Sob as raízes dos plátanos

Arca d’Água é o local onde se encontram três nascentes de água, o manancial de Paranhos, que desde o século XVII abastecia fontes e chafarizes da cidade.

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Até ao dia em que me perguntaram se queria ir fazer o passeio subterrâneo pelos túneis que saíam do Jardim de Arca d’Água e levavam a água a várias fontes da cidade, nunca tinha parado para pensar no significado daquele nome, que me remetia, mais rapidamente, para o título de um qualquer conto infantil.

Antes, o local era apenas a Arca d’Água, só assim, sem mais nada. Quando o autocarro se aproximava daquele espaço grande, cheio de árvores gigantescas e de copas largas — que no Outono largam folhas suficientes para atapetar em vários tons de amarelo e laranja o chão em redor e no Verão dão uma sombra a que não apetece fugir —, eu sabia que estava em Arca d’Água, o que significava que o centro da cidade já era quase palpável. Longe, demasiado longe, de pensar de onde teria vindo aquele nome e mais longe ainda de saber que a praça em que o jardim está implantado tinha ainda outro nome, o oficial: Praça de 9 de Abril.

É mais um daqueles nomes que nunca são usados, excepto para endereçar oficialmente alguma carta ou aviso postal. O nome invocará a data da Batalha de La Lys, em que participaram e morreram muitos portugueses, durante a I Guerra Mundial, e foi por causa do centenário da Grande Guerra, como foi inicialmente conhecida, que me lembrei deste pedaço do Porto. Mas a verdade é que assim que comecei a pensar na praça, foi o seu nome popular que me encheu de memórias e não uma qualquer batalha da História.

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O Jardim de Arca d’Água está na Praça de 9 de Abril, nome que ganhou por invocar a data da Batalha de La Lys. Em meados do século XIX, por ali andaram, batendo-se em duelo, os escritores Antero de Quental e Ramalho Ortigão

Recordei-me do dia em que, de capacete e galochas emprestados pelos serviços da autarquia, vi abrir-se o alçapão que dá acesso aos subterrâneos e me vi, de repente, na área suportada por arcos de pedra e o chão raso de água. Do caminho feito quase no escuro, sempre a ter cuidado onde se punham os pés, para não os enfiar na água, e dos pingos que, de vez em quando, baptizavam o bloco em que procurava apontar algumas notas.

Foi só nesse dia, já lá vão mais de dez anos, que descobri que Arca d’Água se refere, de facto, ao local onde se encontram três nascentes de água, o manancial de Paranhos, que desde o século XVII (a construção iniciou-se ainda nos finais do século XVI, mas prolongou-se por 90 anos) abastecia fontes e chafarizes da cidade.

Quando a Arca d’Água ainda era pouco mais que um descampado, a 6 de Fevereiro de 1866, andaram por ali os escritores Antero de Quental e Ramalho Ortigão, a bater-se em duelo (do qual o primeiro saiu incólume e o segundo com ferimentos num braço). Por essa altura, a entrada para as galerias subterrâneas ainda se fazia por uma estrutura em pedra, colocada no terreno e que, entretanto, foi demolida.

O jardim, com o seu lago, a gruta, os plátanos e cedros foi projecto por Jerónimo Monteiro da Costa e inaugurado em 1928. É um espaço generoso, onde nunca falta gente e que ainda tem um coreto, embora já de pouco sirva.

Agora, se calhar de passar por ali no primeiro sábado de cada mês, os caminhos do jardim estão pintados com outras cores, ocupados por bancas de quem vai ali vender velharias. No tempo das festas da Nossa Senhora da Saúde, em Agosto, são os carrosséis, os brinquedos e as farturas que ocupam os caminhos do jardim.

Arca d’Água não é daqueles sítios esquecidos pela cidade, embora o abandono de alguns dos seus espaços também já lá tenha deixado marcas. É mais como um pequeno coração verde, já não muito longe dos limites do município, mas sem nada de periférico, todo Porto. É um jardim bonito, de árvores antigas e altas, que escondem, sob as suas raízes, um mundo subterrâneo que goteja e desliza, feito de água. Um mundo que nos lembra que a cidade que não vemos também tem muitas histórias para contar.     

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