Do que a chuva foi capaz na noite em que o festival celebrou com Eddie Vedder
A chuva tornou especial o concerto de Legendary Tigerman, mas também provocou um sobressalto inesperado. Concertos adiados e o celebrado Eddie Vedder a sair de palco quando já passava das quatro da madrugada. Um longo segundo dia de Super Bock Super Rock
“Peço desculpa pela chuva”, brincou Paulo Furtado quando terminou a “Gone” de groove impecável e zumbido irresistível (cortesia da secção de sopros liderada por João Cabrita, um dos convidados de um concerto anunciado como especial – e, com Alex D'Alva Teixeira e Ana Cláudia nos coros, com quarteto de cordas, com Filipe Costa nas teclas e Paulo Segadães na bateria, foi-o realmente).
Tigerman, que não tinha culpa nenhuma, pediu desculpa pela chuva e acrescentou, bem humorado: “Não previ isto”. No dia em que Eddie Vedder foi o grande chamariz, em que Woodkid conquistou o público com música enquanto cinematografia negra e peso percutivo, e em que Capicua mostrou perante uma tenda Antena 3 lotada por que é rapper de excepção (as palavras, tudo o que interessa está nas palavras), perceberíamos que também a organização do festival não previu que pudesse chover.
Resultado: dado que, segundo explicado pela organização, não fora colocada cobertura protectora no palco EDP, o maior dos dois secundários, este acabou inutilizável por problemas técnicos durante largas horas e o duo americano Sleigh Bells, com concerto originalmente marcado para as 22h30, acabou por tocar quando passava já das quatro da manhã. Por sua vez Cat Power, escalada para as 24h, ficou reduzida a um frustrante mini concerto de sete canções, iniciado quando passava já da uma da madrugada.
A chuva deu, primeiro, um toque especial ao concerto de Legendary Tigerman. Depois, lamentavelmente, originou verdadeiro caos organizativo. O público aglomerado frente ao palco EDP para assistir ao concerto dos Sleigh Bells viu juntar-se-lhe, à medida que o tempo passava, aqueles que ali chegavam para ver o de Cat Power e, depois de muita espera sem informações prestadas, viram, todos juntos, a vocalista do duo, Alison Krauss, explicar que afinal a sua banda só subiria a palco às 3h, depois da actuação de Eddie Vedder e que seria a cantora de “The Greatest” a actuar logo de seguida.
Enquanto isso, os milhares que aguardavam no palco principal pela chegada do vocalista dos Pearl Jam eram informados que este chegaria com atraso – seria impraticável, pela sobreposição de som, realizar ao mesmo tempo o maioritariamente acústico concerto de Vedder, ali, e o eléctrico de Cat Power no outro extremo do recinto. Não era certamente uma memória que, quer público, quer organização, quereriam guardar deste segundo dia de Super Bock Super Rock, na Herdade do Cabeço da Flauta, no Meco. É inevitável, porém, que ela perdure. Ainda assim, não isolada.
Eram 4 da manhã e Eddie Vedder regressava a palco pela segunda vez. “Keep on rocking in a free world”, o segundo clássico de Neil Young da noite (o anterior fora “The needle and the damage done”), praticamente a trigésima canção interpretada ao longo de mais de duas horas. O público cantou-a, aplaudiu muito, gritou “Eddie” como pedido de regresso. Dessa vez, porém, a despedida foi definitiva.
Eddie Vedder não é propriamente novato em palcos portugueses. Vimo-lo há dois anos, a solo, no Sudoeste, vimo-lo já incontáveis vezes com os Pearl Jam, viram-no muitos, em praias espalhadas pelo país, entregue aos prazeres do surf. Cada regresso, porém, é celebrado como um acontecimento. Um acontecimento peculiar, misto de histeria pop e intimidade reservada a um velho conhecido por quem sente tanto carinho quanto admiração. Talvez por isso a dimensão de um palco principal não pareça grande demais para quem se apresenta sozinho, sentado, com cenografia discreta.
Eddie Vedder toca as canções dos Pearl Jam que todos cantam (“Better man”, “Last kiss”, “Black” ou “Porch” na recta final). Eddie Vedder arrisca uma mensagem em português algo atabalhoada e faz sorrir o público. Eddie Vedder, quase cinquentão, toca o ukulele, a guitarra acústica e a eléctrica, beberrica um pouco de vinho da garrafa que levou a palco e introduz alguns versos de “Brain damage”, dos Pink Floyd, antes de interpretar “Sometimes”. Terminará cantando “we can change the world / this is the time”.
O Eddie Vedder a solo é um misto de cantor folk em actuação caseira, estrela rock em modo contador de histórias, de intimidades, e fã que continua a entusiasmar-se com os seus heróis – além de Neil Young, ouvimos, por exemplo, a inevitável “You've got to hide your love away”, dos Beatles ou de John Lennon a inesperada “Imagine”, apresentada como “a canção mais poderosa alguma vez composta.
O público venera-o e ele, sem responder à veneração (está demasiado descontraído e pouco preocupado com adulação), sente-se em casa perante aquelas dezenas de milhares. Chama Cat Power para interpretarem juntos, como acontecera em disco, “Tonight you belong to me”, confidencia que os melhores guitarristas são sempre canhotos (elenca: Jimi Hendrix, Kurt Cobain, Mike McCready) e ilustra-o chamando Legendary Tigerman para o apoiar na “Masters of war” de Bob Dylan.
É um concerto e não é bem um concerto. É uma celebração conjunta, emotiva de parte a parte, cheia de boas intenções: o discurso anti-guerra e, para ilustrar o sentido que pretende dar-lhe, a interpretação de “Imagine”, canção que hoje, de tão gasta e tão utilizada a propósito e despropósito se esvaziou de sentido. Não é uma actuação musicalmente deslumbrante – a excepção talvez seja a folk solar, enérgica, de “Big hard sun”, tocada com palco repleto (Cat Power e sua banda, mais Paulo Segadães) e apoiada por base pré-gravada, disparada do gravador de fita em palco. De resto, não se esperava que o fosse. Interessava ver Vedder a ser Vedder em palco e a tocar as canções inevitáveis e as surpresas que apimentam o alinhamento.
Woodkid agradeceu emocionado
Passava das quatro da manhã quando terminou e, enquanto grande parte da multidão acelerava em passo rápido para o regresso a casa, ouviam-se finalmente os Sleigh Bells e aquela música violenta mas contagiante feita de riffs metal, batida hip hop distorcida e canto de cheerleader enfurecida. Caminhando para as tendas ou para os automóveis, o público levava na memória, além de Vedder, o concerto de Woodkid.
O alter-ego do francês Yoann Lemoine é surpreendente em palco. A sua música contrói-se de um esqueleto rítmico tonitruante (dois, por vezes três, percussionistas em timbalões e tarolas), piano, sintetizadores, electrónica ambiental e metais (trombone, trompete, tuba). O resultado, juntando a esses elementos a voz grave, qual cantautor, de Yoann, e o cenário criado em palco (toda a banda vestida de negro e, por trás dela, o ecrã onde se projectam, a preto e branco, futurismos urbanos modelados em “Metropolis”), é de uma estranheza matizada pelo apelo físico do ritmo. Em canções como “Iron” ou “Run boy run”, a derradeira, a mais desejada, ouvimos as dinâmicas e estruturas da música de dança electrónica transpostas para instrumentação real, o que dá à música uma aura tão visceralmente humana quanto alienígena – o público, conhecedor e cativado, cobriu Woodkid de aplausos, e este agradeceu, emocionado, depois de ouvir milhares cantarem-lhe a melodia de “Run boy run” quando a banda já se silenciara.
Com Woodkid, no palco principal, confirmou-se que o autor de “The Golden Age” é já alvo de um culto bem alargado em Portugal. Horas antes, deparávamo-nos no Palco Antena 3 com os Keep Razors Sharp onde encontramos Afonso Rodrigues (Sean Riley & The Slowriders), Rai (Poppers), Bráulio (Capitão Fantasma) e Carlos BB (Riding Pânico). A banda garimpa canções de preciosidades que incluem o psicadelismo nocturno dos Black Angels, a nuvem eléctrica dos Jesus & Mary Chain iniciais e a devoção pela história dos Brian Jonestown Massacre. Têm as canções e têm a intensidade. Mostraram-se uma belíssima banda em concerto, algo que o homem que vestia uma t-shirt de Bon Jovi, grupo nos antípodas dos Keep Razors Sharp, confirmou com dança fervorosa canção atrás de canção.
O poder da palavra de Capicua
Seria naquele mesmo espaço, já depois da actuação do rapper brasileiro Emicida, que assistiríamos à confirmação de Capicua como um dos nomes maiores, não só do hip hop português actual, mas de toda a música feita no país. Fiel ao formato clássico do género (DJ, D-One, e dois microfones, um para Capicua, outro para M7, conquistou o público que lotava a tenda com o poder evocativo da palavra, com um imaginário que alterna com talento entre a crónica íntima e o olhar exterior (da história pessoal à crítica social, em resumo muito resumido) e com um gosto e intenção evidentes no versejar.
Ouviu-se “Casa no campo”, “Lupa”, com a voz samplada de Aline Frazão, ou a irresistível autobiografia de “Vayorken”, a da despedida. Ouviu-se a autora de “Sereia Louca”, um dos álbuns do ano. Ouviu-se Capicua, mulher que continuaremos a escutar durante muito tempo.
Quando lotou o Palco Antena 3, já os Cults, os primeiros no palco principal, tinham mostrado que aquele espaço é demasiado grande para a sua pop sonhadora com girl-groups de outros tempos e já Joe Satriani, no Palco EDP, mostrara, sob estruturas rock estafadas, banais, que a sua guitarra fala realmente (infelizmente, não se cala).
Imediatamente antes de Capicua, no palco principal, Legendary Tigerman mostrou que a dimensão do palco era tudo menos um problema. Porque Legendary Tigerman já não é uma one man band, mas um homem rodeado de demais conspiradores rock'n'roll e porque, a meio de concerto, ultrapassados alguns problemas técnicos (a secção de cordas afogada no som geral, a guitarra que deixou de se ouvir no final de uma canção), homem tigre e comparsas mostraram-se insaciáveis. Gritou “I'm a motherfuckin' rhythm'n'blues machine, let's go” e todos foram com ele. Chegaram D'Alva Teixeira e Ana Cláudia, juntando-se à bateria, aos metais e aos teclados, e dois clássicos memoráveis (“20 flight rock”, de Eddie Cochran, e “These boots are made for walking”, de Lee Hazelwood e Nancy Sinatra) transformaram-se em dois momentos memoráveis do festival.
No final, com o coro repetindo em incitação interminável o manifesto celebratório “XXIst century rock'n'roll”, com o saxofone cercando a melodia com mestria, com bateria e órgão infatigáveis a manter a canção no rumo, Furtado lançou-se entre o público, ergueu-se sobre o bombo, gritou também ele o manifesto. A chuva continuava a cair. Não esqueceremos a imagem daquele momento. Não esqueceremos também, para o bem e para o mal, o que se seguiu. Os concertos e as atribulações.