Ser-se senhor doutor

Há quem não leia, há quem não pense, enfim, há de tudo.

Profissões, como a medicina e a docência, exigem algo muito além do 18,3 a Biologia e Geologia, do 18,1 a Física e Química e, até, do 18,8 a Matemática. Estas artes requerem, de quem as pratica, valências inavaliáveis em exames nacionais ou em programas de ensino secundário. São qualidades de comunicação, de entrega, de disponibilidade perante o outro, de sacrifício pessoal, de amor ao que se faz, de desapego ao ego. É uma vontade de servir, é uma vocação.

Ora, infelizmente maculado por pontuais enfermidades, tenho por certo que o leitor já terá, como eu, experienciado de tudo. Gente incansável que se dedica a fundo para o tratar, profissionais minuciosos que tudo copiosamente verificam para que nada falhe. Na porta ao lado, um médico desajeitado, de rosto em frete, inspire, expire, inspire, expire, vai tomar isto por cinco dias e são 70 euros faz favor, muito obrigado e volte sempre.

Para ingressar em medicina, basta ter uma média entre os 17,5 e os 18,0. Este basta tem, note-se, muito que se lhe diga. Atingir esta média, e às vezes um pouco mais, obriga a um esforço afincado, uma determinação notável de quem trabalha os três anos do secundário para ter um desempenho académico consistente, resistindo à peer pressure de uma geração desinteressada, que responde, “Não, eu não leio”. Há quem não leia, há quem não pense, enfim, há de tudo.

Por outro lado, ter média de 18 ou 19 parece implicar uma automática candidatura ao curso. “Uau! Média de 18? Então vais para quê? Medicina, certo?” O que só demonstra que, neste país de doutores e engenheiros, ser-se médico é, também, e muitas vezes apenas, um estatuto. Fiz-me rebelde de armadura quando, há três anos, fim de liceu, elegi investigação biomédica como carreira académica, quando a presciente força popular me decretava medicina. A minha vocação era, e é, questionar, investigar, descobrir, até porque, como se diz noutro contexto, nem todos podemos ser doutores. E é verdade, porque a média não é tudo. Há tão mais que saber derivar a função logarítmica, debitar as séries de minerais de Bowen ou compreender as fases do ciclo celular. A medicina é a santíssima trindade do exercício da técnica, manteado pela vocação altruísta, num trabalho de equipa, ao serviço do outro. Em Portugal, para ingressar em medicina, conta a média e mais nada. Perdemos anualmente gente excecional na área da saúde, com 17,48, para admitir um, sem dúvida inteligente, mas inadequado e pretensioso jovem, com 19,12, que vê na saúde um trampolim empreendedor para um dia ser gente que pode. Queremos gente que não queira ser gente. Gente que encontre a dignidade no seu trabalho e não num desfile de estetoscópio. É aquela médica ali ao fundo que, ao fechar a porta, despedindo-se da senhora idosa que vai a sair, esboça um sorriso discreto, como quem pensa de si para si, dever cumprido. É dela que eu falo.

Suspeito que o curso de medicina, com as todas as suas praticalidades, filtrará algumas almas em desajuste que por lá passeiem. Mas também sei, porque vou ao senhor doutor, que isso não chega. Em Inglaterra, por exemplo, o sistema de admissão às faculdades de medicina é rigoroso e blindado. As candidaturas incorporam, além das médias e exames, cartas de motivação pessoal, cartas de recomendação dos professores e, muitíssimo importante, entrevistas com vários docentes universitários que apreciam a aptidão de carácter e a competência moral dos candidatos. O Ministério da Educação, em colaboração próxima com o Ministério da Saúde, deveria proceder à elaboração de um protocolo semelhante, principalmente focando a questão das entrevistas, como meio de indagação e de seleção dos melhores candidatos e como meio de humanização de futuros médicos que têm que ser mais que bons técnicos.

Haverá sempre formas de se ser santo numa entrevista, mas se triarmos 5% dos jovens que ingressam anualmente, para dar oportunidade a outros tantos melhores, estaremos a prestar um serviço maior à educação e à sociedade.

Estudante universitário

 

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