Frederick Cooper: “A guerra abalou o mundo dos impérios, mas não o transformou fundamentalmente”
Professor na Universidade de Nova Iorque, Frederick Cooper é um dos mais importantes historiadores da actualidade, centrando a sua investigação em inúmeros tópicos relacionados com a história comparada do colonialismo e do imperialismo. Tem publicado, com impressionante regularidade e elevada qualidade, obras sobre a História de África, sobretudo sobre os fenómenos da escravatura, do trabalho e políticas sociais coloniais, mas também se tem debruçado sobre questões de teoria social de um ponto de vista histórico, reflectindo sobre alguns dos problemas centrais das ciências sociais e humanas da contemporaneidade, por exemplo sobre o conceito de “identidade” e sobre as reflexões teóricas e a as manifestações históricas da “modernidade” e da “globalização”. O seu Decolonization and African Society: The Labor Question in French and British Africa (1996) é um dos livros mais importantes sobre as principais transformações políticas, sociais e económicas do colonialismo tardio.
Mais recentemente, publicou Empires in World History: Power and the Politics of Difference (2010) com Jane Burbank, uma estimulante síntese crítica sobre a constituição e a pluralidade de trajectórias históricas das formações imperiais, a “mais durável forma de organização política na história mundial”, como nos recordam os autores. Baseada na longue durée histórica e mobilizando uma perspectiva comparada, esta obra é uma inegável obra de referência, cuja clareza não pode ser confundida com simplicidade ou superficialidade de análise, cuja sólida fundação empírica não exclui uma refinada reflexão conceptual e analítica, sabiamente ancorada em contextos históricos específicos.
Entre outros aspectos de mérito que a sua obra tem revelado, que aliás emergem igualmente nesta entrevista, salientemos a resistência a narrativas teleológicas e a propostas particularistas; a valorização da dimensão comparativa; a ênfase na diversidade de estratégias e trajectórias de consolidação imperial, ou seja, a multiplicidade de repertórios de dominação colonial e a variedade de mecanismos legais, políticos, económicos e socioculturais mobilizados para estabelecer a desigual distribuição de poder e privilégio no interior das configurações imperiais, como explora, por exemplo, no seu recente Citizenship between Empire and Nation: Remaking France and French Africa, 1945–1960 (2014); e o reconhecimento das várias possibilidades históricas que marcaram a história dinâmica dos impérios, sendo o período da Grande Guerra particularmente ilustrativo a este respeito, como se demonstra nesta entrevista. Uma colecção original de alguns dos seus mais importantes artigos será publicada este ano em Portugal, com o título Histórias dos Impérios. África e a modernidade (Edições 70).
Enquanto conflito global, a Grande Guerra foi travada entre Estados-império, e não entre Estados-nação. Concorda com este argumento?
A Primeira Guerra Mundial foi claramente uma guerra entre impérios. No nosso livro Empires in World History (2010), eu e Jane Burbank argumentámos neste sentido. A guerra emergiu do conflito entre um pequeno número de Estados-império, não entre as inúmeras “nações” que existiam na Europa. De facto, pode colocar-se a guerra na sequência de tentativas de longa duração para se reconstruir algo à escala do império romano, perante projectos imperiais rivais. A linhagem estende-se de Carlos Magno a Carlos V, a Napoleão e, mais tarde, a Hitler.
O maior obstáculo a esse esforço foi a acção de outros impérios, igualmente capazes de mobilizar recursos ao longo de espaços linguísticos ou culturais comuns, dotados de afinidade histórica. Os impérios austro-húngaro, russo e otomano certamente que enfrentaram problemas na viragem para o século XX, mas permaneciam entidades a ter em conta. A sua desintegração foi uma consequência e não uma causa da guerra. As guerras balcânicas dos anos de 1870 e, depois, no início do século XX não criaram tanto uma alternativa “nacional” ao império, como desestabilizaram a relação entre impérios, cada um com recursos diversos e múltiplas alianças.
E o Império alemão?
O Império Alemão era desde 1870 uma nova força na política interimperial, com a incorporação de populações falantes de polaco, dinamarquês e francês, e a aquisição de colónias em África, Ásia e no Pacífico. Talvez tivesse ganhado a guerra de 1914-18 se os seus oponentes não tivessem mobilizado numerosas tropas e outros recursos vindos de uma vasta variedade de conexões imperiais.
Como especialista reconhecido em formações imperiais, como caracteriza o impacto da I Guerra Mundial na história dos impérios? Quais foram os principais efeitos, digamos, da extensão imperial da guerra?
A guerra evidentemente abalou o mundo dos impérios, mas não o transformou fundamentalmente, a não ser que se queira seguir Charles de Gaulle e ver as duas guerras mundiais como uma única “guerra dos trinta anos do século XX”. Essa formulação projecta, em demasia, uma aura de inevitabilidade pelo que aconteceu nos anos 1930 e 1940, mas julgo que há fundamento suficiente para que afirmemos que o resultado da primeira guerra não resolveu o problema fundamental do conflito interimperial.
O Tratado de Paz de 1919 desmantelou os impérios dos vencidos mas não os dos vencedores. De facto, estes foram capazes de juntar outro componente aos seus repertórios de domínio, o território mandatado. A Alemanha continuou presa entre poderes imperiais antagónicos, lesada por não preservar as colónias a que essas potências entenderam ter direito. O modelo de autodeterminação – aplicado apenas à parte “branca” dos impérios – rapidamente provou ser uma desastrosa alternativa ao império, resultando numa vasta “desmistura” de povos, numa brutal mas vã tentativa de fazer o Estado coincidir com a “nação” na Europa, deixando em seu lugar Estados que eram tanto fracos como conflituosos. A reconfiguração do pós-guerra não ofereceu uma solução estável ao fim forçado dos impérios otomano e austro-húngaro.
E no resto das geografias imperiais?
O projecto imperial do Japão reforçou-se por se manter à margem da guerra interimperial, mas o seu problema geopolítico básico manteve-se: precisava de recursos de uma vasta região do sudoeste asiático e da Ásia oriental, mas grande parte dessa região era controlada por outros impérios – francês, holandês, britânico e americano – enquanto o anterior colapso da dinastia Qing deixou uma enorme incerteza no coração da política regional.
O Japão, desde finais do século XIX, participava no jogo imperial numa maneira similar às potências europeias. A grande aposta que fez em 1941 reflectiu a insegurança da sua posição em relação a outros poderes imperiais.
Muitas pessoas nas regiões ultramarinas dos impérios europeus pensaram que a sua contribuição para o esforço de guerra dos vencedores e a anunciada doutrina de autodeterminação deveriam alterar a sua situação. Mas a Grã-Bretanha e a França, em especial, fizeram o seu melhor para colocar os génios da cidadania e da autonomia outra vez em lâmpadas coloniais. Durante algum tempo, foram bem sucedidos, apesar de conflitos violentos no Egipto e noutros locais, e de tentativas de activistas anticoloniais para forjar redes mundiais. As reacções à ratificação do estatuto imperial do Japão nos acordos de paz de 1919 levaram a levantamentos na China e na Coreia, que foram momentos fundacionais nas trajectórias de movimentos políticos locais. Mas antes que estas mobilizações contra os impérios pudessem seriamente ameaçar o poder dos grandes impérios muitos mais rounds de conflitos interimperiais ocorreram.
Talvez um dos fenómenos mais interessantes da guerra tenha sido o encontro das tropas e dos trabalhadores provenientes dos mundos coloniais com o rico universo ideológico europeu, caracterizado por vários idiomas que eram contrários às soluções imperiais ou que exigiam a sua reforma, mais ou menos profunda. Até que ponto poderemos ver este facto como uma causa geral para as ondas de reformismo imperial do pós-guerra e de activa agitação anticolonial do entre-guerras (por exemplo, a rebelião rural Kongo Wara na África Equatorial Francesa (1928-1931)?
A guerra claramente trouxe a frustração de expectativas. A de maior alcance foi na Índia, onde os britânicos quebraram a promessa de dar aos indianos o estatuto de auto-governo em troca da sua imensa contribuição para a guerra. O massacre dos manifestante não-violentos de 1919 foi um momento chave na consolidação do Congresso Nacional Indiano sob liderança de Gandhi.
Mas a estrada foi longa, com várias voltas e reviravoltas e uma nova guerra mundial, até que o mais forte movimento anti-imperial asiático ganhasse a independência, e acabou com a criação de dois estados – Índia e Paquistão – que não era o que o movimento tinha em mente em 1919.
Em África, como a pesquisa histórica tem revelado, uma variedade de movimentos – desde organizações pan-africanas a acções laborais e a revoltas de camponeses – tiveram lugar no período entre-guerras, mas existem poucas evidências de que algum tivesse ameaçado derrubar o poder colonial. Os regimes coloniais fizeram um trabalho efectivo em dividir movimentos oponentes e em cooptar uma parte significativa das elites indígenas, ligando as suas próprias ambições à estrutura do domínio colonial.
Entretanto, o império japonês estendeu-se até à China, na década de 1930. A URSS construiu o seu sistema de repúblicas nacionais numa estrutura que tanto reconhecia a distinção como impunha uma nova ordem. O império fascista estendeu-se até à Etiópia e um regime militar que se havia juntado no Marrocos Espanhol derrotou o governo republicano em Espanha. O movimento nazi inspirou-se num certo sentimento imperial – neste caso associado a um pretenso direito de dominar povos “inferiores” que não era controlado pelas limitações que o domínio de diversas populações impunha aos impérios efectivos.
Neste sentido, até que ponto uma resposta positiva a este anterior conjunto de questões permite, ou de facto exige, a redefinição da cronologia estabelecida do anticolonialismo e da descolonização?
Temos de ser cautelosos em reler a história da independência nacional como um caminho único e inevitável. Existiram projectos de construção imperial depois da I Guerra Mundial e as políticas anti-imperiais tomaram múltiplas formas. E estas nem sequer eram as duas únicas possibilidades. As populações vivendo nos impérios também tentaram seguir outras vias com as oportunidades, embora limitadas, que tinham. A viabilidade futura de diferentes formas de império era uma questão em aberto quando a II Guerra Mundial começou.
De facto, uma das questões potencialmente mais conflituosas no debate sobre a importância histórica da I Guerra Mundial é como avaliar o seu impacto nos projectos imperiais: até que ponto poderemos olhar para a I Guerra Mundial como o início de um processo de declínio imperial inevitável, com a emergência do Estado-nação como a única forma de organização política internacionalmente reconhecida e legitimada? Quais são os limites deste tipo de argumento histórico?
O conceito de Estado-nação apenas se tornou influente após a II Guerra Mundial. Antes disso, a relação entre nação e Estado era bastante questionável. O hífen que foi inserido entre esses dois conceitos pode ser altamente enganador. A realidade do mundo existente nos anos 1930 e 1950 tinha pessoas que viviam em unidades que eram tanto heterogéneas como desiguais. A ficção Estado-nação – um povo, um território, um governo – era uma alternativa.
A URSS, com as suas repúblicas nacionais, apresentava outra, que era atractiva para muitos oponentes das reais estruturas de dominação. Os movimentos “pan” – pan-africano, pan-árabe, pan-eslavo – sugeriam outra: um sentido de nação que não era territorialmente delimitado. E dentro dos grandes impérios, movimentos de reforma propunham a possibilidade de formas de federalismo, mantendo a heterogeneidade enquanto reduziam ou eliminavam a desigualdade. E alguns viam as nações criadas depois da fragmentação de alguns impérios depois de 1918 como modelos negativos – e não positivos. O termo “balcanização” seria usado mais tarde entre os africanos para descrever os perigos da desintegração de unidades maiores e integrativas em unidades pequenas e fracas, arriscando-se a conflitos entre si e subordinando-se a Estados mais poderosos.
O estabelecimento e a avaliação dos “legados” históricos são evidentemente um trabalho arriscado. Uma abordagem cautelosa a estas narrativas parece obrigatória, especialmente no nosso campo. Actualmente, muitos jornalistas e estudiosos desenham numerosos paralelos entre o contexto histórico pré-guerra e os actuais acontecimentos mundiais. Qual é a sua posição sobre isto? Quais são os legados da I Guerra Mundial? Se eles existem, quais são aqueles que ainda hoje são visíveis? Podemos falar de “lições da história” oferecidas pela I Guerra Mundial aos actores políticos contemporâneos?
Melhor que o conceito de “legado” é o de “trajectória”, para examinar os diferentes padrões de mudança, através das suas voltas e reviravoltas. A pior maneira de pensar os efeitos da I Guerra Mundial ou qualquer outro acontecimento é aquilo que chamo de “leapfrogging legacies”, como se se pudesse fazer uma conexão causal entre alguma coisa que ocorreu em 1919 e outra em 2014, saltando por cima dos caminhos alternativos que emergiram no entremeio. Se apenas fazemos história da frente para trás, apenas vemos um percurso que leva ao presente. Mas em qualquer momento no passado a maioria das pessoas dedicaram esforços a definir e a lutar por alternativas. Elas não sabiam como as coisas iriam resultar, e nós perderemos imenso da história se não perguntarmos o que mais preocupava as pessoas em determinado momento: confrontando as contingências, as possibilidades e os constrangimentos com que elas viviam. Precisamos relembrar-nos da importância de pensar sobre as escolhas feitas e as consequências que estas poderiam ter tido.