores móveis estrangeiros” em detrimento dos valores e princípios pelos quais o mesmo governo rege a sua relação com os residentes nacionais. Implica assim dizer um basta à erosão sistemática da democracia e das noções de justiça dentro das sociedades e entre sociedades.

Esse “(des)off-shorizar” implica também levar em consideração, na acção política nacional, global e europeia, o movimento de recursos, pessoas e valores de um território nacional para outro e de que forma eles são na totalidade, ou parcialmente, escondidos da vista do público ou das autoridades públicas.

A política on-shore implica trazer para próximo de nós, para o espaço dos nossos países, muito do que tem sido levado para longe de nós, para longe do nosso controlo, para longe da transparência e do escrutínio dos cidadãos e dos poderes públicos.

É certo que há uma dificuldade inerente aos processos de retorno do que foi levado para longe. Essa dificuldade, como sugere Urry, é produto da necessidade de criar tanto um discurso comum internacional como um sistema de procedimentos robusto, que assegure que os recursos gerados numa sociedade são sujeitos a transparência e taxação dentro dessa mesma sociedade.

No entanto, não há nada de impossível neste objectivo e, em particular, em duas áreas da governação fundamentais: produção industrial e energia.

É fundamental trazer para próximo de nós a produção energética em detrimento do seu posicionamento em zonas distantes de Portugal, sobre as quais pouco ou nenhum controlo possuímos, perante cuja aquisição estamos dependentes de governos terceiros, de transacções assentes em zonas cinzentas da política, economia e finança.

Há, assim, que apostar numa “(des)off-shorização” da política energética portuguesa com o regresso da aposta em energias produzidas em Portugal, energias alternativas que não dependam de dólares na sua aquisição, que não dependam de múltiplas redes financeiras intermediárias e que não estejam sujeitas à especulação bolsista, à desestabilização política e militar ou que contribuam para o efeito de estufa e para acelerar as alterações climáticas.

É, igualmente fundamental, apostar numa “(des)off-shorização” da política industrial portuguesa. O desenvolvimento de práticas industriais on-shore assentes na impressão 3D, numa industrialização 4.0 e na inclusão de controlo permanente de produtos via Internet, permite que muito do que é até agora enviado para ser produzido na Ásia ou que compramos fora, retorne até nós, promovendo o regresso de indústrias e de emprego. Reduzindo as importações e podendo até vir a aumentar as exportações em algumas áreas.

Por outro lado, essa reindustrialização on-shore permite seguir o percurso dos produtos desde a sua produção até ao consumo. Dando origem a um maior controlo, por parte das entidades públicas, através da monitorização e controlo da produção física e, consequentemente, à desmontagem das lógicas articuladas em torno do desenho jurídico de fiscalidade e propriedade “off-shore”.

Há, como vimos, áreas onde não precisamos de esperar por ninguém para liderar na definição de políticas e na acção política na Europa e no mundo. Mas há também tudo aquilo pelo qual devemos lutar na Europa e internacionalmente.

Nomeadamente, apoiar as propostas de transformação da base legal de taxação das empresas multinacionais, incluindo as empresas financeiras, tratando essas empresas enquanto uma única entidade global, tendo as empresas que apresentar um conjunto de contas consolidadas, assentes na proporcionalidade de actividade em cada país de acordo com a sua presença real (tendo em consideração o número de pessoas empregues, a localização física dos seus bens e o valor das suas vendas).

E lutar, sempre, por um maior controlo sobre as transacções financeiras. Não impedindo nunca a liberdade de transacção de capitais, mas monitorizando cada vez mais as transacções electrónicas, para obter maior controlo sobre as jurisdições cinzentas.

Só recusando a herança das políticas off-shore e promovendo políticas de retorno ao on-shore nacional podemos esperar inverter a erosão da democracia e da justiça e, mais importante ainda, pôr cobro à ideia de que é justo tornar o que é de muitos sempre mais pobre e o que é de poucos sempre mais e mais valioso.

O autor é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.

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