Lisboa me pertence

Estou num daqueles apartamentos que visto de fora ninguém daria nada por eles, mas uma vez dentro nos surpreendemos com tanta beleza. Bem podíamos estar na Nova Iorque de Woody Allen. Sim, se não fosse o Rio Tejo a servir de âncora, estaríamos certamente noutra cidade. Mas aqui estamos, em Lisboa e com lisboetas que se sentem cidadãos do mundo, que conhecem mal a cidade que lhes serve de berço e não escondem o espanto diante da cidade que lhes pinto com palavras. Esta Lisboa que lhes comprei a metade do preço. 

Esta cidade agora me pertence. É minha. É assim, desde o momento em que ao descer para as ruas que lhe servem de cartão postal me apercebi que ninguém que se dizia lisboeta a reclamava depois do horário do expediente. Como se a cidade só fosse útil enquanto desse lucro. Como se o dinheiro fosse a única razão que levaria os lisboetas a reconciliarem-se com a sua própria cidade. No espaço de uma década, os edifícios devolutos, os jardins abandonados, os mercados esquecidos e os quiosques renasceram com um fulgor nunca antes visto, com uma nova cara que celebramos, com olhos voltados para um ontem do qual ninguém se lembra ao certo.

O que procuram estes novos outros lisboetas? Redesenhar a cidade com almofadas e licor de ginja, servindo os que lhe estão de passagem?

Para os lisboetas, os que ainda restam, é como se esta cidade não existisse. Caminham pelas suas ruas mas é como se estivesse a quilómetros de distância. Foi-lhes devolvido parte do Tejo, mas não podem dizer que o Mercado Ribeira ainda lhes pertença. Entre hostels e restaurantes pós-gourmet, donos de uma ementa saudosista com preços pouco convidativos multiplicam-se à medida que cinemas e livrarias vão fechado as portas, perante a impotência e indignação de um punhado de lisboetas rabugentos que ainda não percebi se é contra ou a favor, ou se é simplesmente carente de ideias.

Quem nos visita acha o máximo, tudo lhes é romance. Há quem me tenha dito que aqui se esconde o verdadeiro rosto da Europa, no ar abandonado e decadente das fachadas dos edifícios. Sim, é aqui, nesse desleixo intencionado onde a Europa fugida do Norte se veio exilar. Só que ela está disfarçada, discreta, convive lado-a-lado com os lisboetas, senta-se no mesmo vagão a caminho das praias da linha na Cascais. Faz surf em Carcavelos e se delicia com salada de polvo nas tascas de Sintra, afogando o pão de Mafra num azeite alentejano de 0,5% de acidez. Tão discreta que até se dirige em português sempre que põe o pé numa das mercearias de paquistaneses, as únicas abertas fora de horas, domingos e feriados incluídos. Se vissem a desenvoltura com que recita os versos de Sophia de Mello Breyner, não diriam que esta Europa é nova aqui. Só quando se aventura pelos caminhos da Kizomba - aliás, coisa que raramente se faz - é que lhe descobrimos a careca.

Se é esta a Europa que nos resta, porque a procuramos longe daqui?

Mais do que isso, Lisboa é a Europa que gostaríamos que fosse, se não lhe faltasse tanto Sul. Isso nunca será, nem pintada de azul. São muitos os fantasmas, os mundos que habitam esta Lisboa, circulam pela sombra e é aí onde todo o charme repousa. De um lado temos a luz que comove o turista e do outro as sombras que lhe dão o recorte, a alma. É esta que precisamos resgatar. Sem ela, Lisboa arrisca-se a ser uma estância balnear no sul da Europa.

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