Aproximação entre eleitos e eleitores adiada há duas décadas
O PS tem tentado, sem êxito, rever a lei eleitoral. Esta bandeira já teve protagonistas como António Vitorino, António Costa e Alberto Martins. Agora, é Seguro a querer relançar o debate.
Anunciada na sequência do desafio de disputa de liderança que lhe foi lançado pelo presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, a iniciativa das primárias foi proposta por Seguro ao mesmo tempo que abriu um debate no partido sobre a reforma do sistema político, com incidência numa reforma do sistema eleitoral. O objectivo é também aqui procurar responder ao desfasamento entre os cidadãos e voltar a trazer ao debate político nacional uma tentativa de reforma que há duas décadas tem sido protagonizada pelo PS.
Seguro não teve disponibilidade para falar ao PÚBLICO sobre esta questão, mas o líder parlamentar do PS, Alberto Martins, explica a este jornal que “Seguro tem dito que devem ser tiradas consequências para o sistema partidário dos resultados eleitorais e da abstenção” e que, consequentemente, é preciso “aproximar os eleitos dos eleitores”. É nesse sentido que Seguro “propõe primárias, para cessar com o domínio do aparelhismo”.
É também com esse propósito que Seguro voltou a lançar a ideia, já por si defendida, a 5 de Outubro de 2012, de que o PS venha a propor alterações à lei eleitoral que passem pela redução do número de deputados à Assembleia da República. O secretário-geral do PS admite que o seu partido aceite a velha exigência do PSD de que o Parlamento baixe para 180 eleitos, número que foi introduzido na Constituição como limite mínimo, por imposição de Marcelo Rebelo de Sousa, quando, como líder do PSD, negociou com o então primeiro-ministro socialista António Guterres, a revisão constitucional de 1997.
Dois modelos
Além da redução do número de deputados, Seguro admitiu perante a comissão nacional que fossem discutidas internamente outras alterações do sistema eleitoral que o PS deveria agora subscrever. E balizou esse debate com os conteúdos das anteriores propostas de sistema eleitoral defendidas pelo PS nos últimos 20 anos.
Ou seja, o PS teria de escolher se optava por dois modelos por si defendidos no passado, ambos de apuramento proporcional, como impõe a Constituição e ambos com listas locais e lista nacional. Um primeiro, o modelo que constava da chamada proposta de lei António Vitorino, elaborada sob responsabilidade e orientação daquele, enquanto ministro dos Assuntos Parlamentares do primeiro Governo de António Guterres e defendida pelo seu sucessor no cargo, António Costa, quando do debate Parlamentar em que foi chumbada, em Abril de 1998. (ver texto em baixo)
Neste caso, Seguro lembrou os círculos uninominais de candidatura, uma opção que terá de ser analisada em alternativa com os círculos locais plurinominais de lista aberta, em que o eleitor pode usar o seu voto preferencial e indicar os deputados que quer ver eleitos. “O voto preferencial e as listas abertas também favorecem a aproximação”, por isso, o secretário-geral quer “pôr em debate, e em alternativa, círculos uninominais de candidatura ou círculos plurinominais desagregados e mais pequenos, mas mantendo sempre a proporcionalidade que a Constituição obriga”, frisa Martins.
Este tipo de listas abertas e de voto presencial está incluído na outra proposta de sistema eleitoral que o PS abraçou mais recentemente. E que resulta de um estudo feito durante o primeiro Governo de José Sócrates, encomendado pelo mesmo Alberto Martins, então também líder parlamentar, ao investigador André Freire. (ver texto em baixo).
Debate actual
Segundo Martins, “as questões que se põem em relação aos sistemas eleitorais são a proporcionalidade, a qualidade da representatividade e a governabilidade.” Ora, prossegue o líder parlamentar do PS, “em Portugal, não há problemas de governabilidade, pois já houve maiorias absolutas – nesse domínio, a incapacidade de a esquerda se coligar não passa pelos sistemas eleitorais”. Na opinião de Martins, também “não há problemas de proporcionalidade, embora o método de Hondt a distorça um pouco”. Assim, o que está em causa é o problema da representatividade”, conclui.
Responsável pela elaboração dos estudos e da primeira proposta de revisão da lei eleitoral que o PS apresentou no Parlamento, António Vitorino afirma ao PÚBLICO que não é “hipócrita” e, por isso, não pode dizer que o modelo em vigor “não tem vantagens”. Mas sublinha que “o problema que se critica neste sistema eleitoral é a relação eleitor-eleito”. E também Vitorino afirma que “o sistema actual nunca foi criticado por distorcer o resultado”, assim como “não há um problema de legitimidade nem de representatividade”, a questão que se coloca é a de saber “como aproximar, sem criar destorção e sem alterar a representatividade”.
Todavia, Vitorino considera que “ainda faz sentido” hoje alterar a lei e fazer este debate que, “está na agenda há mais de 20 anos”. E frisa que “a revisão de 1997 abriu as portas, mas não se fez nada”. Essa revisão baixou o número de deputados e estabeleceu que a Assembleia pode variar entre 230 e 180 eleitos. O PS avançou com os estudos dirigidos por Vitorino e o PSD elaborou uma proposta que teria como primeiro subscritor o então líder parlamentar António Capucho. (ver texto em baixo)
Defensor da proporcionalidade, mas admitindo mudanças, Vitorino nem sequer estigmatiza a redução do número de deputados, defendida por Seguro e rejeitada recentemente por António Costa. “A revisão da Constituição em 1997 introduziu o limite mínimo de 180 deputados, foi o preço a pagar ao doutor Marcelo para haver revisão constitucional”, sublinha o antigo ministro de Guterres.
Salvaguardar os pequenos
O que Vitorino sublinha é que “tem de ser dada atenção aos partidos mais pequenos, a redução de deputados tem que ter compensação”. Ou seja, uma forma de conseguir que a redução dos deputados não expulse os pequenos partidos da Assembleia. Quanto à personalização da eleição, Vitorino considera que ela não prejudica os pequenos partidos. “As autarquias são personalizadas e o PCP ganha câmaras”. Por outro lado, adverte que “a agregação de concelhos menos povoados não pode ser controversa, têm que haver mecanismos transparentes”. E lembra: “Na nossa proposta, tínhamos a contiguidade, o limite geográfico e um número mínimo de eleitores, eram esses os critérios a usar pela comissão que fizesse a delimitação dos círculos.”
Mas Vitorino alerta para que “reduzir o número de deputados e introduzir círculos uninominais é contraditório”. Explica que “se se reduz deputados, está-se a reduzir representatividade”. E prossegue alertando para que “uma alteração que introduz círculos uninominais com lógica maioritária tem que garantir flexibilidade de compensação”. Exemplificando, Vitorino afirma que “se o Parlamento tiver 230 deputados, o sistema pode ter um círculo nacional maior e a pressão é menor”. Já se “forem 180 deputados, a pressão é maior”, acrescenta. E conclui: “Há margem para reduzir mas tem que se ver se está em linha com a proporcionalidade.”
Já sobre o tipo de círculos a adoptar, Vitorino não faz finca-pé no modelo de que é pai. “Pode ser a divisão dos círculos eleitorais em círculos regionais pequenos, como era a proposta de António Capucho nos anos noventa” (ver texto em baixo). Ou mesmo, acrescenta, “a proposta de André Freire para José Sócrates, com listas abertas e o eleitor a escolher a ordem de eleição”. Assim como frisa que há diversos modelos todos válidos e todos democráticos, a questão é escolher: “Há o irlandês, de voto transferível, que se não eleger no primeiro círculo, ajuda a eleger no segundo.”
A resistência dos partidos
O problema de fundo que tem protelado estas decisões deve-se, segundo Vitorino, ao facto de que “os partidos são avessos a mudar a lei eleitoral, estão calhados neste modelo”. E prossegue referindo que “os partidos resistem porque iriam alterar o funcionamento das máquinas partidárias”. Uma conclusão que decorre do facto de que, “com mais personalização, as pessoas têm um escrutínio maior, se houver maior personalização significa que as máquinas partidárias têm que ter maior exigência na apresentação dos candidatos”.
A resistência dos partidos à mudança do sistema eleitoral é também apontada pelo sociólogo António Barreto, antigo dirigente e deputado do PS, que há mais de três décadas defende a mudança do sistema eleitoral. Para Barreto, “a questão ainda é actual, é cada vez mais actual”. Em declarações ao PÚBLICO, o sociólogo sustenta mesmo que “na Europa, assiste-se a um fechamento do sistema político à vida cultural, social, económica” e esta “é uma das raras vias onde o sistema político português pode abrir”, frisando: “Há poucas vias e eu excluo as vias não democráticas.”
Barreto está céptico quanto ao futuro. “Não tenho nenhuma esperança que o sistema evolua para o que considero melhor, que é o sistema maioritário, uninominal e com independentes”, assume. Mas sublinha os motivos por que defende uma solução que sabe que não é milagrosa. “Não tenho esperança que o Parlamento seja melhor. Pelo contrário, tenho ideia que um Parlamento de independentes será um Parlamento sem qualquer racionalidade política ou partidária, será do tipo dos Estados Gerais após a Revolução Francesa. Mas isto obrigaria os partidos políticos a fazer escolhas mais sérias dos seus deputados, pois sentir-se-ão ameaçados.”
Sem temor de contrariar o mainstream político, Barreto afirma com clareza que a discussão sobre o número de deputados é irrelevante: “Se se baixar para 150 ou 200 ou ficar como está, é indiferente. Reduzir é-me indiferente. É demagogia.” E exemplifica: “A Suíça tem duas câmaras e mais os parlamentos dos cantões. A Suíça tem mais eleitos que Portugal.” Para concluir: “Sobretudo se forem círculos uninominais, acho interessante que haja mais deputados, para que haja mais representatividade.”
Barreto salienta que até agora se “tentaram várias soluções, tudo soluções de recurso” e reconhece: “Se me perguntarem se prefiro o que há agora ou o alemão, com círculos locais e nacional, prefiro [o alemão]. O que temos agora é o pior, pois acumula defeitos.” E insiste em dizer: “O sistema do Vitorino era complicado, mas prefiro ao que temos actualmente. Este é o pior de todos”. E explica que a opção em 1974 foi esta para “obrigar os partidos a fixarem-se”. Assim, logo na lei eleitoral elaborada por uma comissão nomeada em Maio de 1974 e depois “na Constituição, fica implantado –e muito bem –um sistema de defesas, para evitar o regresso ao fascismo, o comunismo, os caciques, o caciquismo dos padres, o sidonismo dos militares”.
Só que hoje os problemas são outros. E passam por um aparente excesso de presença das máquinas partidárias nas decisões e nas escolhas eleitorais. Um problema que para Barreto era fácil de resolver: “Procuram-se soluções complicadas, tudo isto para não rever a Constituição. Era mais simples rever a Constituição, eliminar a partidocracia central é o objectivo que defendo.”
Já Vitorino é peremptório a defender “a urgência deste debate” e que frisar que ele não deve ser adiado nem pela proximidade de eleições legislativas. “Estamos perto da eleição, o debate a fazer e uma lei a aprovar não serão para estas legislativas, mas para clarificar como será de futuro. Se há intenção de mudar o sistema que abram o jogo, tem de haver debate alargado.”
Uma urgência que é subscrita por Alberto Martins. “É uma necessidade rever o sistema eleitoral e o sistema político em geral, nomeadamente melhorar a iniciativa legislativa popular e a petição popular”. Isto porque, para o líder parlamentar do PS, “é preciso aprofundar todos os mecanismos de participação dos cidadãos”. Martins sublinha que “os partidos são essenciais mas não esgotam a democracia e é necessário aumentar os elementos de participação dos cidadãos”. E conclui: “Defendo primárias em todos os cargos de vida política.”