Samuel Weber: a Europa e as suas pulsões destrutivas
A noção freudiana de “período de latência” serve ao filósofo americano Samuel Weber para analisar a história recente da Europa e o sentido das suas instituições, em função de categorias psicanalíticas e teológicas.
A ligação deste universitário americano à filosofia europeia, continental, fá-lo olhar para a Europa com a distância analítica de um não-europeu que conhece muito bem a “tarefa infinita” inerente à ideia europeia, essa ideia que lhe foi destinada pela tradição filosófica, mas que nunca impediu que este “continente espiritual” fosse o palco e o sujeito da violência e da barbárie cíclicas.
Autor de uma vasta obra, onde se destacam títulos como Mass Mediauras: Form, Technics, Media (1996), Theatricality as Medium (2004) e Targets of Opportunity: On the Militarization of Thinking (2005), Samuel Weber esteve em Lisboa para participar na Summer School of the Study of Culture, uma semana de palestras e seminários organizado pelo Lisbon Consortium, o programa de mestrados e doutoramentos em Estudos de Cultura da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica. O título geral da Summer School deste ano foi “Latências: Europa 1914 -2014”. A noção de latência tornou-se importante nos estudos culturais, sobretudo por via de um outro americano, Hans Ulrich Gumbrecht (Professor na Stanford University, e autor de After 1945. Latency as Origin of the Present), que também proferiu uma palestra. Samuel Weber é um estudioso de Walter Benjamin, traduziu Adorno para inglês e escreveu um livro sobre Freud. A sua crítica social e política é fortemente marcada por estas figuras de referência.
O que é um período de latência?
Fui buscar a noção a Freud, que diz, aliás, que não a pode definir de maneira exacta, na medida em que é algo que se torna invisível. Na teoria freudiana, a sexualidade infantil é muito activa até mais ou menos aos seis anos. Mas em seguida, com o complexo de Édipo, a sexualidade da criança fica num estado de impossibilidade e durante um longo período, até à adolescência, há um recuo da sexualidade manifesta. A energia sexual não desaparece, mas é utilizada para outros fins que parecem não sexuais, embora estejam ligados à sexualidade. E a sexualidade, para Freud, é sempre conflitual. Não é simplesmente a questão do desejo, mas o desejo que está em conflito com o mesmo e com o outro.
Mas como passa da dimensão da evolução do indivíduo para a periodização histórica?
A análise de Freud incide nos indivíduos, mas creio que a estrutura que ele analisa abre para os problemas colectivos, Por exemplo, o problema do complexo de Édipo: a certa altura ele é bloqueado pelo desenvolvimento daquilo a que Freud chama o super-ego. E o super-ego é uma instância intra-psíquica, individual, mas que reflecte toda a história e todo o passado da pessoa. E portanto é o momento em que os valores colectivos tradicionais entram no quadro do desenvolvimento individual, em que os valores e as experiências colectivos passam pelo super-ego, que tem um duplo sentido, em Freud: o sentido da interdição moral, mas também o sentido da emulação (“é preciso ser assim”). Essas interdições e esses desejos são canalisados por valores colectivos e tradicionais, específicos de uma comunidade e cultura, neste caso da Europa. Trata-se de certos valores europeus, dominados por uma longa tradição em que os valores cristãos são muito importantes, mas também muito contestáveis.
O período de latência de que fala começa quando?
Começa depois da Segunda Guerra Mundial. Quis-se instaurar instituições colectivas depois da Primeira Guerra, a Liga das Nações, mas não funcionou porque os interesses nacionais eram muito fortes e porque impuseram à Alemanha deveres insustentáveis. A Alemanha foi considerada como a única culpada da Primeira Guerra, e havia obrigações económicas que tornavam a função das instituições colectivas quase impossível. Depois, a Segunda Guerra provocou uma tal devastação que quase atingiu a sobrevivência da Europa. Na Primeira Guerra houve cerca de 17 milhões de mortos, mas na Segunda foram 60 milhões, mais o dobro dos deslocados, e uma destruição generalizada. Depois da Segunda Guerra não se podia continuar a Europa entregue a esses desejos auto-destrutivos e foi imposto um período que podemos chamar de latência, por analogia com a situação do indivíduo, segundo a teoria de Freud. Portanto, depois da Segunda Guerra houve a ambição de criar instituições para inibir e controlar as pulsões destrutivas, em relação às quais podemos estabelecer um paralelo com as pulsões sexuais do indivíduo. A ideia de um período de latência, aplicada à Europa, parece-me interessante, dadas as pulsões destrutivas dominantes. O perigo é que com o colapso das instituições da União Europeia destinadas a transformar as pulsões egoístas, narcisistas, individuais, em desejos colectivos, que podemos identificar com a União Europeia, se dê o retorno de pulsões maioritariamente destrutivas. É preciso ver de que modo o funcionamento das instituições esconderam as pulsões essencialmente egoístas das nações. Freud é aqui muito útil porque ele diz que a tendência civilizadora no período de latência não está separada do sexual, é apenas um outro modo de os impulsos narcisistas se dissimularem. Algo semelhante pode já estar a acontecer.
Um período de latência é equivalente a um período de transição?
Sim, mas a questão é: transição para o quê? O modelo freudiano é interessante porque não tem uma lógica progressiva, teleológica, que implica um avanço contínuo. A transição pode ser um retorno a algo muito destrutivo, ao qual está subjacente o narcisismo. O narcisismo individual pode ser transposto para o narcisismo dos Estados e para o narcisismo do sistema económico, que tem como fim a maximização do lucro, isto é, da riqueza que pode ser apropriada em termos privados. A apropriação privada da riqueza através do mercado pode ser vista como a expressão económica do narcisismo. A ideia que eu defendo é a de que este modelo narcisista está muito além da Europa, remonta à concepção bíblica de um Deus singular e exclusivo que responde assim à pergunta de Moisés: “Eu sou aquele que sou”. Esta ideia de um Eu que é singular e universal é, ao mesmo tempo, o modelo do narcisismo.
Trata-se, assim, de trazer o teológico para o nosso mundo secularizado e de fazer dele uma categoria interpretativa...
As categorias teológicas são muitas vezes negligenciadas. Habitualmente, quando as pessoas falam de economia assumem que vivem num mundo secular e que o capitalismo, por exemplo, nada tem a ver com a teologia. Tal ideia é desmentida num famoso texto de Walter Benjamin, O Capitalismo como Religião, no qual ele argumenta que o capitalismo é o sucessor da religião. A minha questão é a de que ele é de facto o sucessor da religião, mas no sentido desta continuidade narcisista em que um Deus se torna o indivíduo apropriador de riqueza. E apesar da mecanização e automatização generalizadas, pelos computadores e as tecnologias, o sistema ainda está muito ligado a esse indivíduo apropriador “humano, demasiado humano”. Por isso é que a sociedade precisa de imagens e rostos, seja de Bill Gates ou de Warren Buffett. Cada país conhece o rosto e o nome do seu homem mais rico, isso é muito importante para o sistema. O sistema, esse, é sem rosto, mas é importante que haja rostos, dos apropriadores e dos inimigos, o imigrante, o terrorista, o fundamentalista islâmico...
E assim vamos dar à célebre oposição de Carl Schmitt entre amigo e inimigo.
Mas os media, sobretudo os media televisivos, são também muito importantes, pois ajudam a dar um rosto ao sem rosto, e isso permite às pessoas pensar que vivem num mundo em que podem identificar toda e qualquer coisa com um rosto. Quando os americanos entraram em guerra contra Saddam Hussein, no Iraque, difundiram um baralho de cartas, cada uma delas com um rosto do governo de Saddam.
Voltando à questão inicial: a temporalização da história acelerou-se de tal modo que podemos perguntar se não é hoje difícil haver tempo para os períodos de latência.
A noção de aceleração e de velocidade podem estar ligadas a essa questão do narcisismo. Porque se o narcisismo tem a sua raiz numa concepção de identidade que pode remontar a um Deus criador monoteológico que se nomeia como “Eu sou aquele sou”, então isso significa que tudo se reduz ao presente e que o espaço e o tempo estão fundamentalmente subordinados ao tempo presente. A velocidade é, assim, um modo de tentar dominar ou superar o tempo, no sentido de uma auto-identidade, de um “Eu sou aquele que sou”. Os desportos profissionais são hoje concebidos como mecanismos de auto-produção narcísica. É possível e importante pensar um conceito não narcisista do Si [self]. Nietzshe talvez o tenha tentado no seu Zaratustra.
Na sua palestra, partiu de um texto importante livro de Derrida sobre a Europa, L’Autre Cap, onde ele desenvolve de maneira analítica o problema da identidade. Quanto a isso, a Europa é muito narcisista...
Isso faz parte dos seus problemas, mas também tem elementos que são o contrário disso. Penso que é muito importante ver os problemas europeus num contexto alargado, para que possa ser possível dizer o que é específico deles. Toda esta onda de privatizações não está só a atacar as estruturas do Estado mas também as estruturas sociais. A ideia de serviços públicos que não estejam submetidos ao motivo do lucro é cada vez mais rara. Hoje, a União Europeia quase obriga a que haja em todos os domínios competição privada. Os antigos serviços sociais estão, um a um, a ser privatizados. E, neste aspecto, é uma área muito importante é a das telecomunicações. Uma das grandes diferenças entre os Estados Unidos e a Europa é o facto de nos Estados Unidos os media, e pensemos no mais importante, que é a televisão, não terem a mínima obrigação em relação à esfera pública, pelo que todo o sistema político tem de funcionar através do mercado. O que significa que não se pode existir politicamente sem ter milhões e milhões de dólares para comprar tempo de antena. Na Europa, há ainda a ideia de que a televisão e a rádio são de alguma maneira, e num determinado grau, mesmo que reduzido, públicas. Dão tempo de antena aos candidatos. Nos Estados Unidos, isso não acontece. E a primeira coisa que se pergunta a um candidato não é sobre o seu programa político, mas quanto dinheiro é que vai conseguir angariar. Ao mesmo tempo, é importante perceber que isto pode dar origem a atitudes contrárias extremamente destrutivas. Já o fascismo era um ataque à plutocracia. O nazismo, por exemplo, não foi apenas anti-semita, foi também anti-plutocrata. E tentou estabelecer uma equivalência entre anti-semitismo e anti-plutocracia. Um dos seus mais poderosos elementos constitutivos era contra a regra do dinheiro. Mas isso está hoje completamente esquecido. Em vez disso, a historiografia concentra-se apenas no anti-semitismo e elimina todos os elementos anti-capitalistas do nazismo. O Partido Nazi foi conscientemente buscar elementos à crítica socialista do capitalismo. Mas depois converteram-nos numa política narcisista, em busca do rosto do inimigo: o judeu, o estrangeiro, etc.
O nazismo afastou-se então do modelo monoteísta do capitalismo...
Sim. O modelo monoteísta é muito importante porque diz que a única coisa que conta é a relação de si para consigo. E Deus é o exemplo disso. Um modelo alternativo, incompatível com o modelo monoteísta, seria aquele em que o Eu depende verdadeiramente da experiência com os outros, com o que vem de outro lado e está relacionado com outra coisa diferente, com a heterogeneidade. É isso, precisamente que encontramos em Derrida, em L’autre cap, o que tem certamente a ver com as suas origens, com a sua experiência de francês judeu que nasceu e viveu na Argélia.
Falou de algumas diferenças entre a Europa e a América. Continua a ser pertinente insistir nessas diferenças?
A América, em certa medida, deriva da Europa, mas de uma parte específica da Europa, aquela que lhe transmitiu o lado protestante, puritano. A essa parte original veio juntar-se outra, que tema ver com a eliminação brutal das culturas indígenas. Tudo na América foi centrado numa noção essencialmente protestante de indivíduo. O indivíduo branco como imagem de Deus. Ainda hoje, Obama fala da “excepção” americana. A América vê-se a si própria sob a forma de uma pureza protestante, como a imagem individual e excepcional do divino. Na Europa, a luta entre protestantes e católicos produziu uma diferente configuração da relação do indivíduo com o social, o que faz com que a dimensão colectiva seja muito mais importante. Na América, a única coisa que conta é o indivíduo e tudo o que acontece é da responsabilidade dele. Se tem sucesso, o mérito é todo dele, mas se não tem, se perde o emprego, por exemplo, o problema é dele.