O que impede alguém de tocar numa banda de garagem e também numa filarmónica? Nada. Há músicos que o fazem sem preconceitos. Nesta sexta-feira à noite, às 21h30, toca a banda no coreto. É o encerramento do 10.º Festival de Bandas Filarmónicas da cidade de Setúbal.
Os instrumentos são os mesmos, mas a música é outra. Jovens que integram bandas filarmónicas por todo o país também tocam em bandas de garagem e formam grupos de jazz. “Há um preconceito triste em relação às filarmónicas. A música não pode ser algo que nos envergonhe”, diz Eloísa Guerra, 28 anos, trompetista há 18 e porta-voz da Banda Filarmónica da Casa do Povo de N.ª Sra. de Machede (Évora) desde os 14 anos.
“Os jovens que pertencem a bandas têm a coragem de contrariar as ideias preconcebidas em relação às filarmónicas e são muito felizes”, diz ao P3 a também professora de Inglês e Português no ensino secundário, depois da actuação em Setúbal, no 10.º Festival de Bandas Filarmónicas da cidade, que começou a 6 de Julho.
Desta banda, dirigida pelo maestro Francisco Canoa Ribeiro, nasceu o grupo Supercinco: “Com o Mário Vinagre, que ali toca órgão (na filarmónica toca clarinete, também integra a Banda da Força Aérea e tem mestrado em Música); o Jorge Alfaiate, viola baixo; o Luís Coelho, guitarra eléctrica; o Carlos Ramalho, trompete, e o Josué Padeiro, trombone", descreve Eloísa Guerra, enquanto recorda mentalmente a imagem dos amigos no palco.
Numa banda com cerca de 40 elementos (onde há "professores, engenheiros e elementos que escolheram seguir carreira na música"), metade tem 20 anos ou menos, uma pequena parte ultrapassa os 40 e o restante está entre os 30 e os 40 anos. "Esta ligação intergeracional também é muito positiva para todos. E mesmo aquelas situações que as pessoas podem considerar mais 'pirosas', como acompanhar marchas populares ou o cortejo de Carnaval, são muito divertidas e encaradas com alegria, sem complexos", conta a porta-voz da banda, para quem "a música é uma festa" e que quando terminou a universidade teve receio de ficar colocada numa escola "longe de casa". O mesmo é dizer longe da banda.
Democratizar o ensino da música
"Tocar numa banda filarmónica não está ultrapassado? Não é 'foleiro'?" O presidente da Sociedade Capricho Setubalense, que organiza o festival, Nuno Marques, ri-se perante a provocação. E, negando o preconceito, invoca o passado, nomeadamente o final do Antigo Regime: "Foi uma altura em que as bandas surgiram com forte expressão e como forma de cultura marcadamente urbana."
Admite “que há outras actividades mais actuais e contemporâneas na área da música e que as filarmónicas por si só não são hoje uma novidade”, mas reforça "que actualmente, como há dois séculos, as bandas filarmónicas e as sociedades que as acolhem e promovem continuam a ser a maior rede de escolas de música do país".
No caso da sociedade a que preside desde 2012 e que comemora este ano 147 anos de existência, o objectivo maior é o de "democratizar o ensino da música, valorizando-a também como factor de inclusão". E ali há igualmente quem pertença a outros tipos de agrupamentos musicais: bandas de garagem ou grupos de jazz. "Jovens que tocam instrumentos de percussão e alguns sopros e que entram em formações mais na área do jazz e do funk", diz.
“Três quartos da banda são compostos por adolescentes e jovens. Nota-se um interesse crescente neste caminho da música. Desde a primeira edição do festival que houve um crescimento e rejuvenescimento da Banda da Sociedade Musical Capricho Setubalense", diz Nuno Marques e informa que foi criada entretanto a Big Band Capricho, com 20 elementos e com uma média de idades que não ultrapassa os 30 anos. Integraram-se outros músicos e instrumentos, "guitarra, piano, viola baixo", e escolheu-se o repertório adequado.
Nuno Marques salienta ainda a boa articulação com o Conservatório de Música de Setúbal, "fundamental para o desenvolvimento destes estilos orquestrais". A par do festival, foi inaugurada a exposição “Bandas na Arte Popular Portuguesa”, na Casa da Cultura, a partir de uma colecção da Associação José Afonso, que ali se manterá até 31 de Agosto. É nesta instituição que funciona agora a escola de música da Capricho. "Ganhámos melhores condições do ponto de vista físico e técnico."
Na 10.ª edição do festival, além Casa do Povo de N.ª Sr.ª de Machede e da Sociedade Musical Capricho Setubalense, já participaram a Sociedade Filarmónica Alcanadense (Santarém) e a Banda de Música do Centro Popular de Trabalhadores da Ribaldeira (Torres Vedras).
"Tropeçar" numa banda
A aposta de realizar os concertos em locais diferenciados e não especificamente destinados a este tipo eventos, como o jardim do Bonfim ou as ruas da Baixa da cidade propiciam encontros inesperados da população "com um género musical a que a maior parte não está habituada".
Ao "tropeçar" na banda e na música durante um passeio, "o público adere, mas também já há um público fiel, que volta sempre", diz Ana Carvalho, do gabinete da Juventude da Câmara de Setúbal, parceira do festival desde o início.
Para a responsável da divisão de Cultura, "actividades como estas evitam também que os jovens sigam caminhos menos dignos". E convida os cidadãos a participar nas iniciativas culturais das instituições: "Participem, estejam atentos à oferta, que é cada vez mais vasta, e dêem sugestões. Só poderemos ir ao encontro das populações se conhecermos as suas ideias e desejos."
Ana Carvalho lembra que no concelho há três importantes bandas filarmónicas: além da Capricho, a Banda da Sociedade Perpétua Azeitonense e a da Sociedade Filarmónica Providência (Vila Fresca de Azeitão). Esta última actua na sexta-feira, no coreto da Avenida Luísa Todi, num concerto onde participará também a Banda de Música de Piedrahita (Província de Avila, Espanha), numa primeira internacionalização do festival.
Quando souberes que "toca a banda no coreto", apaga os preconceitos, adormece os tiques de superioridade cultural e vai até lá. Talvez sintas vontade de dançar.