Faz agora pouco mais de uma semana e ainda sinto latejar em mim as emoções que senti no palco do festival Alive. Não foi a primeira vez que eu juntamente com os meus cúmplices visitámos o passeio marítimo de Algés. Mas o nosso último concerto em Lisboa foi quase perfeito e aproveito este espaço para assinalar este facto, reforçando que música que fazemos com Buraka só poderia nascer nesta cidade. O papel que Lisboa exerce na minha formação musical e consequentemente o contributo desta para o meu crescimento individual é imensurável.
Na primeira entrevista que dei, a propósito das muitas cumplicidades que na altura iniciara com uma mão-cheia de músicos da cena electrónica e urbana feita a partir de Lisboa, o jornalista Vítor Belanciano chamou-me poeta-cantor. Ainda que de poeta eu me sentisse longe de ser, maior era a distância que sentia do acto de cantar. Não sei cantar, digo, justificando sempre que me pedem para agarrar o microfone, para espanto das pessoas que se atreveram a lançar tal convite. Como é que alguém que não canta e nem sequer se apresenta como rapper consegue viver única e exclusivamente de e para a música? Pois bem, passo a explicar: a minha relação com a música se iniciou com as palavras, versos, letras de canções que me chegavam via rádio; uma relação íntima via FM. A minha educação musical começou exactamente com a rádio. Desde que me conheço por gente que me lembro de ter sempre o rádio ligado em casa, dia e noite. Até quando viajávamos, a minha mãe tinha por hábito deixar o rádio ligado, para afugentar os ladrões – não me canso de contar essa história. Enquanto as outras casas tinham um cão de guarda, nós tínhamos um rádio sintonizado na Rádio Morena!
Eu descobri-me através da música. Foi através desta que me fiz homem, foi com ela que a cor da minha pele passou a ser factor preponderante para a minha auto-afirmação. Antes desta consciencialização o termo “música negra” não existia no meu léxico sequer. Foi preciso fixar-me em Lisboa para iniciar essa viagem por aquilo que julgava saber sobre mim e por aquilo que o outro julgava saber sobre mim. Identidade passou a ser sinónimo de sobrevivência e a Kizomba a sua banda sonora secreta.
Poucos são os géneros musicais que conseguem criar esta ligação hermética entre corpo e alma, incorporando ao mesmo tempo e de forma camaleónica tantas outras manifestações musicais cujo apelo emocional toca os corações de tanta gente distinta. Mais do que música popular, esta é a verdadeira música comunitária. O ritmo apela ao coração do ouvinte, transporta-o para a essência daquilo que é a sua relação com a África umbilical, ainda que o mesmo nunca tenha pisado os pés naquela terra. Esta ligação é genética, é espiritual. Daí esta ser sentida como se de um culto religioso se tratasse, e esta experiência só se tornar completa quando partilhada com uma ou mais pessoas. Ou seja, a Kizomba é algo para ser sentido em comunidade, entre quatro paredes, as mesmas que as dos templos de oração. A Kizomba precisa de intimismo para desabrochar e envolver todos os presentes. Fecha-se a porta, baixam-se as luzes, aumenta-se o volume da música e estão assim reunidas as condições para que o corpo, sem inibições, se deixe levar e envolver na sua magia.