O arrepio árabe
Quem somos nós é uma pergunta que atravessa a exposição do New Museum dedicada ao mundo árabe. Construída a partir do documentário de Godard, Ici et Ailleurs reúne a iconografia de artistas de várias gerações. Um incómodo a partir de um compromisso ético e estético: o que conta e o que não consegue contar cada imagem.
E é como se não houvesse câmara e o mediador daquela mensagem fosse apenas a expressão daquele rosto. Ela é uma “jovem intelectual simpatizante da causa palestiniana”, que “não está grávida mas aceita fazer esse papel”. Estamos perante um documentário assinado por Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville em 1976, Ici et Ailleurs, espécie de guia para uma exposição que traduz o título para inglês e onde o New Museum se propõe continuar a divulgar a arte mais estimulante e menos conhecida e, no caso, a mais recente mostra de uma série que pretende levantar questões consideradas urgentes para a opinião pública norte-americana.
São mais de 45 artistas de 15 países representativos da diversidade do mundo árabe nas últimas décadas colocados num contexto que aproxima olhares. Quem vê o quê onde e que interpretação é possível disso que chega de outro lugar até ao do espectador. “Here and Elsewhere vem contrariar a ideia de que o mundo árabe é uma entidade homogénea ou coesa”, refere Massimiliano Gioni, recém-nomeado director artístico do museu e responsável pela exposição que ocupa todo o espaço do museu da Bowery desde 16 de Julho e até 28 de Setembro deste ano.
É um teste à passividade do espectador onde uma tomada de posição nunca é apenas ser a favor ou contra algo. Como no documentário/ensaio dos realizadores franceses que começou por ser um “panfleto” pró-Palestina, mas que pouco depois já tinha outra função: a de questionar o poder da imagem e de como cada um a recebe. Questões éticas, estéticas, ideológicas incluídas. Nada aqui pretende ser simplista. Ou então faça-se o inverso e tente retirar-se toda a carga ideológica que uma imagem pode conter e fiquemos pela sua beleza ou violência ou… É nessa fronteira de possibilidades que se situa esta exposição. E é aí que reside muito do sentimento de angústia que acompanha o olhar de quem faz o périplo – há quem lhe tivesse chamado peregrinação – arrepiante pelo Egipto, Síria, Iraque, Tunísia, Líbano ou Arábia Saudita, por trabalhos de artistas menos desconhecidos no Ocidente como Kader Attia, Yto Barrada, Susan Hefuna ou Waell Shawky.
Consegue o espectador, americano ou europeu, num momento em que voltam imagens que ameaçam banalizar-se de um confronto que divide paixões, ver-se reflectido naquele espelho onde estão mulheres de burqa, crianças fotografadas com armas num salão fotográfico onde, no ocidente, no lugar dessa arma estaria, por exemplo, um urso de peluche ou uma paisagem bucólica? A História e a actualidade e as referências sucedem-se como modo de contextualizar. Consegue ver-se o espectador na cama estreita de um apartamento minúsculo do qual uma outra rapariga que fala para outra câmara só pode sair quando as sirenes deixarem? Em que apartamento de um prédio de centenas de apartamentos iguais se veria ele a viver? Está ali o bloco de betão armado a simular o prédio verdadeiro e a sensação de claustrofobia que sugere. A interpelação é incómoda. “Aqui crianças vêem televisão antes de fazer os trabalhos de casa e depois de comerem a sopa…”, continua o documentário/ensaio de Godard-Miéville, quando passam as imagens para algures, onde homens armados tentam atravessar um rio sob fogo israelita…
O não dito
Nada é simples. Em tudo o que vemos está implícita essa outra questão que perturba. Seja no documentário como em toda a iconografia da exposição: o que não vemos? O que esconde cada imagem? O que está por contar? Qual o limite da nossa capacidade de entender? As perguntas centrais de Ici et Ailleurs, da década de 1970, continuam a ser as questões de base de 2014 de Here and Elsewhere. E o espelho em que o espectador se procura não é nunca um mero reflexo. Por isso, ser pró ou a favor são questões tão estereotipadas como muitas das imagens a que o espectador se foi habituando mas que não correspondem ao critério de selecção para esta exposição. O óbvio, ou o banal, existe aqui enquanto modo de acicatar.
Como a fotografia em grande escala a forrar a parede dos elevadores no átrio do museu. É na primeira galeria da mostra. A imagem de um luxuoso hotel em Abu Dhabi montada por um colectivo de oito artistas que vive entre o Dubai, Londres e Nova Iorque e que se fotografaram vestidos de xeques em retratos colocados por cima da bilheteira, um trabalho de denúncia da distribuição da riqueza vinda do petróleo nos países do Golfo Pérsico. Ao longo de cinco pisos sucedem-se mais exemplos a testar emoções. Não há lágrima diante do ouro do Dubai, mas há um nó na garganta que se forma na sala onde mãos traçam no mapa a diáspora de uma imigração de fuga política ou de miséria. Nem um rosto. Só o atlas da fuga com frases que tanto podem caber numa reportagem quanto num poema. São os vídeos de Bouchra Kalili na penumbra onde nem os espectadores conseguem ver o olhar uns dos outros perante aquelas imagens, num pudor que se agradece.
O indivíduo e o colectivo. Ou o indivíduo num colectivo que quase sempre o anula. Quem sou eu? Vai-se questionando também o espectador. A identidade constrói-se e é mutante. Como são a identidade e a imagem que cada um daqueles países vai dando de si. Volta a ideia que Godard quis sublinhada: a de que não importa quem manda. Importa o fim a que se destina a ordem e isso pode justificar toda a violência.
Quem sou eu perante isto? E como é que uma imagem pode responder a essa questão numa montagem já testada em 2011, ano da exposição da mesma série que Ostalgia, nome retirado de uma palavra que surgiu na década de 1990 na antiga Alemanha de Leste para descrever um sentimento de nostalgia associado ao antigo bloco Comunista. Também organizada por Massimiliano Gioni, englobava trabalhos de artistas produzidos em alguns dos países ou territórios que formavam o ex-Leste europeu. Aí, como em Here and Elsewhere, há testemunhos pessoais, confissões, objectos no contexto para que foram pensados e depois descontextualizados, relicários, paredes decoradas por adolescentes onde ídolos do Ocidente surgem ao lado de ditadores árabes num mesmo plano, reportagens de guerra e líderes em discurso de poder. O processo de escrita do poema The Arab Apocalypse, da escritora e artista plástica libanesa Etel Adnan (n. 1925). Estão lá todas as hesitações, emendas, ilustrações auxiliares de uma escrita nascida da dor.
O tema é sempre o contraste. A transformação. Dos lugares de uma geografia onde a religião comanda, mas passa a ser um papel utilitário num mundo também ele em transformação. Meca é religião e turismo de massas e passa a ser economicamente dependente dessa nova realidade global. O que mudou está visível num vídeo do saudita Ahmed Mater (n.1979) apresentado no mesmo piso de abertura, o da imagem do luxo do hotel árabe.
Somos globais, continua a contar esta narrativa. Quem vê, como quem, por exemplo, conta a sua história de sobrevivência no conflito libanês em Objects of War, de Lamia Joreige, outra libanesa, outra geração (n. 1972). E há primeiras-páginas de jornais, fardas, peças de vestuário civil, na tal narrativa feita por quem a vive a que se junta os que observam. O outro ali somos sempre nós e numa sempre perspectiva de contágio. Isso é inerente. A urgência de interpretar como se aí houvesse alguma salvação. Quem somos perante o que vemos? O homem urbano, o homem religioso, o solitário habitante de um local em guerra, o excluído da sociedade, o político e o privado. Em cada representação volta a inquietação. Seja no Egipto de Nasser, numa época fortemente marcada pela colonização ocidental, seja num momento de rejeição das ex-colónias a esse ocidente pós-colonizador.
Cada sinal é para ser interpretado até que se torne impossível continuar uma leitura de causa ou consequência. O caos toma conta dos espectadores e essa é a ordem desta exposição na qual o New Museum continua a querer à imagem do objectivo para o qual se fundou há 35 anos. O de revelar o que sai fora da caixa e incomoda e quer questionar: as consciências mais ou menos tranquilas e conformadas. As que, numa primeira leitura, lêem “extremismo” naquelas representações, que deixam, no entanto, espaço para a imaginação, o lúdico, a fantasia. Escuta-se música numa capital e ouvem-se explosões de bombas na Faixa de Gaza; numa parede sucedem fotografias de casais homossexuais num momento de menor opressão.
Houve artistas que rejeitaram o convite do New Museum para estar no que foi apresentado como uma exposição do mundo árabe. Não quiserem estar conotados com um universo tão susceptível a interpretações falaciosas.