Os que escolhem sofrer a vida

Se “a felicidade não é alegre”, a infelicidade também não. Talvez Ciúme só fale disto

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Em Garrel, como saberão os mais atentos, tudo se encadeia. Encadeia-se a vida pessoal e o cinema, quer porque ele vem daquela geração que não sabia distinguir uma coisa da outra quer porque, de forma mais explícita ou mais implícita, a autobiografia é um dos motores essenciais da sua obra. E encadeiam-se, consequentemente, os filmes uns nos noutros, deixando sempre a sensação de que perder um é perder o fio à meada. Se Un Été Brulant (curiosamente o único filme a cores de entre os últimos cinco do cineasta) era porventura o seu filme menos conseguido em muito tempo, tinha pelo menos uma ocasião determinante: era o momento em que Garrel, em cenas de uma gravidade brutal (as melhores do filme), se despedia do pai Maurice, presença intermitente nos seus filmes desde o início (a curta Les Enfants Desacordées, de 1964, que Philippe realizou com apenas 16 anos) e que morreu em 2011.

Ora, se Ciúme não tem aparentemente, nada a ver com Maurice, tem imenso a ver com a paternidade. Garrel disse - mas isso, enfim, é matéria extra-filme - que Ciúme se baseava em episódios da vida do pai, no início da carreira dele, e de facto também estamos entre (jovens) actores neste filme. Mas pode-se não saber dessa inspiração e o tema da paternidade continua a saltar por todos os lados. É o protagonista - Louis Garrel, filho de Philippe e neto de Maurice - e a sua filha pequena; é a cena em que a filha diz que a pessoa que o pai mais ama é “son papa a lui”, o pai dele; é a actriz que lhe vem falar da admiração pelo pai dele; são, ainda, os dois velhos do filme, dois “mentores” visitados pour Louis (a personagem tem o mesmo nome do actor) que dizem coisas que parecem significativas - que ele “compreende melhor as personagens de ficção do que as pessoas que o rodeiam”, assim levantando o tema da confusão entre “vida” e “representação da vida”; e que “o que é bom na vida é que ninguém é obrigado a sofrê-la”.

Frase, esta última, que muito evidentemente levanta a questão do suicídio, grande fantasma garreliano – fora de resto assim que o deixáramos, com o suicídio de Louis no final de A Fronteira da Alvorada. Numa cena admiravalmente filmada – as mãos de Louis e o revólver, depois o tiro fora de campo – “Ciúme” não deixa de passar pelo suicídio, ainda que (spoiler...) enquanto tentação falhada. Espécie de anti-climax, se quisermos, que faz todo o sentido porque “Ciúme” é muito mais um filme sobre a continuação (da vida e das coisas da vida) do que sobre a sua interrupção, é um filme sobre gente que escolheu “sofrer a vida”. E talvez até com um pouco mais do que apenas “sofrimento”, a julgar pela estranha paz dos planos finais, ainda que eles pareçam, não menos estranhamente, assombrados (há sempre sombras em Garrel, são as sombras do “chiaroscuro” do cinema mudo, e é através delas que mesmo a “paz” ou a “felicidade”, quando existem, existem sob ameaça).

Chegamos aqui e ainda nada dissemos que tenha remotamente a ver com “ciúmes”. Vale que o filme, de certa forma, também não tem – “jalousie”, em francês, também pode signficar “inveja”, e talvez seja até o próprio Garrel, mais do que todos, quem inveje, quem inveje ciumentamente (o título português não deixa de soar justo) alguma coisas nas personagens. Quando a questão é verbalizada (Louis a perguntar à namorada, que é Anna Mouglalis, “se eu te traisse preferias que te contasse ou não te contasse?”) a resposta é o mais “anti-ciumento” possível (“só quero que nos amemos e estejamos bem um com o outro”). Mas quem trai, ou enfim, quem trai a sério, é ela, até talvez por motivação mesquinha. A cena dessa traição é admirável na sua construção em elipse, como em elipse fica, no filme todo, o essencial da motivação psicológica das personagens, sobretudo da dela, uma “parede” que ama e se angustia, se zanga e maltrata, e a certa altura se vai embora sem apelo nem agravo. O filme tinha começado com uma separação, dada quase sem palavras - o choro da mãe da filha de Louis - e para uma separação se encaminha, enquanto retrato de uma relação tumultuosa, cheia de altos e baixos e enigmas que ficam por resolver. Talvez mais uma manifestação de outro fantasma garreliano, a sua relação com Nico nos anos 70, que ele incessantemente evoca deste então. Como evocava em A Fronteira da Alvorada, na sua estrutura “bipartida”, onde a uma primeira parte tumultuosa (cujo modelo era, à evidência, Nico) se seguia a entrada numa vida banalmente familiar (que o protagonista, de resto, não aguentava). Misturando as coisas, esses são ainda os termos de “Ciúme”, que em narração alternada vai dando a violência – em todos os sentidos, bons e maus – da relação entre Louis e a namorada, e a placidez (os passeios, e sobretudo as cenas dos jantares a três) das reuniões temporárias em casa da mãe da filha. Imaginamos, talvez mal, Ciúme como uma continuação da “Fronteira”, num mundo “alternativo” em que o protagonista tivesse resolvido “sofrer” a banalidade da vida. Imaginamos, talvez ainda mal, que “Ciúme” é o A Mãe e a Puta de Garrel, a sua aproximação ao “fantasma” do suicida Jean Eustache. Não precisamos de imaginar, porque a vemos, a desolada beleza de Ciúme (incluindo a desolada beleza do preto e branco de Willy Kurant), a complexidade, construida com pequenos nadas, das suas personagens, o irresolúvel mistério da sua tristeza: se “a felicidade não é alegre”, a infelicidade também não. Talvez Ciúme só fale disto.

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