Morreu Harun Farocki, o cineasta que escrevia diante das imagens

O realizador alemão faleceu com 70 anos, mas o seu cinema nunca foi tão urgente, tão necessário. Vê-lo hoje é rejeitar as imagens que fazem a guerra, sem abdicar de pensar sobre o mundo que elas constroem.

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Harun Farocki fotografado no Museu Ludwig em Colónia, em 2009. Markus J. Feger

Próximo, em termos geracionais, de Werner Herzog, Wim Wenders e Rainer Werner Fassbinder, Farocki tinha motivações que o distanciavam dos dos seus pares. “Ele desejava sobretudo interrogar as imagens, até ao máximo”, diz Jürgen Bock, director da Escola Maumaus e da Galeria Lumiar Cité. “Mas criando sempre as circunstâncias para o espectador pensar, para tirar as suas próprias conclusões. Nunca insistiu numa verdade, nem na verdade do documentário que, para ele, era também uma manipulação, uma construção”. 

As convulsões sociais e políticas dos finais da década de 1960 marcariam para sempre o entendimento do cinema por Harun Farocki. Testemunha das revoltas estudantis e do espectáculo da guerra do Vietname na televisão, o cineasta assumiu uma posição militante, criticando a fábrica de Hollywood e a indústria cultural (a tal posição não foram alheias leituras profundas de obras da teoria crítica alemã ou de Hannah Arendt).

“Defendia que narcotizavam as pessoas, com a velocidade, com a identificação com as personagens, fazendo com que o espectador se esquecesse de si próprio”, acrescenta Bock. As afinidades revelar-se-iam com Alexander Kluge, Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (com quem viria a colaborar em 1983), ou Andrei Ujica (com quem viria a realizar, em 1992, Videograms of a Revolution).

“Ele era um grande conhecedor de cinema”, sublinha o (também) curador. “Foi editor da Filmcritik, uma importante revista de cinema, que distribuiu nos bares de Berlim. Posicionou-se sempre diante das imagens para as questionar, mas não é justo dizer que não amava o cinema. Leia-se a conversa que ele tem com a [ensaísta americana] Kaja Silverman sobre o cinema do Godard [no livro Speaking about Godard, de 1999]. Há uma análise crítica, fria, mas também uma parte emocional, poética. Ele conciliava as duas, devolvendo ao espectador uma autonomia diante das imagens”.

Preocupação com o mundo e com as pessoas

Da filmografia de Farocki, Jürgen Bock destaca a obra Interface (1995). “É um filme sobre a sua maneira de trabalhar, examinando imagens preexistentes, com aspectos muito poéticos e conduzido por associações. Ele não conseguia escrever sem ter as imagens à sua frente, percebia muito bem o conceito de ideia de montagem. Era, por isso, muito crítico dos documentários televisivos. Dizia que ficavam à superfície das imagens. Não era isso o que [Farocki] procurava. Ele queria vê-las por dentro, o que elas escondiam, o que estava por detrás. A imagem não era, para ele, uma coisa dada”.

Between Two Wars (1978) é outro filme que o curador realça. “É um filme lento, muito bonito, onde se percebe a influência de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. E que hoje é muito actual, pois o pano de fundo das conversas entre as personagens é a convergência das grandes empresas alemãs durante os anos 20 e a autofagia do capitalismo. Há um lado militante e um olhar sensível, atento, que não nos diz como devemos pensar. Ele preocupava-se, de facto, com o mundo e com as pessoas”.

Em Portugal, Harun Farocki foi, desde 2000, um cúmplice e um companheiro de Jürgen Bock. Participou no ciclo Project Room, concebido nesse ano pelo curador para o Centro Cultural de Belém. Três anos depois, a sua obra foi objecto de uma retrospectiva no Festival Vídeo Lisboa, comissariada por Bock, e nos seguintes voltariam a colaborar em exposições e seminários no âmbito da actividade da Escola Maumaus, das programações da Lumiar Cité (2011 e 2013) e do DocLisboa (2011). Que nesse ano apresentou a retrospectiva "Hrun Farocki ou o Cinema como Pensamento Crítico", e a exposição Harun Farocki - Três Duplas Projecções, em colaboração com a Maumaus. Para a edição deste ano do Doc já estava prevista a exibição do último filme de Farocki, Sauerbruch Hutton Architekten, na secção Investigações. Passará a ser a homenagem do festival ao realizador.

Adivinham-se as razões da presença regular do cineasta em museus e centros de arte: o confronto inevitável do white cube com as imagens em movimento, ou a revelação de universos comuns que aproximam autores. Mas o director da Maumaus tem outra explicação. “Muitos dos primeiros filmes do Harun Farocki foram apoiados pela televisão pública alemã. Ora, com a liberalização do espaço televisivo e a preocupação com audiências e receitas, esses apoios desapareceram. E, de alguma forma, os museus vieram ocupar esse vazio, apoiando os projectos que as televisões passaram a ignorar”, nota Bock.

O trabalho do cineasta, na opinião do curador, nunca sofreu com esse trânsito. “Foi sempre muito pragmático em relação aos meios. Usava-os consoante as circunstâncias. Estava consciente das diferenças e, pela sua perspicácia e capacidade analítica, soube fazer as justaposições, as ligações, os diálogos adequados”.

Sobre a influência de Farocki noutros artistas ou cineastas, Jürgen Bock é mais cauteloso. “É uma obra que pode ser muito intimidante. Tem muito conhecimento, muita sensibilidade, é difícil de imitar. Ele combatia a celebração da superficialidade que também vemos na sucessão de catálogos, de exposições, de textos. Não cedia à velocidade. Antes de fazer Inextinguishable Fire [1969], documentou-se sobre os efeitos e a história do napalm. Estudou o que havia para estudar sobre o tema. Só depois fez o filme.

"Inextinguishable fire". Eis uma boa porta de entrada para a obra de Harun Farocki. Quem é o primeiro a entrar e a ver? 

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