João Botelho dançando entre as pinturas, os objectos e os filmes

“Só acredito num deus que saiba dançar” é uma exposição em que o cineasta João Botelho se dá conhecer a partir das suas afinidades com os artistas e as outras artes. No Centro Internacional de Artes José Guimarães, dançando entre as pinturas, os objectos e os filmes.

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MIGUEL NOGUEIRA

“Isto não é um filme que põe os artistas a falar, mas que mostra os artistas a fazer, que mostra os seus processos de trabalho”, diz, antes de revelar o encontro que esteve na origem do filme: “Conheci-os através de uma amiga comum e visitei-os num edifício, na Avenida da Liberdade, onde trabalham. São artistas excelentes, pessoas formidáveis que formam uma família, uma escola pois ajudam outros artistas, mais jovens. Do trabalho de João [Queiroz] tinha visto uma ou duas pinturas, mas depois vi a exposição na Culturgest e fiquei maravilhado. Os outros, fui conhecendo. São belíssimos artistas. Estão todos aqui”.

O cineasta não se refere apenas aos sujeitos do filme. Nas paredes em volta, expõem-se pinturas de João Queiroz e Jorge Queiroz, uma peça de Francisco Tropa e fotografias e desenhos de Pedro Tropa. Se este lugar tivesse um nome, podia ser Cinco. Conduzidos pelo cineasta, os visitantes entram na sala seguinte mas, de repente, o cineasta imobiliza-se e acena divertido. “Dêem-me 15 minutos, vou fumar um cigarro”. E desaparece.

Cabe agora a Nuno Faria, o curador da exposição, evitar que as pessoas se dispersem. O director artístico do CIAJG discorre então sobre as obras que preenchem o espaço. Ali, a maioria pertence à colecção de José Guimarães, mas existem peças originárias de outros tempos, de outras colecções (por exemplo do acervo da escritora Maria Gabriela Llansol, também ela mote de uma exposição no CIAJG). Horas antes, essa confluência de tempos e obras tinha estado no centro de uma conversa mais reservada a propósito de “só acredito num deus que saiba dançar”, o título que baptiza a incursão de João Botelho na arte contemporânea.

“A primeira aproximação começou com um projecto [do cineasta] sobre Foz Côa enquanto princípio da arte e origem do cinema”, revela Nuno Faria. “Ele achava que já estava ali tudo. Eu também. Houve uma convergência. Começamos a discutir, desafiei-o e, a partir desse momento, começámos a trabalhar”. Por volta da mesma altura, João Botelho começou a rodar Quatro o que confirmava a existência de afinidades antes intuídas. “Interessavam-me os modos como ele trabalha e distorce a imagem, os seus artifícios. O trabalho nasceu de uma contingência, aprofundou-se e o desafio tornou-se, depois, muito evidente. Como transpor aquele universo para uma exposição?”.

As certezas são perigosas

Uma série de circunstâncias ajudaram a realização do projecto, do filme sobre Foz Côa à rodagem de Os Maias (estreia prevista para Setembro) que contou com a colaboração de João Queiroz na criação dos cenários. Mas a exposição não se resume à mostra de materiais. “Quis também expor o João [Botelho]. Por isso, há aqui um filme que nos revela a dança do seu corpo [aquele que dá o nome à exposição] e dimensões que vão muito além do enquadramento que temos por vezes da sua obra”.

Nuno Faria refere-se em particular a Quem sou eu? (mapa da certeza), uma vitrina que compõe e vela alguns dos trabalhos do João Botelho na condição de designer gráfico, bem como recortes de imprensa (incluindo do PÚBLICO) que permitem ao espectador  testemunhar e comprovar um conjunto de cumplicidades, afectos e paixões. O design da revista de cinema M e as capas de catálogos de ciclos de cinema (na Fundação Gulbenkian, nos anos 80) constituem uma revelação bonita, mas inquieta, tão inquieta que acende uma dúvida. Face à presença de Botelho no cubo branco (o CIAJG é um museu e um centro de arte), farão aquelas imagens parte de uma arqueologia? Faça-se a pergunta de outra maneira: João Botelho continua a gostar de cinema?

"Claro. Continuo a ir à Cinemateca”, responde prontamente. “É verdade que já não vejo muito cinema contemporâneo. Os filmes de hoje têm milhares de planos, não tenho tempo para ver tantos planos”. Faz uma pausa para sacudir o cigarro e sob o sol escaldante de Guimarães, continua, agora mais pensativo. “Fui vendo, fui conhecendo muitas coisas que puseram em causa as concepções que eu tinha da arte, do cinema. Na arte rupestre de Foz Côa vejo cinema, venho profundidade, perspectiva, primeiro e segundo planos. Há coisas que nos põem sempre em causa, a ideia das certezas é muito perigosa”.

Regressamos para o interior do CIAJG onde a multidão descobre a estreia de Botelho na produção de uma instalação audiovisual. Trata-se de O que vêem os homens. O que vêem os anjos. Duas imagens tocam-se na parede. A de uma vista área sobre o Monte da Penha, em Guimarães (feita a partir do teleférico da cidade), e um travelling de uma paisagem em Trás-os-Montes queimada pela sol. É uma obra imperfeita, mas tocante, pelo modo como convoca as paisagens e os movimentos do cinema de João Botelho (lembra os pontos de vista e a sensibilidade que organizam certas sequências de Aqui na Terra, de 1993, e Um Adeus Português, de 1985) e se deixa embalar pela música do Grupo de Cantares das Almas de Sendim. Mas será cinema? Como ver esta instalação? De passagem ou respeitando a duração que o cinema pede ao espectador?

É preciso tempo

“Esta exposição não é cinema. Aqui o que há é um didactismo sobre o meu cinema, com duas instalações e outros trabalhos. Esta exposição é, sobretudo, uma viagem ao cinema, não é uma recusa do cinema, não é roubar planos para fazer instalação. É uma coisa didáctica. Procuro mostrar como filmei os quatro artistas, quais são as minhas referências da pintura. Porque vai existir um ciclo de cinema, com os filmes inteiros [em Setembro, no Centro Cultural Vila Flor e na Cinemateca Portuguesa], assegurando a ideia de tempo, de duração, de concentração. Mas prezo a relação com as outras artes, porque o cinema também é feito das outras artes”.

Para além dos filmes, o espectador pode ver Quem inventou o espelho envenenou a alma humana, o espelho usado em O Livro do Dessossego, trajes que vestiram personagens de Quem és Tu (2001) e um grupo de documentários, pouco vistos, que atestam a relação do cineasta com a terra, com Trás-os-Montes, com o Douro ou Lisboa. Todas estas peças, discretamente colocadas no espaço, tecem relações com a colecção permanente, ao ponto de com ela se confundirem para serem “resgatados” por o que outras salas escondem. Veja-se no último terço da exposição, um cenário de Os Maias, da autoria de João Queiroz, que cobre a totalidade de uma parede, e uma fila de retroprojectores que faz aparecer pinturas de Edward Hopper, de Gustave Courbet, de Gerhard Richter, entre outros artistas. São referências de João Botelho que, na sala seguinte, se transfiguram nos excertos dos seus filmes perante o espectador.

“Mas é preciso tempo pra ver isto, para ver esta exposição. Hoje anda tudo muito depressa, só pensamos na rapidez. Ora não se pode ver um quadro do Cezanne em poucos minutos, é necessária meia-hora. Há miúdos que pensam que o cinema começou com o Tarantino, mas o cinema tem mais cem anos, é sobretudo uma maneira de filmar que, por ainda contar histórias, vai continuar a roubar às outras artes”.

A visita chegou ao fim, a multidão dispersa, dividindo-se em pequenos grupos. Restam poucos minutos para uma provocação final. O que pode dizer esta exposição aos puristas da arte contemporânea e do cinema? “Não sei. Sabia que estava fazer uma coisa completamente diferente. Mas o cinema também pode vir a ser uma coisa diferente. Sinto-me confortável. Tem a ver com o que eu gosto na vida. Mas não sou um pós-modernista, gosto de trabalhar com a matéria das coisas”. Com os olhos no céu, João Botelho, aqui na terra.

 

 

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