O convívio com a morte na baía do Tungue
Em Março 1916, logo após a declaração de guerra da Alemanha, as tropas portuguesas viajam para Palma, a uns escassos 20 km da fronteira do Rovuma. A reconquista de Quionga prenunciava uma campanha brilhante. Mas depois vieram os desastres. O de Namaca e o da própria Palma, onde hoje um cemitério de soldados transformado em lixeira serve de testemunho de uma expedição dizimada pelas doenças, pela fome e sede, pelas balas alemãs, pela vaidade e pela incompetência.
Naquele cenário de abandono, ingratidão e sujidade, a lápide que atesta a “saudade eterna” da sua mulher Emília parece um acto premeditado de resistência da memória de Palma. A pequena localidade que, entre Abril de 1916 e Junho de 1917, foi o epicentro das operações do exército português no Norte de Moçambique foi apagando ao longo dos anos todos os sinais que registou Primeira Guerra. Hoje resta esse cemitério transformado em lixeira e pasto de cabras e galinhas, rodeado de palhotas, a dez metros de uma praia de coqueiros, no qual apenas a sepultura do tenente miliciano que nasceu em Soure continua em pé.
Martins Ibrahimo Musse lembra-se do tempo em que o cemitério estava cercado de um muro alto regularmente caiado e tem ainda bem presente na memória os dias em que alguém lhe arrancou o portão de ferro e abriu o seu interior aos despojos e aos animais. Da sua casa, mesmo em frente à entrada do cemitério, viu a mobilização de homens e de máquinas que em 1972, de acordo com a sua memória, removeram os restos mortais dos soldados da Primeira Guerra e os transportaram para lugar incerto. “Só ficaram as duas filas da frente”, diz Martins. Desde então que este ex-combatente do exército colonial vitimado por uma mina que rebentou em Nangade, em 1972, e o remeteu para uma cadeira de rodas partilha com o cemitério e com os restos mortais de Francisco Luiz D’ Abreu Amorim Pessoa um mesmo e triste destino: o do esquecimento absoluto por parte do Estado português.
Pouco mais de meio ano antes de morrer no Rovuma, o tenente do 3º Batalhão de Infantaria 21, baseado em Penamacor, ouviu o discurso do presidente da Câmara local que avisava os soldados do “pesado sacrifício” que iriam cumprir na sua missão. Três dias depois, no dia 7 de Outubro de 1915, Francisco Pessoa embarca para Moçambique. Fazia parte da segunda expedição, comandada pelo major Moura Mendes, com 1670 soldados europeus. Um mês mais tarde, a 7 de Novembro, as tropas desembarcam em Porto Amélia, actual Pemba, e por lá ficam até Portugal e Alemanha entrarem formalmente em guerra, a 9 de Março de 1916. Nesse mês, um destacamento comandado pelo major Portugal da Silveira embarca nos vapores Luabo e Zambeze e dirige-se para Palma, uns 250 quilómetros a Norte, já a curta distância da fronteira com a actual Tanzânia, na época território colonial alemão. Os dias de preparação e da logística estavam a acabar.
Palma, no coração da baía de Tungue, é ainda hoje um bom exemplo dos postais de praias paradisíacas. A plataforma continental entra vagarosamente pelo mar dentro e na maré vaza é possível entrar e caminhar pela água quente do Índico até longas distâncias da praia. Ao longe, nas coroas da baía, extensos areais brilhantes servem de cenário a palmares que se recortam entre o azul-turquesa do mar. Conquistada em Fevereiro de 1887 pelo coronel Palma Velho ao sultão de Zanzibar, ainda hoje, e ao contrário da maioria dos topónimos de origem portuguesa, conserva o nome do herói colonial. Quando a segunda expedição lá chegou era uma pequena aldeia de pescadores que viviam nos terrenos arenosos, debaixo de coqueiros, onde ainda hoje resistem as ruínas do cemitério militar.
As primeiras ofensivas
A primeira missão dos homens de Moura Mendes era resgatar para a soberania nacional o triângulo de Quionga, uma área de 450 quilómetros quadrados de machambas pobres e palmares junto à embocadura do Rovuma. Os alemães haviam ocupado esse território sem aviso prévio nem explicações em 1894, e para o Governo da República a sua recuperação era a primeira de todas as prioridades. As tropas de Moura Mendes tiveram por isso menos de um mês para se instalarem em Palma e para prepararem a ofensiva. No dia 10 de Abril de 1916, às quatro e meia da madrugada, um destacamento com três homens a cavalo e 350 a pé deixa a baía do Tungue e faz-se ao caminho para vencer os cerca de 25 quilómetros de um planalto sobranceiro ao mar até Quionga, Às onze e meia, a bandeira portuguesa era hasteada na pequena localidade.
Quionga caíra sem um tiro – um “pequeno cãozito foi a única resistência” que as tropas nacionais encontraram, como mais tarde recordaria o capitão Júlio Rodrigues da Silva, citado no livro de Ricardo Marques, Os Fantasmas do Rovuma. Mas em Lisboa a primeira façanha do exército no palco de Moçambique foi exaltada com a mesma solenidade dos feitos militares de Mouzinho de Albuquerque ou das aventuras exploradoras de Serpa Pinto. Portugal daria aos “heróis de Quionga” o nome de ruas, o parlamento enviou felicitações, emitiu-se um selo comemorativo e logo a 11 de Abril o jornal A Capital exultava: “Para as afrontas que da imperial nação de bandidos recebemos, soou finalmente a hora do desagravo. Há uma justiça imanente que se manifesta, tardiamente embora, perante a qual têm de curvar-se os altivos exércitos do kaiser e são inúteis as suas tremendas máquinas de guerra”.
Quionga, hoje como há um século, é uma aldeia remota, pobre e pacata. O médico militar Américo Pires de Lima visitou-a um ano depois da reconquista. Saiu de madrugada de Palma, num camião Kelly. “A certa altura a paisagem mudou de repente. Para lá de uma trincheira aberta no solo, o aspecto era totalmente diverso. Em lugar do matagal virgem e bravio, era um terreno cultivado, como se tratasse de um jardim. Um pouco para o lado do mar, não se via, mas informaram-me, era uma plantação de 500 mil coqueiros”. Para ele, Quionga era “um mimo, comparada com Palma”. Apreciou as “casas confortáveis, com largas varandas coloniais”, a ladearem “a rua principal, bem arborizada”. Sublinhou a existência de “uma casa de dois andares, de alvenaria”, que “dava uma nota europeia se não estivesse coberta de folgas de palmeira”. A casa ainda existe, em ruínas. A avenida larga conserva as suas árvores enormes. No centro, ainda se podem ver os vestígios de um monumento aos combatentes de Quionga, do qual resta apenas o esboço de uma cruz de Cristo na sua base.
As trincheiras entre a selva
A facilidade com que Quionga regressou à soberania nacional entusiasmou o comando militar e ainda mais os responsáveis da República em Lisboa. Recomposto o mapa da colónia, estava na hora de o ampliar com conquistas. Do outro lado do rio Rovuma estava o que restava do império colonial alemão, que nessa altura tinha já cedido aos franceses e aos britânicos os seus domínios no Sudoeste Africano e nos Camarões. No mês seguinte, colunas portuguesas partem de Quionga e seguem as margens do Rovuma à procura de pontos de travessia. Uns 15 quilómetros a montante, em Namoto, onde hoje existe um dos dois postos fronteiriços entre Moçambique e a Tanzânia, descobrem um pequeno planalto sobranceiro ao rio onde se constroem fortificações.
Nos anos que se seguiram, o pequeno forte foi sendo sucessivamente ocupado e perdido entre portugueses e alemães. Assani Abdel Remani Kimombo, o chefe da aldeia de Namoto, que diz ter “talvez mais de 90 anos”, leva-nos ao que resta de umas trincheiras mesmo por detrás do posto alfandegário. “Era aqui o quartel dos alemães”, diz, embora o tenha sido, pelo menos originalmente, dos portugueses. Ao seu lado, o chefe de Quionga, Sahid Momad Agostinho, que nos acompanhou até Namoto, aponta os limites das fortificações e garante que, “há muitos anos os muros de terra eram mais altos”. Ainda assim é possível distinguir entre o mato o fosso do fortim e os muros de protecção onde os soldados se albergavam do fogo inimigo.
Namoto, onde se chega depois de 40 quilómetros de terra batida desde Palma, é um lugar cheio de memórias da Grande Guerra. Assani Abdel Remani Kimombo ou Sahid Momad Agostinho, cujo pai trabalhou para os alemães, são capazes ainda hoje de as identificar. Com erros e lacunas, próprios do desgaste a que a tradição oral sujeita os factos, mas com conhecimento do essencial. Numa caminhada de dois quilómetros por um trilho ameaçado pelo avanço da selva, onde elefantes, leões e várias espécies de macacos vivem livremente, foi possível encontrar um sepulcro atribuído a um oficial alemão. Abdel Carlos John, que fala razoavelmente português e vive há anos em Namoto, levou lá há dois anos uma alemã que andara à procura de um seu antepassado. O pináculo da sepultura foi derrubado por um elefante, diz Abdel. Não há nenhum relato nem nenhuma inscrição capaz de justificar a estranha aparição daquele túmulo no meio da selva.
Na zona circundante de Namoto, as tropas portuguesas foram fixando posições, sempre ao longo do rio, até uma distância de 50 quilómetros da foz. Hoje é difícil saber onde fica Namaca ou Namiranga ou Nachinamoca. Nhica, o outro ponto da rede, permanece na toponímia. Não há dúvidas porém que, nesta linha defensiva, Namoto seria o ponto mais importante. Por isso é alvo de um primeiro ataque por parte dos alemães logo a 23 de Abril de 1916, domingo de Páscoa, levando à debandada dos oficiais e dos soldados indígenas que o ocupavam. A ousadia alemã suscita receios. Ao contrário da pressa habitual, de Lisboa chegam telegramas recomendando prudência. Era melhor esperar pelas tropas da nova Expedição, que se preparava na metrópole, ou pela vinda da infantaria montada da Guarda Republicana de Lourenço Marques antes de assumir riscos com novas ofensivas.
Os conselhos, porém, não produziram efeito. Nada parecia capaz de travar o plano de travessia do Rovuma, que por esta altura do ano apresenta um baixo caudal e deixa a enorme extensão do seu leito de cheia entregue à areia ou a ilhotas onde crocodilos e hipopótamos se recolhem. No final do mês, estava já determinado que a passagem para a margem Norte do Rovuma se faria em duas colunas, separadas por uma distância de 1500 metros, que partiriam em simultâneo de Namaca e Namiranga. Para que não faltasse solenidade ao acto, o Governador de Moçambique, o influente Álvaro de Castro que em público gostava de se apresentar como pessoa de um “acrisolado amor pela República”, chegara a Quionga a 20 de Maio a bordo do Moçâmedes.
Um dia depois, começam as hostilidades. O cruzador Adamastor e a canhoeira Chaimite subiram o rio, em reconhecimento, e impuseram a sua presença com uma operação de bombardeamento. Duas lanchas aportam na margem alemã, junto a um posto designado Fábrica, e incendeiam palhotas e paliçadas. A 23 a ousadia repete-se, mas, desta vez, a resposta alemã é enérgica. Morrem três soldados portugueses e seis ficam feridos. A 24, tropas desembarcam na ilhota de Namaca, a 150 metros da outra margem e preparam-se para o assalto. Mas ao contrário das mais elementares recomendações de prudência, em vez do silêncio furtivo que antecipa as operações militares, durante essa noite os soldados transformam a ilhota num arraial: “Os pretos acendiam fogueiras e os brancos gritavam, produzindo-se o rumor característico dos grandes ajuntamentos”, recordaria o capitão Júlio Rodrigues da Silva. A 26, um novo bombardeamento naval encontra como resposta o silêncio da outra margem. Chegara a hora da invasão.
Álvaro de Castro está na balaustrada do Adamastor nesse dia 27 de Maio de 1916. Às nove da manhã começa a assistir ao desastre. Pelotões dos regimentos 20 e do 21 lançam-se para a outra margem em pequenos botes. “Quando estavam talvez a cem metros da margem esquerda rompe sobre eles um verdadeiro dilúvio de balas enviadas pelas metralhadoras que os alemães possuem”, nota a memória de António Eduardo Silva, citado por Ricardo Marques. Américo Pires de Lima, que não viveu a tragédia em directo, corrobora a falta de prudência, o aventureirismo e o desprezo dos comandos pela vida dos soldados. “Os nossos, no meio do rio, completamente a descoberto e sem defesa, foram literalmente trucidados e, em poucos minutos, daquela tropa confiante só restavam montões de cadáveres nos barcos que derivavam pelo rio abaixo, ao sabor da corrente”, recorda.
Às 15h30, o combate estava acabado. Os alemães não tiveram baixas. Do lado português contaram-se três mortes de oficiais e de 30 praças. Quatro oficiais e 24 praças ficaram feridos. Seis soldados acabaram prisioneiros ao tentarem a salvação na outra margem. O corpo de Francisco Luiz D’ Abreu Amorim Pessoa seria transportado para Palma, onde foi sepultado e onde ainda hoje se encontra. Outros foram enterrados em Quionga ou no cemitério que ainda hoje persiste no planalto de Namoto. Em tempos, havia neste local, a um quilómetro do centro da pequena aldeia de Namoto, uma machamba da família do mzê (ancião, em suaíli) Assani Abdel Remani Kimombo. Hoje a selva tomou conta do cemitério.
Chega-se lá com dificuldade. À frente, Abdel Carlos John tem de desbravar o caminho com uma catana. A experiência ajuda a perceber a dureza da vida dos soldados naquele local distante. A cada passo há que evitar as micaias, uma planta com espinhos infecciosos, o feijão macaco, que causa uma urticária irritante, e principalmente os tapetes de formigas que pintam de preto vários metros do trilho. Por muito que se corra é impossível evitar que se colem aos sapatos e subam pelas pernas, assinalando o seu trajecto com dolorosas mordeduras. Por fim, algures entre um trilho recente de elefantes, um singelo monumento indica o lugar onde um número indeterminado de soldados que pereceram na tentativa de travessia ou nos combates posteriores foi sepultado. Uma placa informa que “as ossadas dos combatentes da Guerra de 1914-1918 que aqui se encontravam foram removidas em 1956 para o ossário de Mocímboa da Praia inaugurado a quando da visita de S. Ex.ª o Presidente da República General Craveiro Lopes”. Sob o zumbido dos insectos, com a vista do enorme leito do Rovuma pela frente, o lugar impressiona pela sua dramática beleza.
Depois dessa data fatídica de 27 de Maio, restava à segunda expedição e ao seu comandante, o major Moura Mendes, esperar pelo final da comissão de serviço. Os danos causados pela derrota de Namaca foram devastadores. Nos dias que se seguiram à derrota, Quionga recebeu os “espectros” vindos da margem do rio. “Os que não ficavam para sempre no caminho, chegavam num estado lastimoso: faces macilentas e encovadas, olhos brilhantes de febre, expressão parada de imbecilidade, barba e cabelo crescidos, maltratados, capacetes amarrotados e sujos, fatos desabotoados, nojentas botas desatacadas, com as calças metidas dentro, arrimados a um bordão, quase famintos, pedintes desprezíveis, abandonados, assim eles entravam em Quionga”, recordaria o capitão Júlio Rodrigues da Silva.
Reforços a caminho
Por essa altura estavam já a caminho as primeiras tropas da maior expedição enviada de Portugal para África até então. Os soldados, o equipamento e 750 equídeos começaram a embarcar a 28 de Maio (um dia depois da derrota de Namaca) no vapor Portugal. A 5 de Junho larga de Lisboa o Moçambique, o maior navio a navegar sob o pavilhão português, que transportava 1500 soldados. Seguem-se o Zaire e, a 8 de Julho, o Amarante. A expedição era comandada pelo general Ferreira Gil, depois de o Governo da República ter anulado a nomeação de Garcia Rosado, ex-governador geral de Moçambique e militar experimentado nas campanhas africanas. Dispunha, inicialmente, de uma força composta por 159 oficiais e 4483 praças. Mais tarde chegariam no vapor Beira mais 432 praças e 8 sargentos que se haviam insubordinado em Mafra contra os alegados privilégios no recrutamento dos filhos de famílias ricas e aos estudantes de Coimbra. A sua pena seria cumprida nas praias do Índico.
Carlos Selvagem, pseudónimo literário de Carlos Tavares de Andrade Afonso dos Santos, e Américo Pires de Lima foram dois dos militares que integraram a expedição. Viajaram durante um mês desde Lisboa até Lourenço Marques, de onde rumaram a Palma numa viagem de mais quatro dias. Quando chegaram esperava-os o mesmo caos e desorganização que tinham presenciado no momento do embarque, em Lisboa. A bordo do navio, Carlos Selvagem notava no seu caderno de campanha o primeiro vislumbre do local onde passaria três meses. “Lá longe, aquela humilde aparência de povoado, afogada sombriamente em arredondadas máscaras de arvoredo, dizem-nos que é Palma”. Américo Pires de Lima parecia ter esquecido a sua formação científica e assustava-se com profecias. Tungue, que dava o nome à baía de Palma, era um nome agourento, “ensombrado com a alcunha sinistra de cemitério de brancos” que enchia os soldados de “maus presságios”.
A vista da baía, com as suas areias brancas, com o povoado ao fundo, seria durante dias e dias a única ligação possível com a terra firme para muitos soldados. A inexistência de um porto e a falta de condições mínimas para acolher os recém-chegados obrigaram-nos a permanecer no barco e esperar pelas marés. Os que tinham mesmo de chegar a terra fizeram-no em condições “grotescas”. Aos ombros de negros que os iam buscar no ponto onde as pequenas embarcações encalhavam. “Saltamos-lhes, um pouco intrigados, sobre os maciços ombros; passamos-lhes fortemente as pernas por diante do peito; e é de ver a nossa pícara cavalgada dentro de água”, recordaria Carlos Selvagem. Foram precisas semanas a fio para que os navios pudessem desembarcar os homens, os 150 camiões Kelly, as armas, as munições ou os víveres.
“E vemo-nos de repente numa larga rua de areia – única rua de Palma – que corre ao longo da praia, toda revolvida por fundos sulcos de rodas, entre as suas filas de moradas humildes, sob os vagos novelos de sombra dos coqueiros altos e outras árvores dos trópicos”, recordaria Carlos Selvagem, numa primeira impressão pouco positiva de povoação: “Uma escura aldeia indígena, miserável, primitiva, que se espalha ao acaso, por aqui, por além, na sombra das árvores copadas, em grupos de oito a dez palhotas, mais ignóbeis que fojos de feras”. Américo Pires de Lima indignou-se com a sua primeira experiência de desumanidade da guerra, quando viu, na praia, no meio de um bosque de mangal, “alguns cadáveres de negros esqueléticos. Enxames de moscas banqueteavam-se naquela carnagem a ponto de alguns cadáveres nus, de costas no areal, olharem para o infinito azul com o olhar profundo e vago das órbitas vazias”.
Era o princípio de uma experiência traumática, da qual nem todos sobreviveriam. O médico notou que “os recém-vindos miravam com quase infantil curiosidade os veteranos do sertão, muitos dos quais se apresentavam macilentos e hirsutos. Olhavam-nos como se, num espelho mágico, vissem a própria imagem do que viriam a ser alguns meses passados”. Não se enganou. Por essa altura já Carlos Selvagem adivinhava o que estava a acontecer à terceira expedição. Escreveu: “A avaliar pela rapidez com que os homens vão tombando, uns após outros, como estorninhos, tiritando de febres ou desfeitos em disenteria, é de crer que, ao levantarmos os bivaques para iniciarmos, enfim, a nossa grande ofensiva, já não haja um soldado capaz de afrontar galhardamente outros mais negros, porventura mais trágicos dias”.
A espera na baía do Tungue
O relato da terceira expedição em Palma é feito de tédio, de sofrimento com o calor e a humidade que até “a própria alma abolorecia”, de horror aos mosquitos, às formigas ou aos leões que a cada passo entravam nos acampamentos. O grosso das tropas ficaria instalado já no planalto, longe das palhotas à beira da praia, do cemitério e do quartel-general. Em princípio era um lugar mais arejado e saudável. Carlos Selvagem foi o oficial que se encarregou de desbravar um terreno, queixando-se da indolência dos negros ou da resistência da selva, onde “cada palmo de terreno limpo absorve-nos horas sem fim”. Depois foi esperar que que as feridas abertas em Namaca sarassem e os soldados fossem de novo enviados ao acaso para a frente de batalha.
Foram três meses de tédio e de dificuldades. De manhã, “as abluções fazem-se em água negra, de uma espessa cor de café puro, que prodigamente o moleque nos traz no fundo de um balde de lona ou de uma velha lata de gasolina. Quem deseja lavar os dentes serve-se regiamente das águas minerais da Curia ou Vidago, das dotações semanais. Os outros – sargentos e praças -, sem águas minerais, sem forte necessidade de dentes lavados, abstêm-se, em regra, deste luxo”, conta Carlos Selvagem. Para obstar ao calor, o quartel-general ordenou um período de descanso entre as dez e as três da tarde. “A malta do batalhão descia para a planície logo depois do café e por lá andava a esturrar-se ao sol e a envenenar-se na água dos charcos, a que a sede levava, até horas da primeira refeição”, recordaria António de Cértima no seu livro Epopeia Maldita, de 1924.
A necessidade de adaptação ao novo ecossistema social exige compromissos. O ódio aos monhés (moçambicanos de origem indiana) é generalizado. Os negros merecem ora condescendência, ora desprezo, ora admiração. Principalmente as mulheres, com as suas “peles de ébano macias e tenras, a linha fugitiva das espáduas graciosamente descaindo sobre o polido contorno dos quadris, muito esbeltas, bem lançadas, a garganta delgada, o colo alto”, na descrição de Carlos Selvagem que, contudo, lhes deplorava a “odiosa carapinha e hediondo focinho”. Muitos soldados envolveram-se em concubinatos assumidos, os incidentes com o roubo das mulheres tornaram-se um problema que escapou aos registos das campanhas.
A guerra tornara-se um lugar distante. Principalmente depois de começarem as chegar notícias provenientes de fontes inglesas que davam os alemães como acabados. As tropas entediam-se, esvanecem-se em febres ou no torpor do calor húmido dos trópicos. “Todas as difíceis ideias de Pátria, Honra e Dever parecem dissolver-se, perder a cor e o sentido, no ambiente mole e sujo destas areias, na atmosfera moral desta desmoralizada tropa, à torreira deste implacável sol africano”, queixava-se Carlos Selvagem. O pior, porém, estava para vir. Lá para Setembro chegaria a hora de partir para uma nova tentativa de invasão da África Oriental Alemã. Só então a terceira expedição conheceria os verdadeiros horrores da guerra e se transformaria numa multidão de indigentes, errando pelos areais de Palma ou pelos trilhos da selva apoiados em bengalas improvisadas. Era a “expedição do pauzinho”.