Um Verão com Yasujiro

Três filmes do período final do cineasta japonês, que abraçou a cor como uma cereja – bem vermelha – em cima do bolo.

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Bom Dia, de 1959
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A Flor do Equinócio, de 1958
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O Fim do Outono, de 1960

Por esta altura Ozu, que filmava desde os anos 20, tinha mais que estabilizado um estilo e um "sistema". Abraçou a cor como uma cereja  bem vermelha  em cima do bolo, e compreendeu imediatamente, e de forma inequívoca, como a podia utilizar de maneira expressiva e ao mesmo tempo subliminar  é reparar, por exemplo, nas tonalidades dominantes de cada um destes três filmes e no modo como elas afectam, não tanto a história que está a ser contada mas a maneira como o espectador a recebe: em A Flor do Equinócio os tons claros, amarelos acastanhados e cinzentos (sem menosprezar a chaleira vermelha que parece lá estar, sempre no mesmo canto, para o espectador não se perder na organização arquitectónica da casa da família protagonista); em Bom Dia, os vermelhos e os castanhos escuros, como que a rimarem a juventude rebelde dos miúdos que o protagonizam; em O Fim do Outono, cinzentos e verdes em várias gradações.

 

Mas o arsenal expressivo e os elementos essenciais da mise en scène de Ozu, cada vez mais "limpos", mais minimais, mais isentos de palha supérflua, prosseguem o caminho a que ele já tinha chegado, há anos, no preto e branco: a câmara em posição muito baixa, sempre em contra-picado, para que se inventou a designação de "câmara-tatami"; os campos-contracampos em ângulo recto e frontalidade absoluta e os outros, que parecem erros de raccord, em que os interlocutores são filmados como se estivessem a olhar em direcções diferentes (em A Flor do Equinócio Ozu faz um uso magistral disto, na cena da conversa entre o pai e a mãe no passeio dominical); os planos ditos de "pontuação", quase sempre estruturalmente semelhantes, como os corredores vazios cruzados ao fundo por outro, perpendicular (formando um "tê"), onde alguém passa, ou os interiores temporariamente desabitados, ou ainda esses ex-libris de Ozu que são os planos de roupa estendida e os planos de comboios no horizonte. Vezes sem conta, ao longo destes três filmes, encontraremos este tipo de imagens e de procedimentos.<_o3a_p>

Que são, apesar de tudo o que os aproxima e da evidência da assinatura de Ozu, filmes bastante diferentes. A Flor do Equinócio põe-se na perspectiva dos pais (e portanto da geração que tinha a idade de Ozu, 55 anos, naquela época) para a comentar criticamente. Há um pai que fica furibundo quando a filha recusa o casamento "arranjado" que ele planeava para ela (como "arranjado" fora o dele e da mulher, a lendária e sempre espantosa Kinuyo Tanaka). O que o enfurece é menos o noivo que a filha escolheu de moto próprio, que parece bom rapaz e nada indicia vir a ser mau marido, e mais ela tê-lo escolhido sem o consultar e sem se importar com as convenções do que "deve ser". A questão cultural que Ozu põe, neste filme onde as filhas aparecem e desaparecem (das casas e dos planos) como se não houvesse mão nelas, é profundamente japonesa: a obediência. É um valor essencial para o pai, como se vê, perto do fim, na estarrecedora cena da reunião de velhos amigos em que um deles (Chishu Ryu) declama um poema do tempo da guerra que começa por jurar obediência ao Imperador. Cristalinamente, e sem qualquer retórica, A Flor do Equinócio reflecte a mudança de mentalidades no Japão moderno, a falha geracional entre a geração de antes da guerra e a geração que cresceu depois dela.<_o3a_p>

A obediência também é uma questão em Bom Dia, o filme que, destes três, mais genuinamente pode ser considerado uma comédia (incluindo piadas com gases intestinais e tudo). O cenário social é mais complexo, um subúrbio de Tóquio, e as personagens não são os homens de negócios, bem na vida e bem na cidade, de outros filmes. Mas a questão das convenções é, mais uma vez, motriz, através da confusão e intriguice lançada na vizinhança quando dois garotos, como "greve" para reivindicar aos pais a compra de uma televisão, deixam de falar e de cumprimentar seja quem for. É de certa maneira um filme sobre a linguagem de circunstância e sobre os formalismos sociais tão presentes na vida japonesa, mas é também, e mais directamente, outro olhar "em corte" sobre um momento preciso: o início da "era do electrodoméstico" (também há uma questão com máquinas de lavar), a chegada em massa da televisão aos lares japoneses. Resolvido em ambiguidade, porque se Ozu está claramente com os miúdos na sua reivindicação, não deixa por isso de estar também com o pai deles (Chishu Ryu, actor-chave de Ozu, aqui mais protagonista do que nos outros dois filmes), que se recusa a comprar o aparelho por profetizar que "a televisão vai criar uma sociedade de idiotas".<_o3a_p>

Finalmente, O Fim do Outono é o filme que mais se entrega àquela espécie de romantismo, muito seco, muito sereno e muito dilacerado, com que Ozu olhou para as relações familiares. É um filme de mulheres, curiosamente, várias mulheres jovens, aguerridas e senhoras do seu nariz, e uma mais velha (Setsuko Hara). Os homens fazem planos para elas (um grupo de amigos quer casar a filha órfã de um deles, já falecido, e lembram-se de encontrar novo marido para a viúva) mas o filme, depois de vários e movimentados quiproquós (talvez seja o mais rápido destes filmes, embora seja o mais longo), acaba com as mulheres a decidirem por elas próprias e os homens entregues aos seus whiskys e aos seus sakés. Acima de tudo é uma história de amor entre mãe e filha, quase uma versão feminina de O Gosto do Saké, em longa preparação para o momento em que a mais nova irá à sua vida e a mãe ficará entregue à sua solidão e às suas memórias. É sublime, como sublime é Setsuko Hara, capaz de rematar o diálogo mais despedaçador com um sorriso e uma rápida mudança de assunto, "foi mesmo agradável esta viagem".<_o3a_p>

Deseja-se que a viagem do leitor por estes três filmes geniais seja, igualmente, agradável.<_o3a_p>

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