1949, o ano em que as senhoras deixaram as meias em casa
A única referência de que no dia anterior Lisboa enfrentara um calor infernal vinha a meio de uma notícia sobre o desfile anunciador da Feira Popular e da Batalha das Flores. “O calor, efectivamente, era de afligir”, escreveu o repórter, acrescentando que “alguns espectadores tiveram de ser socorridos”.
O assunto adormeceu, mas acordou no princípio de Julho. O país todo mergulhou numa onda de calor que ajudaria a fazer do Verão de 1949 o terceiro mais quente desde que há séries meteorológicas nacionais em Portugal.
Os termómetros em Lisboa estiveram durante cinco dias acima dos 35oC e o assunto esteve na capa dos jornais em edições sucessivas. As notícias referem os lisboetas “em mangas de camisa, por soleiras de portas e bancos de jardim, sem o cachecol da gravata e suspirando por modelos paradisíacos de vestuário”. Falam também “na coragem com que muitas senhoras venceram a inexorável convenção do ‘parece mal’, deixando em casa as meias de seda ou de vidro”.
No dia 2 de Julho, um sábado, a região do Porto amanheceu quentíssima: às 9h a temperatura já ia em 31,9oC. Ao meio-dia, em Campo Maior estavam 41,1oC. Lisboa chegou aos 38,7oC. Na segunda-feira, dia 4, um “vento ardente”, trazendo a sensação de uma chuva de línguas de fogo, provocou o pânico na Fuzeta, Algarve. “O mulherio clamava que era o fim do mundo”, informava a reportagem do Diário de Notícias. Pelo menos até quinta-feira, dia 7, o calor continuava, com 41,5oC registados em Penela.
Não foi só Portugal a sofrer com a canícula. A onda de calor estendia-se por toda a Península Ibérica e em grande parte da Europa. Em Londres, a rega de jardins e campos de jogos chegou a ser proibida.
Ironicamente, o sol incandescente veio acompanhado do seu reverso: fortes trovoadas, que causaram estragos e mataram várias pessoas, apanhadas por raios ou “faíscas”.
Alguns agricultores rejubilaram, pois a chuva prometia acabar com uma prolongada seca, que já vinha do ano anterior. Foi um dos três períodos de grandes estiagens na década de 1940. A pior ocorrera entre 1943 e 1946, a seca mais longa e a segunda mais intensa nos 65 anos entre 1941 e 2006.
A despeito do calor e da falta de chuva, não há muitas notícias sobre incêndios florestais nessa altura. A explicação pode estar, em parte, na floresta em si. O país não estava tão arborizado como hoje e os matos estavam menos disponíveis para arder. “Havia um grande aproveitamento da biomassa”, explica Paulo Fernandes, do Departamento de Ciências Florestais e Arquitectura Paisagista da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Os matos eram reduzidos pelo pastoreio ou ceifados para uso como fertilizante na agricultura, para a cama do gado ou para combustível doméstico.
Outro factor são as condições que facilitam os fogos – a temperatura, a humidade e o vento. Os três são a base de um índice de risco de incêndio largamente utilizado a nível mundial. Paulo Fernandes coordenou um estudo, que aguarda publicação, no qual foram calculados os índices de incêndio entre 1943 e 2011. O ano de 1949 não aparece como particularmente extraordinário. Nos baldios e matas nacionais – únicas áreas para as quais há dados sobre fogos antes de 1980 – arderam 2062 hectares. Em 1962, o ano com piores condições a seguir a 2005, arderam 11 mil hectares nas mesmas áreas sob regime florestal.
Com ou sem fogos, 1949 teve um Verão escaldante. O calor regressou em força na última semana de Julho. O recorde de temperatura desse ano foi registado no dia 27 desse mês, na estação de Alvega, no Ribatejo: 45,5oC.
O calor manteve-se praticamente constante ao longo de todo o mês de Agosto, em que a média das temperaturas máximas em todo o país foi de 31,6oC. Lisboa registou 21 dias com as máximas acima dos 30oC. Foi o segundo Agosto mais quente desde 1931, perdendo apenas para o fatídico ano de 2003.
Foi preciso que passassem quase seis décadas para que houvesse um Verão em que a temperatura média ao longo de Junho, Julho e Agosto fosse tão elevada como em 1949. Os anos de 2004 e 2005 ocuparam as primeiras posições.