Começa de fato e gravata, acaba em sangue

Um dos maiores encenadores britânicos vivos, Declan Donnellan traz o seu Ubu Rei ao Festival de Almada: mesa posta para o melhor jantar burguês, e depois caem as nódoas. A loucura, lamenta dizer-nos, é o preço a pagar por séculos de bom comportamento.

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É mesmo ficção? Na televisão da sala de jantar, que não tardará a ser desligada, as notícias soam vagamente familiares: Banco Central Europeu, Mario Draghi, Ucrânia, Gazprom…

Sim e não, responde Donnellan, um dos maiores encenadores britânicos vivos, e seguramente o mais internacional (não há antecedentes conhecidos para a companhia que fundou em 1981, a Cheek by Jowl, e que actualmente tem operações simultâneas em três países: Inglaterra, Rússia e França). Num certo sentido, estamos mesmo todos sentados à mesa do jantar burguês que Donnellan e Nick Ormerod – o cenógrafo com quem divide o teatro e a vida desde a primeira noite de ensaios (e o primeiro jantar de take-away chinês), quando ainda eram estudantes em Cambridge – viram nas entrelinhas do texto de Alfred Jarry assim que se instalaram em Paris para começar a trabalhar com os actores e que na próxima segunda-feira, dia 14, voltam a servir em Almada, no Palco Grande da Escola D. António da Costa. Foi irrecusável: “Não sou um encenador conceptual, não chego à sala de ensaios com uma ideia. Lembrámo-nos de transformar o Ubu Rei num jantar burguês porque o apartamento em que estávamos a viver em Paris era muito cómico – um apartamento muito caro, muito luxuoso, muito clean, mas em que em todos os cantos encontrávamos post-its surreais, do tipo ‘não caminhe antes das 8h da manhã', ’não use o chuveiro depois das 21h’, ‘não corte alimentos na banca da cozinha’. Ah, claro, também havia o ‘não abra as janelas’, e devo dizer que estava um calor de morrer… Era como se vivêssemos numa prisão de luxo. Ao fim de umas semanas, demos por nós a fantasiar com a ideia de profanar este apartamento”, explica Donnellan ao Ípsilon horas antes de uma de várias lotações esgotadas no Barbican, em Londres, aonde Ubu Rei está de volta para mais uma temporada.

Não é bem um regresso a casa (a propósito: isso fica onde?): só para dar uma ideia do trânsito incessante da Cheek by Jowl, pode fazer sentido interromper o jantar para explicar que Declan Donnellan fez este Ubu Rei em Paris porque queria voltar a trabalhar com os seus actores franceses (e em francês), que estreou a peça em Haia e que, um ano e meio depois, continua a levá-la a passear (França, Reino Unido, Itália, Espanha, Roménia, Portugal, e ainda vai à Rússia). Mas voltemos para a mesa. Declan Donnellan quer pôr-nos a falar como nos ensinaram a não falar: com a boca cheia.

Violência doméstica

Bela mesa, a Europa. Declan Donnellan gosta sobretudo da toalha — lavada por séculos e séculos de bom comportamento, mas ainda assim cheia de nódoas difíceis de tirar, como as que vão ficar para sempre depois deste jantar. Foi por causa dessas nódoas que quis pôr o Pai Ubu — a personagem-protótipo que ao longo do século XX pareceu prefigurar todos os tiranos, de Hitler a Ceausescu, de Bokassa a Pol Pot, mas que o muito jovem Alfred Jarry escreveu a partir de um professor de Matemática especialmente odiado que teve no Liceu de Rennes — neste apartamento de classe média. Dentro de um fato bege que se confunde com as paredes bege e com a alcatifa bege e com o sofá bege, um fato bege que é tão impessoal quanto transmissível — e que acaba desgrenhado, porco, babado, rasgado, porque este pai de família normal é o monstro que Donnellan acredita haver dentro de cada um de nós.
“Em certas partes da Europa de Leste, durante a Segunda Guerra Mundial, bastou as pessoas ouvirem dizer que os nazis estavam a aproximar-se para imediatamente começarem a matar os vizinhos judeus. Imediatamente! Não foi preciso nenhum processo de doutrinação. Acredito que somos todos assim, ou pelo menos que devíamos todos considerar a possibilidade de sermos capazes de actos indizíveis de crueldade de um momento para o outro, gratuitamente”, argumenta. Já não é ficção: “Eu acho que seria incapaz de matar uma pessoa. Mas como é que eu sei? Posso ter a esperança de não me comportar dessa forma em circunstâncias extremas, mas não posso ter a certeza. Tenho a imensa sorte de estar aqui num restaurante muito burguês a beber um belo copo de vinho. Não é provável que eu mate uma pessoa na próxima meia hora, mas quem sabe do que é que eu seria capaz se as circunstâncias se alterassem muito bruscamente e eu ficasse muito assustado ou muito invejoso?”

Um copo de vinho partido, uma varinha mágica apontada a uma cabeça — Declan Donnellan imagina que todo o terror começa por ser assim, doméstico. Não é por se passar entre uma cozinha e uma sala de jantar que o seu Ubu Rei é menos político: “De todo, porque é em casa que a política começa (risos). Todos os ditadores tiveram uma família.” E é isso, uma família (nesta parte da conversa, e mesmo com a boca cheia, torna-se jungiano: quer pôr-nos a falar de arquétipos), que vê no coração do texto de Alfred Jarry, onde tantos encenadores acharam mais fácil, ou mais produtivo, ver uma sátira política tout court. Um pai nervoso com os temperos do assado, uma mãe preocupada com a toilette, um filho entediado perante a perspectiva de mais um jantar de adultos (e com uma máquina de filmar à mão, para que o filme de terror comece e fiquemos demasiado dentro do nariz do pai, demasiado dentro da carne ainda crua que vai ser servida ao jantar, demasiado dentro da sanita que alguém se esqueceu de limpar: luzes, câmara, acção) — foi aqui, no conforto deste apartamento alcatifado, que Declan Donnellan quis fazer correr o sangue discreto da burguesia. Nos intervalos de transe em que o jantar, todo acolchoado em sussurros e boa-educação, se transforma na sangrenta luta pelo escalpe do rei da Polónia, o espectador, acredita ele, é obrigado a ver-se do outro lado do espelho, reflectido nos esgares daquilo que há um minuto atrás eram pessoas e agora são animais selvagens, dominados pela epilepsia e pela paranóia, pela violência e pelo sexo. E sobretudo é obrigado a contemplar que talvez também seja capaz de matar. Da Mãe Ubu para o Pai Ubu, com amor: “Nada te impede de massacrares toda a família e de te colocares no seu lugar.”

Precisamente: o que é que nos impede? “Eu gosto de viver numa sociedade civilizada, mas para isso é preciso que os outros estejam controlados — e que nós próprios estejamos controlados. A verdade é que todos somos perigosos, a não ser que sejamos reprimidos e tenhamos tantos dos nossos impulsos sob controlo. E o problema é mesmo esse: o preço que pagamos pela civilização é a loucura. Ok, admito: talvez seja um preço razoável.” Mais do que um grande texto sobre o poder, argumenta Donnellan, Ubu Rei é portanto um grande texto sobre a banalidade do mal: “O Jarry dá corpo a estas personagens extraordinárias que são o Pai e a Mãe Ubu — duas personagens magnéticas, e ao mesmo tempo aterradoras, que roubam, matam, comem com a boca cheia, falam como porcos. É isso que é perturbador na peça, e é perturbador mesmo cento e tal anos depois de ela ter sido escrita: porque é que nos sentimos tão fascinados por criaturas tão repulsivas? E, simetricamente, porque é que nos sentimos tão ameaçados por criaturas tão vulgares? Talvez eles corporizem alguma coisa em nós que preferimos ver projectada com segurança no mundo exterior.”

A escandalosa estreia da peça em 1896, no Théâtre de l’Oeuvre, em Paris, “foi um incrível acto de transgressão, e um incrível murro na cara da burguesia francesa”. Donnellan tem, claro, um olho negro: sentado num dos restaurantes do Barbican, copo de vinho na mão, burguês se confessa (“Toda a gente que vai ao teatro é burguesa, não vale a pena fingir”). E um pouco baralhado também: “Se olhares para o Ubu Rei de uma certa perspectiva, é uma obra de génio; se olhares para ela de outra perspectiva, é lixo. Até isso é muito desafiador para um encenador. Como é que um texto que é uma completa porcaria pode ser tão interessante? Também somos uma porcaria? É por isso que é interessante?”

Para ser honesto, Declan Donnellan sente-se bem neste limbo entre o lixo de um texto escatológico, que começa e acaba literalmente na merda, e o luxo do apartamento inabitável que encontrou em Paris. Por princípio, não parte para uma encenação com ideias na cabeça: acontece tudo na sala de ensaios com os actores (e depois em casa, a dois, no rescaldo dessas sessões), sem que no final ele saiba dizer exactamente como aconteceu. “Não consigo mesmo descrever o que acontece nos ensaios. A única coisa que me interessa numa obra de arte é que esteja viva. E como é que a vida acontece numa sala de ensaios é uma coisa que no limite é um mistério.” Aproximou-se dele num livro, The Actor and the Target (2002), que publicou primeiro na Rússia e que depois, na versão inglesa, se transformou numa espécie de bíblia para actores, mas não está muito interessado nisso. “No fim do dia, são só manchas pretas num papel branco. Letra morta. Lia como um louco, quando era um jovem encenador, porque me sentia estúpido e queria aprender, mas é mais importante viver as coisas, experimentá-las. Tudo o que está escrito está morto. Até este momento já está morto. Mesmo que estivesse a trabalhar com o mais premente dos novos dramaturgos, não deixaria de estar a tentar dar vida a uma coisa morta. Nesse sentido, o meu trabalho como encenador é encarnar — é uma palavra muito poderosa da teologia católica, e os meus pais são irlandeses... E como a vida está em todo o lado, na verdade o que me compete é não fazer nada: deixá-la fluir na sala de ensaios, remover os obstáculos, desbloquear, para ver o que aparece.”

Nisso, encenar é um acto de fé — inexplicável ao ponto da inconsciência. “Há coisas de que não podes ser totalmente consciente — as grandes coisas são imperscrutáveis. A má arte é sempre muito auto-consciente. Para mim não há beleza que consiga sobreviver à auto-consciência, mas a auto-consciência, em Inglaterra, é uma verdadeira doença nacional. Acho que somos o único povo do mundo que a acha atraente. O que me leva de novo aos Ubus — eles são completamente inconscientes, completamente libertos. São capazes de tudo.”

Além do texto

Por mais inconsciente que pretenda ser, porém, Declan Donnellan tem toda uma história do teatro às costas. Do primeiro Shakespeare que fez em Cambridge ao que está a fazer agora com o Ballet Bolshoi, em Moscovo (entre um e outro, uma carreira de advogado que nunca chegou a descolar, algumas contas pagas como guia turístico em Londres, e uma visita a Portugal com um Otelo, em 2004), muita letra morta lhe corre no sangue. “O facto de eu fazer tanto Shakespeare — ou seja, tantas peças escritas no século XVII, é muito irritante. Não sou necrófilo, não sou antiquário, não estou particularmente interessado no passado. Se as peças do Shakespeare fossem só textos sobre como as pessoas viviam há anos atrás, não teriam qualquer tipo de interesse para mim; mas como são textos sobre como nós vivemos agora, excelentes textos sobre como nós vivemos agora, têm muito interesse.” Lady Macbeth reflectida na Mãe Ubu, Hamlet reflectido no herdeiro do trono da Polónia (“Que terrível é ver-se aos 14 anos sozinho no mundo, com uma terrível vingança para cumprir”), é claro que ele vê isso tudo. “Mas eu vejo Shakespeare em todo o lado. Vejo Shakespeare nas Três Irmãs, no Boris Godunov... Ele é muito fundamental à experiência humana. Ter trabalhado tanto com um escritor tão fantástico influenciou, no fundo, o modo como eu vejo a vida — é a coisa mais importante de que alguma vez estive perto. Ele desenterrou arquétipos humanos muito profundos que nos ajudam a pensar sobre a forma humana e infiltrou-se profundamente na nossa cultura comum. Não é preciso ter tido uma educação muito refinada para conhecer aquelas personagens básicas: Romeu, Julieta, Hamlet, os Macbeths, Falstaff. É genial como ele põe o dedo em certos botões… e não por ser esperto, apenas porque tinha um bom par de olhos. Não sei de ninguém que tenha visto de forma tão clara, tão limpa, através de nós.”

A não ser talvez Tchékhov, o seu segundo morto favorito. Quase 20 anos depois da primeira experiência com os russos, e em russo (uma montagem do Conto de Inverno, de Shakespeare, para o Maly Teatr, resultado de um encontro acidental com o director da companhia, o mítico Lev Dodin, em Helsínquia), Declan Donnellan está em casa em Moscovo e em São Petersburgo. Tem a sua própria companhia de actores locais, que formou quando o Festival Tchékhov lhe estendeu o tapete vermelho, em 2000 — e está a replicar essa história em França, onde foi montar este Ubu Rei apenas porque queria voltar a trabalhar com os actores que conheceu em 2007, depois de Peter Brook o ter convidado a formar um elenco para encenar um clássico dos mais clássicos (Andrómaca). Não se sentiu assustado. Nunca se sente. “Fiz Tchékhov e Púshkin na Rússia, fiz Corneille e Racine em França. Porque é que não havia de fazer?” Os sítios mudam-no, a língua muda-o (“Quando falo francês, a minha máscara é diferente. E quando regresso à Irlanda, a máscara liberta outras coisas, que também são verdadeiras”), mas o teatro está para além disso, está “nos espaços tensos e invisíveis entre um actor e outro actor, entre um actor e o público”, espaços preciosos “que precisam de ser alimentados e protegidos”. De resto, gosta de texto, mas não incondicionalmente: “Odeio quando há demasiadas palavras; adoro quando não há muitas palavras, apenas palavras muito boas. Gostava de ter sido mais corajoso e de ter trabalhado mais vezes sem texto. Na verdade, quando estou a ensaiar, não passo tempo absolutamente nenhum à mesa a falar sobre o texto. Gosto que os actores estejam de pé e a mexer-se. E basta-me a conversa suficiente para desculpar o movimento. Ou para desculpar um copo de vinho.”

A propósito: quando Declan Donnellan desceu para jantar, ainda ficou algum no copo.

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