Nevala, um forte longe de mais

Numa madrugada de Outubro de 1916 uma coluna de 1800 soldados portugueses avista ao longe o forte de Nevala, na actual Tanzânia. Um mês de fome, sede e marcha dolorosa entre a selva tinha-a transformado numa legião despedaçada. O forte seria conquistado, mas a maior expedição de tropas nacionais para África na Grande Guerra estava desfeita e pronta para o golpe de misericórdia. Que viria em breve

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A fotografia do líder nacionalista Julius Nyerere gasta pelo tempo foi esquecida numa esquina. Por cima de uma porta ficaram umas algemas. Espalhados pelo chão foram deixadas folhas soltas de autos policiais escritos em suaíli. O espectro de ruína que ameaça o velho forte alemão de Nevala é uma boa sugestão para se imaginar a sensação de abandono, desesperança e agonia que mais de um milhar de soldados portugueses ali sentiram nos dias de cerco que durou entre 22 e 28 de Novembro de 1916.

Salehe Saidi Mawazo, 84 anos, diz que o “boma” (forte) foi construído “por volta de 1893 para defender a cidade dos portugueses”, instalados para lá do rio Rovuma, que se avista a uns 40 quilómetros de distância. Salehe, o sábio da pequena cidade, nunca ouviu falar da sua conquista pelos portugueses. Na sua memória, a dominação alemã que acabaria em 1918 começa e acaba com a “brutalidade”, os “trabalhos forçados”, a insistência “num governo pela força”. A curta passagem de 1800 portugueses por Nevala não se incrustou na tradição oral, mas haveria de dar origem a uma das mais exuberantes manifestações de euforia e depressão de toda a Grande Guerra na África portuguesa.

Entre 26 de Outubro e a madrugada chuvosa de 28 de Novembro de 1916 Nevala foi um símbolo da glória, do heroísmo, do valor da gesta portuguesa. Duas colunas de soldados tinham conseguido atravessar o Rovuma, foram capazes de bater a resistência alemã no seu próprio território, subiram à serra de Nevala e conquistaram o seu forte. Para um exército desmoralizado, doente, sem equipamento adequado, atacado pela ausência de linhas de abastecimento que lhe garantisse água e comida, a façanha merecia as homenagens e os elogios que se ouviram e leram nas galerias do Parlamento, nos salões da gente culta de Lisboa e do Porto ou nas páginas dos jornais. Um mês bastou para que essas ilusões de glória efémera se desfizessem e Nevala se transformasse na derrota que destruiu o maior e melhor equipado contingente português enviado para África em toda a o conflito.

Para se perceber o que esteve na base daquela loucura é preciso esquecer as boas práticas dos códigos militares ou o mais elementar bom senso e procurar respostas nas prioridades dos políticos. Mal desembarcou os seus primeiros homens na baía rasa de Palma, em Julho de 1916, o comandante da Expedição, general Ferreira Gil, empenhou-se em pedir a Lisboa tempo e a substituição das tropas que tinham chegado no ano anterior. O rigor do clima, o desgaste das febres e as sequelas dos combates infrutíferos da Primavera para atravessar o rio Rovuma tinham transformado este contingente numa legião de incapazes para outra coisa senão a luta pela sobrevivência. De Lisboa, porém, a ordem era a mesma e repetiu-se entre Julho e Setembro em crescente tom de ameaça: as tropas que existiam eram suficientes para atacar o inimigo no seu território e, assim, ganhar trunfos para garantir a preservação do império e até, quem poderia saber, novas anexações quando o dia da paz chegasse.

A travessia do rio deu-se a 19 de Setembro de 1916, mas logo depois houve uma mudança de planos. As colunas portuguesas não seguiriam pelo litoral, onde seria mais fácil serem abastecidas. Os ingleses tinham chegado mais cedo e ocupado Mikidani, actual Mtwara, e a ambição do ministério apontava agora para o interior dos territórios da actual Tanzânia. Nevala, a 200 quilómetros da foz do Rovuma, “nas abas de um maciço de escarpadas montanhas, em pleno interior africano, sem caminhos, nem estradas, nem qualquer outra etapa intermédia”, como a descreveu o alferes Carlos Selvagem, surgiu assim naturalmente num mapa de desejos que chegou a contemplar Mahembe, a uns impossíveis 400 quilómetros de distância pela selva.

O objectivo acertado entre o Governo e a expedição previam, no imediato, a conquista do forte de Nevala para se estabelecer um ponto intermédio de apoio na campanha que depois teria de seguir para Masasi, uns 70 quilómetros mais a noroeste. Para se lá chegar seria melhor regressar à margem portuguesa e reentrar na colónia alemã numa zona mais próxima de Nevala. Sempre se estaria mais perto da base de abastecimentos. Ferreira Gil, porém, decidiu manter as tropas em território inimigo. “Repugnava ao general mandar retrogradar as suas forças para Palma, para depois marcharem pela margem portuguesa, porquanto essas contramarchas enfraqueceriam ainda mais o já fraco moral das suas forças”, escreveu o coronel Azambuja Martins, chefe do Estado Maior da expedição e participante activo na operação Nevala.

Firmada a decisão, os portugueses procuraram de imediato cair nas boas graças dos macondes que habitam a zona fronteiriça, seguindo a mesmas estratégias de sedução que os alemães usavam com sucesso no lado moçambicano. A tarefa não era difícil de realizar. O ódio aos alemães, que Salehe Saidi Mawazo ainda hoje recorda, era provavelmente generalizado. Uma proclamação aos “indígenas do norte do rio Rovuma”, estranhamente redigida em português para destinatários falantes do suaíli, anunciava: “Novamente os portugueses, que ocuparam Quíloa em tempos mais felizes para os naturais, como provam ainda hoje as ruínas nessa cidade, voltam agora a expulsar um povo estranho sem tradições, que recentemente explorava a região”. Contrariando as expectativas, porém, os soldados nada fizeram para evitar as pilhagens a que, “sob a nossa flácida soberania”, como notaria Carlos Selvagem, os macondes de Moçambique se entregaram na outra margem do Rovuma.

O pesadelo em Mahuta

Além da propaganda, a hora era de espera e de preparação. Foi preciso quase um mês até que o movimento dos soldados se iniciasse em direcção a Nevala. Primeiro havia que vencer a crónica dificuldade de abastecimentos. Com as câmaras-de-ar dos camiões Kelly rebentadas pela dureza das estradas arrancadas à selva, eram necessários milhares de carregadores para fazer o transporte de água, comida e equipamentos desde Palma, a mais de 100 quilómetros de distância, até aos acampamentos instalados para além do gigantesco leito de seca do Rovuma. A engenharia militar lançou uma ponte sobre o rio, mas o grosso da coluna teve de recuar 30 quilómetros até Nichiriro, primeiro, e Sicumbiriro, logo a seguir (a toponímia das fontes da época nem sempre corresponde à actual). Seria nesta povoação perdida entre o mato e o capim que bordeja o Rovuma que as tropas se concentrariam antes da ofensiva final.

Várias missões de reconhecimento foram lançadas para se encontrar a melhor forma de subir ao planalto dos macondes e descobrir vias de acesso a Nevala. Numa dessas missões, os portugueses puderam constatar que os esperaria tudo menos um passeio triunfal. A 4 de Outubro, uma coluna saiu da sua base às quatro da manhã e seguiu um dos trilhos dos macondes que, “entalados pelos matos altos, são as únicas estradas que levam a Nevala”, na percepção de Carlos Selvagem. Nas imediações de Mahuta, a uns dez quilómetros do forte, num desfiladeiro envolto numa mata de espinheiros, cai numa emboscada. Eram quatro da tarde. “Os primeiros momentos foram terríveis para os nossos. A estrada de marcha, de onde não se podia sair, além de pejada de solípedes, era enfiada pelos fogos do inimigo”, recordaria mais tarde Francisco Curado, um dos poucos oficiais que se destacou pela lucidez e bravura na frente moçambicana, citado por Ricardo Marques no seu livro Os Fantasmas do Rovuma.

Surpreendida pela armadilha, a coluna demorou a recompor-se. Os soldados indígenas fugiram em desordem. Até que, uma hora e meia depois, o comando consegue reestabelecer a disciplina e definir posições. “Quando o inimigo nos julgava aniquilados e desmoralizados, os nossos atiradores rompem fogo por descargas e por tal forma que, desmoralizando o inimigo, fizeram calar as suas metralhadoras, permitindo assim a nossa retirada”, continua Francisco Curado. Para trás tinham ficado 33 mortos, entre os quais três soldados europeus. Um capitão, um sargento e 12 soldados ficaram feridos. Mahuta, ainda assim, não fora uma derrota, nem uma vitória. “Por honra e glória das nossas armas, o combate de Mahuta, que devia ter sido um dos nossos mais trágicos desastres desta campanha, redundou apenas, mercê do valor de alguns oficiais, numa escaramuça de avançadas, rijamente ferida de parte a parte, com muitos mortos e dezenas de feridos”, diria Carlos Selvagem.

Constatou-se no entanto que não havia condições para seguir em frente. “As nossas forças estavam exaustas pelo combate e sequiosas pela falta de água, que se fez sentir nas metralhadoras, tendo de se deitar nos refrigeradores águas minerais da ambulância e até urinas”, recordaria Azambuja Martins. A água das metralhadoras “tinha sido levianamente bebida pelos soldados indígenas”.

Cinco dias depois, em Sicumbiriro ultima-se a concentração das forças portuguesas. As tropas comandadas por José Pires e por Liberato Pinto juntam-se. A 13 de Outubro, a força sob as ordens pelo major Gama Lobo sai de Mironga e chega ao final da tarde. A Coluna de Masasi começa finalmente a ganhar contornos. Seriam ao todo uns 1800 homens prontos para cumprir a primeira etapa da conquista até Nevala. A sua missão seria atacar a fortaleza pelo Leste, deixando para um destacamento liderado por Azambuja Martins a missão de liderar a ofensiva pelo Oeste. A estratégia poderia ser ideal, mas, uma vez mais, acabaria por se perpetuar apenas com uma simples ordem de serviço no papel.

Com a base e os depósitos de abastecimentos longe, a Coluna de Masasi lutava contra a falta de alimentos suficientes para se aventurar em mais uma etapa pelo mato. Para os soldados da Coluna haveria 600 rações de reserva no dia marcado para a partida. Para os cerca de 1200 carregadores e auxiliares o pessoal das provisões apenas se poderia garantir grão e bacalhau para cozer. Ou seja, havia comida para, no máximo, dois dias. Junto ao rio, a água não faltaria, mas nada garantia que a houvesse lá acima, no planalto. Foi nesta incerteza que os soldados da coluna iniciaram a sua marcha rumo ao forte, eram três da manhã do dia 18 de Outubro. “Como pedir a um homem semimorto de fome e fadiga que se bata com galhardia ou saiba morrer com heroísmo?”, perguntaria nos dias seguintes Carlos Selvagem.

A ordem de serviço à coluna impunha-lhe um dia de marcha até às proximidades de Nevala. Mas para cumprir essa agenda seria necessário tomar o caminho de Mahuta onde, num dos seus desfiladeiros, a missão de reconhecimento tinha sido emboscada duas semanas antes. Por precaução, o comando opta por um caminho diferente. “Em lugar de seguir por Mahuta e chegar a Nevala numa etapa de 36 km, foi marchando hesitante pelas pantanosas margens do rio e só passados oito dias a Coluna de Masasi viu Nevala”, lamentaria Azambuja Martins. Não que a distância fosse muito maior – dos altos de Nevala avista-se ao longe o curso do Rovuma. O que atrasou a marcha foi a falta de comida, que obrigou a várias paragens. Em Pindimbe, onde se fez um reabastecimento, chegaria não só comida mas até uma caixa de chocolates enviada em nome do alferes Carlos Selvagem, um capricho improvável numa coluna faminta a vaguear pelo mato.

Seguindo por outros caminhos, Azambuja Martins cumpriu a sua missão de forma mais expedita e tranquila. No dia em que Carlos Selvagem se deliciava com a encomenda de chocolates, o chefe de Estado Maior da terceira expedição a Moçambique aproximava-se de Nevala. Nessa manhã, “a nossa pequena coluna continuou avançando, e a situação parecia indicar que nós tínhamos todas as probabilidades de êxito a nosso favor, porque os indígenas da região estavam do nosso lado, e eles estão sempre do lado do mais forte”, escreveria Azambuja. Pela tarde, lançaria um ataque surpresa com os seus 50 soldados europeus e 30 indígenas que privaria os alemães do controlo da água da ribeira de Nevala, um pequeno oásis a uns cinco quilómetros do forte, onde ainda hoje a população local se abastece nos meses de seca. Depois de colocar as suas metralhadoras em lugares estratégicos em volta da ribeira, Azambuja obrigou os alemães a retirar. No combate morreriam três homens e 12 ficaram feridos.

Agora restava-lhe esperar pela Coluna de Masasi, que se arrastava pelas encostas que ligam as margens do Rovuma ao planalto de Nevala. A 24, a coluna deixa Pindimbe e no dia seguinte está a curta distância da posição ocupada por Azambuja Martins. Carlos Selvagem deixa-a imobilizada e tenta fazer a ligação com o destacamento de Azambuja. Pelo caminho impressiona-se com o cadáver de um sargento alemão, “abandonado, insepulto, no mato, meio podre, negro de gangrena, a desfazer-se em pus e humores que escorriam, já secos, pelos buracos das balas que o feriram”. Nessa manhã, estremunhado, avista entre um bocejo a pressa da sua missão. “Lá no alto, bem longe, encarapitado na esplanada duma aguda montanha, a silhueta airosa e geométrica do fortim de Nevala, com as suas pardas muralhas, sua fiada de janelas, seu mastro esguio onde arrogantemente drapejavam já na aragem matinal as cores da bandeira alemã – vermelha, branca e negra”.

Descoberto o acampamento, o alferes procura o acampamento do coronel Azambuja e recebe uma descompostura. “Não era por ali que nos esperavam, mas sim pelo leste, pelos caminhos do planalto”, como rezava a ordem do quartel-general em Palma. No dia seguinte está de regresso com novas ordens. Pelo caminho tem de resistir a uma emboscada alemã. O soldado José dos Santos Calhau é morto com um tiro na nuca. Prossegue e ao chegar ao acampamento toma consciência do estado das tropas. Em vez de uma coluna, o que ele vislumbra é um bando de maltrapilhos. Após mais um dia de marcha intensa sem água nem comida, a coluna deixara-se adormecer “no mais suave dos entorpecimentos”, “sem uma sentinela, sem o menor cuidado, como se deve dormir na mão de Deus”. Outro dos participantes dessa odisseia, António de Cértima afirmou mais tarde que o comandante da coluna, capitão Liberato Pinto, “não fazia ideia onde se encontrava, não se preocupando por isso com a disciplina da marcha nem com as consequências que poderiam advir desta falta de critério militar”.

Com o frio da madrugada, a tropa desperta do sono retemperador e põe-se de novo em marcha. O outro elo da ofensiva estará perto. Às dez da manhã chegava à Ribeira de Nevala após uma semana de etapas. De imediato, Azambuja refaz os seus planos. Gorado o plano de ataque em pinça, três colunas sitiariam a fortaleza, mas antes lança-se um apelo à rendição dos alemães. A resposta é um violento ataque de artilharia que gera o pânico entre os portugueses. Um soldado em transe grita pela “mãezinha”. O alferes Selvagem pergunta-lhe se estava ferido. Ele respondeu: “ainda não, meu alferes”. A ordem é imposta a pontapé ou sob a ameaça da baioneta dos oficiais. Infelizmente não havia possibilidade de se responder ao ataque. Toda a equipa de artilharia tinha ido fazer uma missão de reconhecimento de posições.

Uma conquista, finalmente

Passada a surpresa das primeiras granadas, surge uma nova surpresa. “Observou-se uma explosão inexplicável num dos ângulos do fortim”, relataria Azambuja Martins. Os alemães desfaziam-se dos últimos explosivos e incendiavam os abastecimentos que não podiam levar na fuga. A tropa pôde finalmente subir em paz os cerca de 100 metros da escarpa até ao forte. Os alemães tinham-no abandonado.

Para Lisboa, a conquista de Nevala seria por breves semanas o zénite do brilho da jovem República. Um telegrama de Norton de Matos, ministro do Exército, para Ferreira Gil dizia: “Em nome do Exército e em meu nome saúdo e felicito V. Exª e forças do seu comando pela brilhante ocupação de Nevala. Todos vamos acompanhando aqui com comoção e entusiasmo o glorioso esforço, que com maior coragem e abnegação as nossas tropas estão fazendo em África para conquistarem o mais rapidamente possível grande porção do território inimigo, e vemos já as etapas de Masasi e Lukuledi seguirem à de Nevala”. No terreno, porém, a realidade era bem mais cruel.

Depois de hasteada a bandeira e de terem reconhecido o local, os soldados caíram rapidamente na realidade. Nevala era, e é, uma pobre localidade perdida na selva. O forte não passa de uma pequena construção com um andar rodeado de um muro. As cisternas de água que os alemães envenenaram com estricnina momentos antes de o forte ser conquistado ainda se conservam. O celeiro, que entretanto fora transformado em prisão, também. O melhor daquele lugar, ou pelo menos certamente o mais belo, é a extraordinária paisagem que se avista das suas traseiras. Um tapete denso de floresta e selva começa na escarpa por onde os soldados portugueses treparam (e por onde haveriam de fugir daí a um mês), estende-se dos pés do monte onde o forte funciona como coroa até à outra margem do Rovuma, onde o planalto dos macondes se reergue e prolonga para lá, até à histórica localidade da Mueda.

Com o problema da água meio resolvido – sempre a havia na ribeira -, os soldados entretiveram-se a vasculhar entre os despojos da ocupação alemã à procura de comida. Mais do que festejar a vitória, importava aplacar a fome. “Os homens, alquebrados de todo, o olhar riscado de demências, trincavam o milho que se encontrara num casebre anexo ao fortim, onde o alemão tinha o seu celeiro. Alguns, chorando até de raiva, mordaçavam as folhas verdes do ananás saboreando a humidade vegetal. O delírio da fome causava pavor”, recordaria António de Cértima. Um soneto criado pelos soldados dava conta do estado de espírito após essa estranha vitória. Felizmente não houvera combate, infelizmente não havia comida.

Sonho que sou um mísero magala

Por cacimbos, por sóis, por noite fria,

Como um teso, lá vou também um dia

À conquista da praça de Nevala

 
Mas já me sinto desmaiar, sem fala

Rota a farpela já, tripa vazia

Quando na sua brutal alvenaria

Lá num alto me é dado enfim cocá-la

 
Com muitos tiros cá de longe, brado

Eu sou um pobre diabo, um desgraçado

Entrega-te fortim! Não sejas tanso!

 
Abrem-se as portas, quase sem sarilho;

E dentro, encontro só, com algum milho.

Silêncio e escuridão… Foi um descanso!

 
Para todos os efeitos, a primeira parte da missão estava em tese cumprida. A “mísera escolta landim roendo peixe seco das rações e fartando a sede com água do Rovuma” que, “resignadamente”, na avaliação de António de Cértima, avançara em território inimigo, tinha uma bandeira para agitar. Por ora. A factura chegaria mais tarde.

O que poderia fazer um exército de homens “quase descalços, andrajosos, os uniformes em farrapos, os capacetes de feltro esbeiçados, sem uma chispa no olhar, um belo riso na face, todos quebrados já das fadigas, das fomes e das febres”, perguntava-se Carlos Selvagem, olhando à sua volta para os soldados portugueses que “se arrastam, arrimados a um bordão, como os mendigos das suas aldeias”. Três meses de “lazeres” em Palma, “requentando ao sol nas areias do Tungue, com mais um mês de marchas e bivaques, e grandes privações, esforços inglórios, destroçaram, mais do que as balas alemãs, a fina flor das nossas tropas europeias”, lamentava o alferes. O golpe de misericórdia estava para breve.

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Por cima de uma porta ficaram umas algemas. Espalhados pelo chão foram deixadas folhas soltas de autos policiais escritos em suaíli. Em cima, a fotografia do líder nacionalista Julius Nyerere gasta pelo tempo foi esquecida numa esquina
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Nevala era, e é, uma pobre localidade perdida na selva. O forte não passa de uma pequena construção com um andar rodeado de um muro
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Salehe Saidi Mawazo, 84 anos, diz que o “boma” (forte) foi construído “por volta de 1893 para defender a cidade dos portugueses”, instalados para lá do rio Rovuma, que se avista a uns 40 quilómetros de distância
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Transporte de água e refrigerantes no ferry que atravessa o rio Rovuma de Kilambo, Tanzânia, para Namoto, Moçambique
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Vista da serra de Nevala
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Um aspecto do quotidiano de Nevala
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