Apontar os projectores para as pessoas que não estão na linha da frente

Vila do Conde homenageia a autora de Old Joy e Wendy e Lucy com uma integral que antecipa também a estreia do novo Night Moves. Conversa com uma realizadora que conta histórias de personagens que não estão na linha da frente e que quer desafiar o espectador a recusar o piloto automático

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Com Old Joy (2006) e, sobretudo, Wendy e Lucy (2008), a realizadora americana tornou-se na antítese do modelo indie nascido na década de 1990 com a ascensão do festival de Sundance e da distribuidora Miramax dos irmãos Weinstein. Rodando com orçamentos pequenos fora dos circuitos tradicionais, contando histórias de gente normal “na estrada” (e numa estrada que tanto é literal como metafórica) criadas em estreita colaboração com o escritor Jon Raymond (autor dos argumentos de quatro das suas cinco longas), Reichardt está muito próxima do cinema americano mais “livre” dos anos 1970, sem problemas em instalar-se ao mesmo tempo dentro e fora das regras do género. Assim o comprovam os seus dois últimos filmes, o quase-western inspirado em factos reais O Atalho (2010) e o quase-thriller político-ecologista Night Moves (2013, que chega às nossas salas dia 10), que marcaram também a sua entrada no circuito dos grandes festivais (ambos estiveram na competição de Veneza).

Mas pergunte-se à realizadora se ela se sente parte de um movimento ou de uma geração de novos cineastas americanos que viraram de algum modo costas a Hollywood, ou se tem afinidades com contemporâneos como Jeff Nichols (Histórias de Caçadeira, Procurem Abrigo), Jeremy Saulnier (Ruína Azul) ou David Gordon Green (Prince Avalanche, Joe) - e a resposta é surpreendente. “Não sei,” diz cautelosamente ao Ípsilon ao telefone de Portland. “Devo dizer que não vejo tanto novo cinema americano como deveria...”

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"Night Moves é um filme sobre personagens políticas, sim. E nós somos de facto pessoas políticas, mas não quisemos fazer um filme de mensagem", diz Reichardt

Explica que embora alguns desses cineastas sejam bastante rigorosos no cinema que fazem, outros parecem apenas prolongar o sentimentalismo do melodrama hollywoodiano, “romantizam a pobreza” - percebe-se a relutância, o seu é um cinema descarnado, “sem gordura no osso” como diz a certa altura. “Mas gosto que esses filmes existam, que estejam por aí como contrapeso. Hoje, quando se vai ao cinema nos EUA, só sobreviver aos trailers já é muito bom... Parece que estamos a ser atacados, e isso já nem leva em conta ouvir o ruído da pessoa sentada ao nosso lado a comer!”

Acaba por fazer sentido que sinta relutância em entrosar-se num movimento. Afinal, o seu cinema é sempre sobre a relação e a fricção entre o indivíduo e a comunidade, o pessoal e o social, e os seus heróis estão sempre apanhados no limbo entre um e outro (fio condutor que a cineasta reconhece sem problemas, mesmo que lhe seja difícil olhar para a obra como um todo).

É essa invulgar coesão temática que o Curtas Vila do Conde propõe descobrir na sua edição 2014, onde Reichardt é convidada de honra, presente para acompanhar uma retrospectiva integral das suas cinco longas-metragens – a sua primeira e raríssima obra, Blade of Grass (1994, inédita por cá), Old Joy, Wendy e Lucy, O Atalho e Night Moves, que o festival mostra em ante-estreia nacional. E por onde começou meia hora de conversa telefónica descontraída, que apanhou a cineasta de regresso à sua “cidade adoptiva”, Portland, para descansar entre duas viagens, num momento em que Night Moves – história de três activistas e de uma acção de protesto que corre mal - está em pleno lançamento internacional.

Night Moves parece culminar um processo de depuração do seu cinema, eliminando cada vez mais o supérfluo para se concentrar no essencial à história que quer contar.

Isso é uma observação vista tão de fora que não sei se consigo concordar... Quer dizer, não é que não esteja de acordo! Obviamente tenho a sensação, que todos temos, de que estou a ficar melhor naquilo que faço, e é verdade que fazer um filme não é exactamente um exercício fácil (risos). Mas nunca olho para os meus filmes como um todo. Cada caso é um caso. Sou eu que os monto e por isso acontece-me na sala de montagem olhar para as coisas e pensar, “bolas, devia ter feito de outro modo”, mas uma vez terminados estou pronta para andar para a frente. A questão é que Night Moves tem mais trama do que qualquer dos filmes anteriores (risos), há uma estrada narrativa bastante nítida a seguir. A direcção do filme vem do seu género e da sua narrativa. Se eu tentasse entrar por algumas das histórias paralelas ou pelas observações de alguma coisa que ia aparecendo como nos outros filmes, os “desvios” que eu ia fazendo, toda a tensão se perderia. Senti, durante a montagem, que quando algo não funcionava, notava-se à distância que não funcionava...

Mas isso dá a entender que esses “desvios” são o oposto da tensão, enquanto em praticamente todos os seus filmes é precisamente nesses “desvios” que ela reside, na incerteza sobre o que vai acontecer a seguir.

Para mim, isso tem mais a ver com observar a mecânica das coisas momento a momento. Não é um desvio propriamente dito, porque existe concentração, está-se a procura de algo específico. É mais um foco nas coisas pequenas em vez das grandes, e isso em si próprio cria tensão. Trata-se apenas de estar no momento e explorá-lo mais. No mundo em que vivemos estamos sempre a ouvir os telefones a tocar e a ver o correio, e existe uma fome, e uma satisfação, de estarmos sempre a receber informação. Quando temos de esperar pela informação, apenas porque a resposta não está lá e temos de trabalhar para a encontrar, as pessoas sentem-se muito desconfortáveis. Já ninguém espera que o telefone toque.

Pode-se dizer que é uma cineasta do processo, que se preocupa mais com o modo como se chega a um determinado sítio do que com o sítio onde se chega?

Sim, e é nisso que estou mais interessada. Gosto de mostrar como as pessoas fazem as coisas, como se dedicam a tarefas pequenas e se investem tanto nisso, e as tarefas mais pequenas podem muitas vezes servir de metáfora para as questões maiores. Gosto de ver alguém a mudar um pneu ou a arranjar um eixo. Passo muito tempo a pensar no papel de cada plano, e espero não deixar gordura no osso. Gosto de filmar como se cada plano fosse uma revelação.

Uma das coisas muito visíveis no seu cinema é a presença do silêncio...

Sim, mas exige muito trabalho chegarmos ao silêncio! Por exemplo, no caso de Wendy e Lucy, o som dos comboios foi pensado como banda-sonora. Em O Atalho, que é o mais silencioso dos filmes, as personagens viajam por território onde não há mais ninguém nem mais nada, com estas carroças que faziam muito barulho, e à noite havia apenas um silêncio quase negro. Lembro-me de ter ido aos exteriores onde rodámos com o engenheiro de som e de ele ficar no chão três horas a gravar som ambiente sem que a agulha se movesse sequer. Quer mais estranho do que o silêncio absoluto? Que no cinema não resulta. Tivemos de o construir do zero. Mas esse silêncio faz parte da história. Tento não usar o som ou a banda-sonora de um modo que leve o espectador a uma emoção automática. Não quero que ele entre em piloto automático. Penso que temos de romper as coisas para fazer com que as pessoas cheguem a um determinado sítio de outros modos, para que se envolvam de maneira diferente no filme.

O modo como trabalha com os actores parece encaixar-se nisso. Pede-lhes muito mais presença física do que representação.

Quando se olha para as coisas momento a momento, e se reduz tudo ao essencial, as interpretações tornam-se muito importantes. Representar é para mim algo de muito misterioso; quando estamos a trabalhar com alguém que está em absoluto controle da sua arte é muito difícil trabalharmos com outras pessoas... Por vezes não compreendo como os actores chegam a determinados sítios, até porque nem é algo que se possa explicar. A minha parceria com eles tem sido muito boa e como há tanta coisa física para eles fazerem, como fazer pão, cavar um buraco or lidar com animais, isso mantém-nos “no momento” e eles podem esquecer-se de que estão a representar. É uma experiência um pouco diferente devido ao modo como rodamos, a esticar o orçamento e sem soluções de recurso: em Night Moves a Dakota Fanning tem mesmo de impedir o barco de bater contra o muro da barragem!

Muitos dos seus filmes são sobre gente empurrada para as margens, ou que procura uma certa dignidade que a sociedade lhes recusa.

É algo em que eu e o Jon Raymond estamos naturalmente interessados, e em que eu já estava interessada antes de começar a trabalhar com ele. Não me ralo nada com os vencedores, sabe? Eles estão bem muito obrigado (risos). Ainda bem para eles. O que há a dizer das histórias das pessoas que têm tudo mas querem aquilo que lhes falta e pelo fim do filme também o conseguiram? Creio que o que há de bom em fazer filmes é poder apontar os projectores para as histórias das pessoas que não estão na linha da frente. Mesmo em política, só falamos das famílias de classe média. Mas há muito mais pessoas no mundo.

Mas isso encaixa também na actual narrativa americana das dificuldades da classe operária, do desemprego, da polarização política. Mesmo sabendo que não faz filmes de mensagem, é inevitável que possam ser vistos como filmes políticos...

Night Moves é um filme sobre personagens políticas, sim. E nós somos de facto pessoas políticas, mas não quisemos fazer um filme de mensagem. Estamos sempre a tentar pôr de parte as nossas opiniões políticas e mantermo-nos fiéis às personagens. Em todos os filmes estamos a jogar com a ideia do que as pessoas são quando estão sozinhas por oposição ao que são quando fazem parte de um grupo, e de todos os modos como a comunidade pode trabalhar. Como o indivíduo é por oposição às dinâmicas de grupo. Isso é algo que de facto atravessa os meus filmes, bem como a comunidade maior, a ligação que podemos ter a pessoas que mal conhecemos... Mas perguntam-me muitas vezes sobre o conteúdo dos meus filmes, qual é a mensagem que quero fazer passar. E digo sempre que nenhum dos meus filmes é de mensagem mas sim de personagens.

 

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