O admirável mundo alienígena dos Shabazz Palaces
Ao segundo álbum, os Shabazz Palaces inventam um vocabulário próprio, através de uma música densa e complexa, por vezes próxima da plasticidade do hip-hop e outras da espiritualidade do jazz. Ishmael Butler diz que são inspirados pelo que ainda não viveram mas querem viver.
No caso do hip-hop, mesmo se a música do americano Ishmael Butler não é bem hip-hop, é mais invulgar esse facto suceder, principalmente quando falamos de alguém que no início dos anos 1990 já tinha tido um papel influente na ligação do género ao jazz, através dos Digable Planets.
Mas é isso que está a acontecer com o mentor do projecto Shabazz Palaces e com o seu parceiro Tendai Maraire. Na meia-idade, Ishmael, está a viver o seu período criativo mais notável. Depois de um primeiro álbum marcante (Black Up, de 2011), o duo regressa agora com o admirável Lese Majesty, uma obra ocupada por um universo singular, feito de atmosferas subaquáticas, electrónica borbulhante e funk mutante.
“Vai ter de me perdoar se tiver um lapso de concentração a falar consigo”, avisa-nos logo de início. É que os Shabazz Palaces estão em digressão (no dia em que falámos com eles, estavam em São Francisco) e Ishmael passeia os filhos, enquanto fala connosco ao telefone. “As minhas crianças estão a caminhar pelo espaço de uma cidade que não conheço, por isso é melhor ter algum cuidado”, previne ele, rindo-se ao mesmo tempo.
Ishmael tem três filhos. E pelo menos dois deles já têm gostos bem definidos. A filha é pelo hip-hop. O filho mais velho pelo rock mais alternativo. Já ele vai a todas. “Oiço muito jazz. R&B. Música soul. Algum hip-hop. Música electrónica. Rock. Indie. Enfim, oiço de tudo.” Essa diversidade reflecte-se na sonoridade do duo. Por vezes imaginamos os Animal Collective a fazerem ao hip-hop o mesmo que fizeram ao rock. Outras vezes idealizamos o que Brian Eno faria se algum dia tivesse produzido R&B. E noutros temas visualizamos Sun Ra embebido na cultura da Internet.
“É preciso saber ouvir música hoje em dia. A quantidade de música que temos à mão era inimaginável há alguns anos, mas não pode ser apenas uma questão de quantidade. Temos de nos concentrar em destrinçar a qualidade. Ou seja, é óptimo podermos ouvir cada vez mais música, mas essa quantidade de informação disponível deve ser utilizada para sabermos de uma forma mais clara o que tem ou não qualidade.”
Lese Majesty, o novo álbum dos Shabazz Palaces, é diferente do primeiro. É ainda mais arriscado. No primeiro disco já procuravam formas singulares, mas dir-se-ia que neste registo não existem duas canções de base semelhante. Cada uma parte à procura do seu ideário. Mas no final acaba por sentir-se unidade.
“Vejo este disco mais como uma continuação, ou uma evolução, em relação ao primeiro álbum, do que propriamente como uma ruptura. É talvez um disco mais rico do ponto de vista sonoro, porque pela primeira vez tivemos a possibilidade – depois de muitos espectáculos e digressões – de construir o nosso próprio estúdio e isso modifica um pouco as coisas. Permitiu-nos mergulhar no som de forma diferente, mais aprofundada talvez, e ao mesmo tempo de gravar de maneira menos ansiosa.”
No final de 2011, os Shabazz Palaces actuaram em Lisboa e no Porto. A 1 de Novembro regressarão ao MusicBox, em Lisboa, integrados na programação do festival Jameson Urban Routes. Quem já os viu ao vivo sabe que são capazes de criar momentos de grande sedução, através de programações, percussões e vozes. Para eles, a aprendizagem do palco nos últimos anos foi determinante na feitura do novo álbum. “Permitiu-nos explorar novos ritmos e sons, até porque nos espectáculos existe improviso. Nesses momentos, sem rede, por vezes podemos estatelar-nos no chão, mas também se podem descobrir coisas maravilhosas. É preciso é não ter medo, arriscar e ir fixando o que acaba por valer a pena.”
Não são politizados no sentido clássico de clamarem contra as injustiças, até porque de algumas letras nem sempre se consegue extrair um sentido preciso. Mas existem muitas formas de afirmação política, principalmente neste momento de grande desordem global. “Ser político é ser-se consequente com aquilo em que se acredita”, reflecte Ishmael.
O título do álbum, por exemplo, não é inocente. “É um ataque ao materialismo, à superficialidade, à cultura do ego, ao egocentrismo da nossa sociedade, principalmente quando pensamos em muitos campos do hip-hop nos Estados Unidos. Insurgimo-nos contra isso. É difícil entender porque é que tanta música hoje se transformou em mero entretenimento. Não existe compromisso. As pessoas vendem-se por pouco. E não é apenas na música. Quando as pessoas não encontram uma motivação para o que fazem são facilmente manipuláveis por quem já perdeu há muito a paixão pelo que fazia e agora só pensa em dinheiro.”
Instinto e trabalho
Paixão é o que não falta a Ishmael. Percebe-se que, para ele, a música não está dissociada da sua vida, do que pensa, sente e projecta, e também da existência de uma ideia de comunidade. Os seus Shabazz Palaces são de Seattle, onde integram a Black Constellation, um colectivo de artistas e pensadores das mais diversas áreas, entre pintores, escultores, filósofos, realizadores ou músicos como as THEESatisfaction. Para Ishmael, a música só faz sentido se for devidamente partilhada. “Fazer música é uma dádiva. É literalmente dar vida”, explica ele, enquanto vai falando em simultâneo connosco e com um dos filhos, quase como se estivesse a falar apenas para ele.
“Sabes, podemos escolher o que fazer com essa dádiva. Eu penso acima de tudo em partilha. E quando isso acontece é importante perceber o que se está a pôr cá fora e a maneira como aquilo que fazemos pode afectar as outras pessoas, apesar de não podermos controlá-lo na totalidade. A música é uma responsabilidade para a vida. É simples: pode-se ser egoísta ou então fazer qualquer coisa de bom com o talento concedido. Os músicos têm obrigações, perante si e perante os outros. E ao mesmo tempo podem ser gratificados materialmente sem serem egoístas.”
Responsabilidade é uma palavra que utiliza muito ao longo da conversa. Às tantas perguntamos-lhe se a experiência de ter sido pai por três vezes alterou a sua forma de olhar a relação com a música. “Não modificou grande coisa”, responde ele, para de seguida alterar o raciocínio, “mas teve impacto sobre muitas dimensões da minha vida, logo inevitavelmente também sobre a música”. E completa: “Ser pai é conhecer alguém sobre o qual sabemos que iremos ter impacto durante o resto da vida. Temos uma responsabilidade perante essa pessoa. Mas essa pessoa também ficará íntima e directamente ligada a ti para o resto da tua vida.”
Outra palavra que utiliza muito é inevitabilidade. Acredita na mudança. Mas também em aceitar a vida tal como ela é. “Para a mudança acontecer é preciso acreditar e insistir, mas em primeiro lugar compreender. E às vezes percebemos que existem coisas inevitáveis que são assim e não vale a pena pensar muito nisso. Como pai e filho. "Não podemos escapar um do outro, com o que isso pode ter de feliz ou conflituoso. Tudo o que fizermos e dissermos um ao outro vai ter um efeito duradoiro.”
Na vida, como na música, acredita na intuição, mas também na organização só possível com o esforço continuado. “Quando partimos para este disco não falámos muito. Usámos o instinto. Fizemos o que sentíamos. Não nos preocupámos com expectativas. Mas isso só é possível porque existe um conhecimento mútuo e porque ao longo dos anos fomos conseguindo conquistar o nosso espaço de liberdade. Ou seja, é trabalho. Para se confiar no instinto é preciso muito trabalho.”
A maior parte da imprensa diz deles que são “o futuro do hip-hop”, mas Ishmael encolhe os ombros perante tais nomenclaturas. “Não quero ser o futuro, mas sim o presente”, ri-se, assinalando que vivemos um período histórico de transição. “Recebemos cada vez mais informação, mas nem sempre sabemos o que fazer com ela. Como fazer de forma saudável o processamento dessa informação é uma questão em aberto.”
No caso dos Shabazz Palaces, o processamento desse conhecimento passa por não recear procedimentos em aberto. Não temer o caos, o excesso, a acumulação de signos, aquilo que não se conhece.
“Somos inspirados por arte, filmes, livros, relacionamentos, pelo chão que se abre à frente, pelas namoradas e pelas mães, pelos opostos, pelo relaxamento e pela tensão, pela confusão e pelas certezas, pela forma como respiramos e principalmente pelo que ainda não vivemos mas ainda queremos viver”, diz-nos ele de um só fôlego, para concluir de seguida: “Podemos não reconhecer todas essas ligações de forma óbvia na nossa música, mas tenho a certeza de que elas estão lá.”