Gregorio Duvivier: a poesia pela porta da frente

É um dos fundadores do maior fenómeno de humor do Brasil dos últimos anos. Mas durante a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), quem subiu ao palco não foi a estrela de Porta dos Fundos mas o poeta Gregorio Duvivier: “Humor com poesia é fundamental. Poesia com humor é maravilhoso”.

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Gregorio Duvivier tenta "colocar afecto neste humor porque só o afecto salva" Walter Craveiro

açaí açaí — você conhece o waldo — olha o mate — waldo

que waldo — é o melhor musse do rio de janeiro — agora

joga um spray nas minhas costas — conheço um waldo que

morreu — meu musse é o melhor — o waldo não morreu quem

morreu foi o walter — foi o waldo — empada praiana — foi o

walter — sabe que — açaí — no fundo — açaí — eu acho que

o nome dele era — olha — waldo mesmo — o mate — porra

tu — guaraplus — tacou spray — guaraplus — no meu olho

— o waldo — mate — ele mesmo — então, morreu — olha o

mate — para morrer, meu amigo — mate — basta estar vivo

Posto Nove e meio é o primeiro poema que Gregorio recita para a plateia que lota o auditório. Aplausos e risos. É do livro mais recente, Ligue os Pontos (2013, ed. Companhia das Letras). Veio falar de prosa e poesia com outros dois brasileiros: o poeta marginal dos anos 1970 Charles Peixoto e a jornalista Eliane Brum. Três autores de gerações diferentes que ficaram conhecidos por motivos diferentes, como lembra o moderador Miguel Conde. Mas é com o actor, argumentista, poeta Duvivier que o público parece envolver-se mais afectuosamente. Mais afecto?

Sim, é com afecto que Gregorio fala de Millôr Fernandes, o grande homenageado da FLIP deste ano, que nunca chegou a ler o segundo livro do jovem poeta. Millôr morreu um ano antes. “O humor de Millôr está cheio de poesia, antes de ser um humorista era um poeta. O humor hoje em dia perdeu a humanidade e as pessoas confundem a liberdade com a galhofa, com a falta de educação, provocação irresponsável, o humor sem afecto. Millôr estava sempre falando com uma visão muito profunda da condição humana”.

Ao ouvir o tom carinhoso com que fala de Millôr, o moderador Miguel Conde provoca. Lembra que os poemas de Gregorio falam de amor, de amigos, de carinho, cheios de afecto. Contrastam com o humor de Gregorio, que encarna polícias militares corruptos, pastores fanáticos. “Na poesia você fala sobre o que você ama e na comédia sobre o que você odeia?"

“Adorei esta definição. Gostaria muito de fazer poemas sobre a polícia militar mas ela não me permite este tipo de liberdade” – responde Gregorio, e arranca mais gargalhadas da plateia rendida. “No fundo, é isso mesmo", confirma o poeta. “Pode não parecer mas tento colocar afecto neste humor porque só o afecto salva, permite o que a gente quiser. A ternura é um ingrediente fundamental.”

Gregorio tenta evitar críticas nominais directas e piadas sobre minorias, pessoas de quem a sociedade já tem o costume de rir. “Para que o humor não deixe de ser humor e vire agressão. De certa forma é uma dimensão afectiva do humor, o humor com uma consideração pessoal.” E dá um exemplo. “Uma pessoa chega para você e diz que o pai dela se matou e você diz ‘É porque não te aguentava mais’. Não é um crime legalmente dizer ‘se matou porque não te aguentava mais”. Não é um crime na lei mas é um crime de gosto. Isso é uma falta de humanidade. O humor volta e meia cai neste lugar do ódio, do ‘se matou porque não te aguentava mais’, cai neste lugar perigosíssimo porque é engraçado, mas é fronteiriço porque não tem o afecto.

Ao se deparar com a coisa mais bonita do mundo:

1. Certifique-se de que ela existe

2. Observe-a minuciosamente. Pode ser que ela evapore

3. Ouça a coisa mais bonita do mundo

4. Deite a coisa mais bonita do mundo sobre a superfície mais confortável do mundo

5. Ame-a imensamente

“Humor com poesia é fundamental. Poesia com humor é maravilhoso”, resume mais tarde ao PÚBLICO o poeta Gregorio. “O humor e a poesia sao muito complementares, os dois dão visões novas sobre o mundo, os dois ajudam a gente a viver, cada um à sua maneira. O humor em geral é uma visão um pouquinho mais ácida, em geral do humor não sobra nada, ele destrói para depois construir. A poesia é o escape, tem alguma redenção seja ela qual for, nem que seja pela beleza. Os dois vivem bem juntos. Até porque o humor tira a seriedade do poema, do poeta que acha que o sentimento dele é mais profundo que o dos outros. Não tinha isso antigamente. O poeta achava que a sua lírica e sensibilidade o tornavam uma pessoa especial e isso é uma cagada, por isso que eu acho que o humor é lindo. Ele relativiza e põe o poeta no meio do mundo, com as pessoas.”

Querer tudo é não querer

nada é perceber que nada

é pior que tudo e qualquer

coisa é melhor que nada

é melhor do que não querer

tudo e querer uma coisa só

pois para ser feliz é preciso

querer uma coisa só e saber

deitar ao lado dela - quieto

O próximo livro de Gregorio Duvivier será lançado em Novembro pela editora Companhia das Letras. Put some farofa é um livro de crónicas, muitas delas da coluna semanal que o humorista-actor-guionista-poeta publica na Folha de São Paulo. E escrever um romance? “Queria muito escrever um romance mas me falta tudo, na verdade.” E volta a arrancar risos, desta vez de outra plateia, que inclui o poeta Chacal, no espaço do Instituto Moreira Salles da Feira Literária. “Falta uma ideia que valha a pena, uma história, falta disciplina e tempo. Eu escrevo quando eu consigo, um romance não dá para ser escrito entre uma coisa e outra, porque você está criando uma nova realidade, novas regras, nova linguagem, um universo. É como correr uma maratona e eu não tenho este fôlego, sou corredor de 25, 50, no máximo 100 metros rasos.” 

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