Abolir a pena de morte significa perder o poder na Guiné Equatorial
O advogado e activista da Guiné Equatorial Ponciano Mbomio Nvó defende que "pela sua história, o país devia pertencer à comunidade hispânica" e não à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), de que será membro de pleno direito a partir da cimeira desta quarta-feira. E não acredita que o regime de Obiang tenha vontade política para pôr fim à pena capital.
Mais de 35 anos passados, Ponciano continua a ser uma das vozes mais críticas do regime e a defender opositores, também eles alvo de alegações de tentativas de golpes que não se confirmam. Hoje, é também o advogado de defesa do empresário italiano Roberto Berardi, vítima de tortura na prisão de Bata, onde se encontra em isolamento desde Janeiro, e outra figura incómoda - não para o Presidente mas para o seu filho, Teodoro Nguema Obiang Mangue, conhecido como Teodorin. Berardi foi seu sócio numa empresa de construção que Teodorin utilizou para desviar dinheiro para contas privadas nos Estados Unidos onde é acusado judicialmente de apropriação indevida de fundos do Estado e de práticas criminosas, como branqueamento de capitais, por procuradores do Ministério Público, num processo que iliba Berardi.
Ponciano Nvó defende Berardi como antes defendeu opositores políticos. Duas vezes teve a sua actividade de advogado suspensa na Guiné Equatorial. Em 2008, quando defendia o opositor político Faustino Ondo Ebang, hoje exilado em Espanha. E em 2012, depois de acusado de má conduta durante o julgamento do destacado activista dos direitos humanos Wenceslao Mansogo Alo. O fim da suspensão, previsto para Abril deste ano, foi antecipado para Fevereiro último, por imposição da União Internacional de Advogados, que se deslocou entretanto a Malabo. Ontem, em Lisboa, além da reunião com a bastonária da Ordem dos Advogados, Ponciano Nvó começou os encontros com os partidos representados na Assembleia. A ronda prossegue hoje, horas antes da esperada formalização da entrada da Guiné Equatorial como país membro de pleno direito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), na cimeira de chefes de Estado amanhã em Díli.
O que espera dos encontros com os deputados portugueses?
Espero que mostrem interesse em ver se a Guiné Equatorial, com a sua entrada na CPLP, vai cumprir de modo escrupuloso as exigências [subjacentes a essa entrada]: a eliminação da pena de morte, a instituição de um sistema democrático fiável e o respeito pelos direitos humanos. São aspirações e um compromisso que tem para com a CPLP. Tenho esperança de que o país passe a cumprir essas exigências, uma vez que Portugal autorizou a sua integração na CPLP antes de o país provar como efectivo o cumprimento destes requisitos.
Com a adesão à CPLP, o país estará sob maior pressão para respeitar as leis internacionais de direitos humanos?
Espero que o Presidente respeite tudo aquilo a que se comprometeu. Está há 35 anos no poder e dispõe de todos os meios para satisfazer as leis nacionais e internacionais. Mas não temos visto essa vontade política. Espero que os parlamentares portugueses me digam quais as garantias que receberam por parte do Presidente para aceitarem a entrada da Guiné Equatorial na CPLP.
Uma das garantias referida é a moratória de abolição da pena de morte já aprovada. Não acredita que, com isso, a Guiné Equatorial ponha fim à pena capital?
Enquanto jurista deste país, o termo ‘moratória’ não me convence. É uma palavra de interpretação difusa que cria dúvidas. Ora no campo do direito penal, não deve existir margem para dúvidas. Além disso, essa moratória de abolição da pena de morte foi criada no âmbito de uma resolução, ou seja, no âmbito da disposição mais inferior que existe, abaixo do decreto presidencial, do decreto legislativo ou do decreto-lei, e muito abaixo da lei ordinária. Sendo a pena de morte reconhecida por uma lei ordinária não pode ser anulada por uma resolução. Os tribunais podem invocar isso para decretarem a pena capital. Um decreto-lei teria sido a forma de garantir o fim dessa pena. Para que a moratória tenha garantias, o Governo tem que apresentar um projecto de lei que inclua o fim da pena de morte no Código Penal, que é uma lei ordinária. Se realmente se quer eliminar a pena de morte tem que ser mediante outra lei. A verdade é que não há vontade política para pôr fim à pena de morte.
Por que razão?
Porque o regime governa intimidando os cidadãos. As pessoas vivem com o medo de que podem ser mortas. É uma herança do passado, com muitas mortes. Eliminar a pena de morte significa perder o poder.
Mas os opositores políticos, embora sejam perseguidos, não arriscam a pena de morte.
Na Guiné Equatorial, não há oposição. São partidos políticos apenas de nome. Todos os partidos foram destruídos. Os outros, embora com nomes diferentes, fazem parte da coligação que está no poder. Só existe um - Convergência Para a Democracia Social - que tem apenas um deputado. As eleições não são mais do que uma farsa. Assim funciona a Guiné Equatorial. Com uma só pessoa a governar. Com uma só pessoa que concentra os poderes judicial, executivo, legislativo.
Será melhor para o país pertencer à CPLP do que não pertencer?
Pela sua história, a Guiné Equatorial devia pertencer à comunidade hispânica. É uma antiga colónia espanhola. Qualquer cidadão da Guiné Equatorial - como eu - considera a Espanha o seu segundo país. Mas em Espanha é onde está a maior parte dos exilados políticos. O regime não quer que a Espanha acolha esses políticos, verdadeiros opositores, e optou então por aderir à [Organização da] Francofonia, como forma de transmitir a Espanha a mensagem de que a antiga potência perdera influência numa das suas antigas colónias.
As boas relações com França também estão, no entanto, comprometidas.
Sim, a justiça francesa investiga o Presidente por desvio de bens públicos e aquisição de bens, como grandes imóveis de luxo comprados em Paris com o dinheiro público. Mas a França está a respeitar a imunidade do Presidente e o processo está por isso suspenso. Um outro caso é o do filho do Presidente Teodorin que foi julgado e condenado por desvio de bens públicos. Um prédio de luxo foi-lhe confiscado e um mandado de captura internacional emitido. Quando todos estes conflitos surgem com a França, já depois de o país se dar mal com Espanha, o regime tenta virar-se para a lusofonia. É uma forma de dizer à França e à Espanha que é aceite e que agora é lusófono.
Como vêem os cidadãos da Guiné Equatorial esta possibilidade de virem a aprender na escola o português, enquanto língua oficial?
As aspirações do Presidente não coincidem com as aspirações dos cidadãos da Guiné Equatorial. Não há coincidência. E a população não tem nenhum conhecimento dos conflitos entre a Guiné Equatorial e a Espanha, a França e o resto da comunidade internacional.
Falar e aprender português não interessa às pessoas?
Não é o que mais interessa. O que mais interessa é que haja democracia. A população vive mal, e está mais pobre agora com o petróleo do que estava sem o petróleo, porque antes desenvolvia-se a agricultura. Nas zonas rurais, cada pessoa tinha uma porção de terra e produzia café, cacau, vendia os produtos e tinha dinheiro para viver. A agricultura acabou. A descoberta de petróleo foi anunciada à população como um milagre de deus. E foi dito que o petróleo seria para todos e que todos iam viver bem. O homem que era rico com a sua actividade agrícola é pobre agora com petróleo. O Presidente diz que o dinheiro do petróleo é para a construção de infra-estruturas, de escolas e hospitais. O país tem um dos rendimentos per capita mais elevados do mundo. Mas isso é teoria.
Não estão a construir-se escolas e hospitais com os fundos do petróleo?
As clínicas que estão a ser construídas são clínicas privadas. Duas das quatro clínicas que existem são da primeira-dama. São sociedades comerciais cujo accionista principal é o Estado, ou seja, alguém da família do Presidente. É uma máfia. Essas clínicas privadas são muito caras. A maior parte da população não tem dinheiro para beneficiar delas.
Desde a adesão à Francofonia, o francês passou a ser idioma oficial. Também se ensina o francês nas escolas?
Só nas escolas privadas. Porque nas escolas oficiais, não há professores para isso. Não estão a ser pagos para isso. São funcionários do Estado e ganham salários muito baixos. Um professor com uma licenciatura não ganha mais do que 290 euros por mês. E a inflação é galopante porque se importam os produtos de fora, e não se exporta nada. Os preços sobem também porque há muita corrupção, por exemplo, nas alfândegas onde os funcionários cobram o que chamamos de ‘imposto revolucionário’, as taxas não previstas na lei. Para compensar essa perda, os comerciantes sobem os preços.
Sente-se livre para criticar o poder?
Sou um advogado. Num processo judicial, o advogado está amparado pela lei. Se não utilizar a lei e a liberdade de expressão não pode defender. Sentir medo seria o mesmo que mentir. Na Guiné Equatorial, há medo porque não há liberdade de expressão e porque a mentira está institucionalizada. A mentira na Guiné Equatorial está institucionalizada. Eu, como jurista, não posso mentir porque atentaria contra a minha profissão. Mas eu próprio sou vítima da ausência da liberdade de expressão. Fui suspenso, duas vezes, da minha actividade. Sou testemunha das coisas que disse e fez Obiang, quando era vive-ministro da Defesa e eu fui acusado de tentativa de golpe de Estado contra o então Presidente Francisco Macías. Eu sou um incómodo para este Presidente.
E o seu cliente, o empresário Roberto Berardi, pode ser uma testemunha incómoda para o filho do Presidente. Quando e como poderá ele ser libertado?
Só através de um indulto presidencial. Ou cumprindo a pena de dois anos e quatro meses. Cumpriu 17 meses. A justiça devia funcionar e não funciona. Temos uma lei orgânica que determina a separação de poderes mas é o Presidente que nomeia os juízes, os magistrados e os procuradores, directamente, e sem respeitar a lei.
Berardi pode morrer na prisão?
Sim. Está muito enfraquecido. Vi-o no passado dia 11 de Julho, no hospital porque não o posso visitar na prisão. Também os representantes do Comité Internacional da Cruz Vermelha não puderam visitá-lo. Vi que tinha cicatrizes da tortura de que tem sido vítima. É muito difícil evitar a tortura porque são os militares que controlam as prisões. As prisões estão em recintos militares. Pouco depois de estar no hospital, voltou para a prisão, onde nem sempre recebe assistência médica. Ele pode morrer e tem muito medo de morrer. Ainda na semana passada falei com ele pelo telefone, e ele estava em choque porque tinha visto o cadáver de um dos presos a ser removido. Esse preso morreu por falta de assistência médica.