Qual a nossa relação com as árvores com flores?

É perigoso esquecer as nossas origens, mesmo as mais remotas, porque elas encerram o segredo da nossa condição e do nosso futuro.

No que respeita ao passado, sabemos cada vez com mais detalhe como evoluíram as espécies de acordo com a teoria da evolução de Darwin. Sabemos como surgiu o Homo sapiens na árvore filogenética dos primatas e como se tornou na única espécie do género Homo presente no planeta, após a extinção do Homo neanderthalensis, há cerca de 30.000 anos. É uma história verdadeiramente fascinante que contém muita informação necessária para compreender quem somos, quais as nossas qualidades e limitações como espécie biológica e para ajudar a desvendar o nosso futuro.

Irei apenas abordar uma pequena parcela do nosso percurso evolutivo que mostra bem como estivemos intimamente integrados na biosfera que agora dominamos, transformamos ou destruímos, deixando apenas preciosas relíquias dispersas através do mundo a que chamamos “áreas protegidas”.

Devemos às árvores com flores alguns dos passos mais decisivos no percurso evolutivo que conduziu ao aparecimento dos hominídeos. Durante o período geológico do Devónico, que ocorreu entre 416 e 359 milhões de anos atrás, as plantas vasculares começam a diversificar-se e aparecem as primeiras árvores e florestas. No final do período surgiram as primeiras plantas com sementes, uma inovação revolucionária por permitir a rápida expansão do território da espécie.

Devido à invenção das sementes, as florestas de coníferas espalharam-se pelo mundo e começaram a dominar a flora terrestre até atingirem o seu apogeu no final do Jurássico (que ocorreu entre 201 a 145 milhões de anos atrás).

É nesta altura, há cerca de 160 milhões de anos, que a evolução das plantas conduziu a mais uma inovação notável que iria ter consequências profundas no reino vegetal e animal: o aparecimento nas regiões tropicais de plantas com flores e frutos, chamadas “angiospérmicas”, do grego angeion, para receptáculo ou vaso, e sperma para semente. Nestas plantas os óvulos que contêm as células femininas, e depois se transformam nas sementes após fecundação, estão envolvidos e protegidos por um ovário que se transforma num fruto. Frequentes vezes o fruto é comestível, pelo que os animais passaram a ser também agentes da disseminação e colonização, tal como o vento e a água.

A ideia importante foi proteger as células femininas, tal como aconteceu em outros episódios da evolução das espécies. As angiospérmicas disseminaram-se rapidamente por todos os continentes durante o Cretácico inferior, acabando por superar as florestas de coníferas e dominar a flora global, pelo que constituíram um grande sucesso evolutivo.

As suas flores têm ainda a vantagem crucial de permitirem que os animais participem e favoreçam o processo reprodutivo, que é o objectivo central da evolução darwiniana. A polinização das flores pode ser feita por uma grande variedade de animais, incluindo insectos, aves e morcegos, o que permite a transferência de genes entre plantas isoladas da mesma espécie nas quais a polinização pelo vento seria muito improvável ou mesmo impossível.

Devido a esta interacção, as plantas e os seus animais polinizadores passaram a co-evoluir. A co-evolução é a evolução simultânea de duas espécies em que a mudança genética numa delas é desencadeada por uma mudança genética na outra.

Em conclusão, as angiospérmicas permitiram o surgimento de uma magnífica biodiversidade e constituem actualmente a base estrutural e energética da grande maioria dos ecossistemas terrestres. Conhecem-se cerca de 400.000 espécies de angiospérmicas, o que representa aproximadamente 80% do total do número de espécies de plantas.  

Qual a relação entre o sucesso das plantas com flores e os primatas? A resposta é terem surgido no Cretácico durante a época de expansão e diversificação das árvores com flores. A análise do registo fóssil leva-nos a concluir que o mais antigo antepassado comum dos primatas era um animal relativamente pequeno, arborícola e com três características principais. Tinha mãos e pés adaptados à vida nas árvores com unhas em lugar de garras; tinha uma visão frontal espectroscópica em que os olhos estão aproximadamente no mesmo plano e um grau de encefalização (razão entre a massa do cérebro e a do corpo do animal) elevado relativamente às outras famílias de animais.

É muito provável que estas características tenham resultado da adaptação ao aumento de diversidade das florestas de angiospérmicas no Cretácico superior. A visão frontal facilitou a localização e o consumo de pequenos elementos vegetais, especialmente os frutos que nessa época se tornavam mais abundantes e diversos. Possivelmente o impulso para a encefalização resultou da selecção natural provocada pela adaptação a um habitat florestal de complexidade crescente. Foi necessário dominar a estrutura tridimensional da floresta e saber procurar e recordar a localização das árvores com frutos comestíveis.

A vida arborícola desenvolveu membros inferiores mais longos e robustos, um pé preênsil para facilitar a sustentação do corpo, enquanto os membros anteriores buscavam a fruta e os insectos. Enquanto os braços e os ombros desenvolviam maior flexibilidade, as mãos adaptaram-se para os apanhar, segurar e examinar. Levar comida à boca com a mão, após uma cuidada inspecção, é uma característica específica dos primatas.

O ramo dos primatas que conduziu ao género Homo separou-se do ramo dos orangotangos há cerca de 14 milhões de anos e do ramo dos gorilas há cerca de 9 milhões de anos. Finalmente há cerca de 6 a 7 milhões de anos deu-se uma nova bifurcação: um ramo conduziu aos chimpanzés, os nossos primos mais próximos, e o outro ao Homo e finalmente aos humanos.

A grande questão é saber quais as forças de selecção natural que impulsionaram esta evolução. Saber qual a razão de ser deste ramo dos primatas e qual o nicho ecológico que o abrigou. É um tema fascinante sobre o qual ainda se sabe muito pouco, dada a dificuldade em reconstruir a evolução dos nossos antepassados a partir de fósseis muito raros, dispersos e quase sempre muito incompletos.

É provável que a evolução do género Homo, a partir dos Australopithecus, se tenha dado entre 2 e 3 milhões de anos atrás e tenha sido favorecida por uma mudança climática que tornou o clima do Leste de África mais seco. Grande parte das florestas tropicais foi substituída por savanas. Várias espécies de Homo evoluíram rapidamente para ocupar este novo tipo de habitat.

A grande inovação destas espécies foi conseguir a adaptação aos espaços abertos da savana, deixando progressivamente a vida arborícola onde os seus antepassados iniciaram o caminho para a encefalização. O desafio, porém, agora era muito maior, porque a savana estava repleta de predadores perigosos capazes de correr muito mais do que os primeiros bípedes.

Todos os primatas são animais sociáveis, mas as espécies do género Homo desenvolveram de forma notabilíssima a sociabilidade nos grupos em que viviam, tipicamente com 20 a 100 elementos. A íntima cooperação e protecção entre os elementos do mesmo grupo, num ambiente frequentemente hostil e com recursos escassos, foram acompanhadas por atitudes de forte competição e agressão entre grupos. As pressões de selecção natural provocadas por este processo de complexificação da vida social, irreversível, auto-sustentado e acelerado foram provavelmente as que mais contribuíram para a fortíssima encefalização no género Homo.

É perigoso esquecer as nossas origens, mesmo as mais remotas, porque elas encerram o segredo da nossa condição e do nosso futuro. Não podemos esquecer a relação profunda que temos com a natureza, os animais, as plantas e as florestas, desde o montado à floresta tropical.

Somos uma espécie eminentemente social cujo sucesso resultou em grande parte do desenvolvimento extraordinário da cooperação e do altruísmo. Embora o mundo esteja a dar-nos com frequência exemplos opostos de egoísmo extremo e de extremismos crescentes, não devemos alienar a matriz social cooperativa e altruísta que nos caracteriza.

 

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