I Grande Zanga Mundial
Não há como resolver as coisas em família. Há 100 anos, a 28 de Julho de 2014, três primos — Guilherme, Jorge e Nicolau — decidiram mudar os aborrecidos planos de férias em Julho e Agosto e, em vez de casinos e escândalos com amantes, meteram-se numa guerra muito breve que acabaria quatro anos depois com milhões de mortos. Foi uma das silly seasons mais patetas que a imprensa já registou.
Havia o kaiser alemão Guilherme que era entrevadinho de um braço (à direita na foto), neto da rainha Vitória e sobrinho do rei Eduardo VII; havia o rei inglês Jorge V, também neto de Vitória e filho de Eduardo; por último, o primo Nicolau II, czar da Rússia (à esquerda na foto), com quem Jorge passava férias desde pequeno. Mas o Guilherme nunca gramou os primos porque tinha um feitio muito esquisito.
Também havia Impérios Invencíveis por todo o lado. Um nacionalista sérvio matou em Sarajevo o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono da Áustria-Hungria. Conversa puxa conversa, aliança velha puxa aliança mais velha e, no espaço de um mês, o mundo marchava com os primos alegremente para o matadouro, sem perceber aquilo em que se metia.
Conseguiu–se uma mudança radical da Europa, nas então colónias, principalmente as de África, e no resto do mundo, que incluiu guerras de grande qualidade e barbaridade (a II Guerra Mundial é a filha mais querida).
Também se deram, em cem anos, mudanças espectaculares nos mapas da Europa e do mundo. A geopolítica é como uma criança que tenta dormir com um cobertor curto: a meio da noite escura, acaba sempre um país com os pés de fora…
Um século depois, os herdeiros não se poupam a esforços, dinheiro, vidas e mentiras para assinalar devidamente o aniversário. Correndo o risco de ofender alguém com um esquecimento (como naqueles casamentos em que um primo afastado não recebe o convite, e há bronca), é justo registar alguns dos conflitos em curso que não deslustram o prestígio da I Guerra Mundial. Alguns deles, aliás, foram programados com uma antecedência profética, como o “dominó democrático” da invasão do Iraque (dos primos Bush, Blair, Aznar e do amiguinho deles que era o filho da porteira, Durão Barroso). Invasão tão bem pensada como a compra dos votos para o Mundial do Qatar num clima de 50ºC à sombra. Antecedência profética nos vários sentidos da palavra e que permite hoje, no Norte e Levante do Iraque, levar ao poder jihadistas (ISIS) com uma interpretação assassina do Profeta. E, com a ajuda de antigos homens de Saddam Hussein, fundarem um estado islâmico sunita onde vigora a sharia, se proíbe a música e qualquer direito às mulheres, se explodem monumentos xiitas e se atiram “infiéis” para valas comuns. As festividades alargam-se à Líbia, onde a queda e morte do ex-aliado de França e de Portugal, Kadhafi (o da tenda de beduíno nos jardins de Belém), colocou nesta semana as refinarias e a capital Trípoli a arder, sem que os grupos armados radicais percebam quem manda ou o que querem fazer ao país, a não ser matarem-se.
Ou a Síria, onde, depois de expectativas curiosas de democratização, só ficou o medo e a morte cara a cara, como nas trincheiras da Flandres. Onde escapa qualquer compreensão lúcida sobre qual dos lados mais fortes (Bashar al-Assad ou fundamentalistas armados) é o pior. Sabe-se, no entanto, que o defensor dos direitos humanos que ainda não tenha conseguido fugir da Síria ou está morto ou em risco de vida.
O Sudão e Sudão do Sul são outro problema à altura deste centenário: se o comissário dos refugiados da ONU, António Guterres, pede ajuda desesperada — e já não apela ao diálogo ou suspira “é a vida”, como nos melhores tempos — tem de estar mesmo mal. Um pouco mais para oeste temos, então, o exemplo mais estapafúrdio do aniversário da avó que prometia acabar com a guerra: Israel a bombardear em Gaza edifícios oficiais da ONU cheios de mulheres e crianças, que morrem às centenas, presas num território de onde é impossível sair (a não ser pelos túneis do Hamas que estão a ser destruídos, se uma ironia do pior mau gosto nos for concedida). E a ONU, oficialmente, a protestar como uma velhota a quem tivessem roubado as bolachas do armário. E os Estados Unidos da América que “condenam” esses ataques mas, na mesma semana, aprovam o envio de mais bombas para ataques brutais a populações civis. Ataques feitos durante tréguas (até na I Guerra Mundial se fez a famosa trégua do Natal de 1914, em que as tropas inimigas confraternizaram e deixaram recolher os mortos). Como é histórico ouvir um jovem judeu, filho dos filhos dos sobreviventes do Holocausto nazi, a dizer para a câmara da RTP: “Eu quero os árabes todos mortos.” A nossa avó I Guerra Mundial está decerto orgulhosa do primeiro-ministro israelista Netanyahu: ele acha mesmo que vai acabar com o inimigo e voltar para casa em breve, depois de pôr crianças palestinianas (as sobreviventes) a crescer com a imagem dos amigos, das irmãs, das mães, espalhados em pedaços no tecto de uma escola onde lhes prometeram protecção.
Por último, não pode ficar em claro a explosão, com um míssil russo, de uma avião cheio de civis na Ucrânia. Um momento que capta o espírito da guerra aérea, começada precisamente na I Guerra Mundial. Mas há 100 anos ainda havia cavalheirismo nos ares, não havia Vladimir Putin. Guerra é guerra e comemorações são comemorações, não se deve poupar no simbólico porque a humanidade e a instituição familiar perdem os seus valores.
Por cá, entretanto, diz-se que o BES está pior e que Santana Lopes pondera a Presidência da República. Mas casos tão graves ficam para outra ocasião. Boas férias.